Mauro Calliari
21 Janeiro 2018 | 18h33
Hoje foi publicada na Folha uma interessante entrevista com Washington Olivetto, um dos maiores publicitários brasileiros. Ele está morando em Londres e conta que está adorando andar a pé e de metrô pela cidade: “Não tenho nenhuma vontade de comprar carro aqui. E olha que gosto de carros velozes. Tenho andado muito de metrô, ônibus e a pé. Volto da agência todos os dias a pé, uma hora de caminhada”.
Nessa época de férias, é comum encontrarmos pessoas que dizem ter adorado andar em cidades fora do Brasil, apesar de nunca fazerem isso por aqui. Seja em Nova York, Paris, Londres ou Buenos Aires, os brasileiros que viajam se encantam com o prazer de andar a pé: as calçadas lisas, a limpeza, a segurança, as pessoas, as lojas e as surpresas que as grandes cidades escondem.
Os relatos das viagens no Facebook, no Instagram são eloquentes: “andamos trinta quarteirões a 10 graus negativos em Nova York” ou “delícia passear por essa cidade tão limpinha e parar num café na calçada”.
Essa é uma questão intrigante: as pessoas adoram andar a pé. Mas não em São Paulo.
O fato é que nós já vivemos numa cidade onde a maior parte das pessoas faz suas coisas a pé e não nos damos conta disso. Sim, o percentual de pessoas que andam a pé em São Paulo é maior do que em Londres, ou Nova York ou Paris.
Em São Paulo, não custa lembrar, mais de um terço dos deslocamentos diários são feitos a pé – são crianças que andam até a escola, adultos que fazem compras, gente que vai trabalhar a pé. Outro terço dos deslocamentos envolve algum tipo de caminhada, até o ponto de ônibus ou o trem, por exemplo. No mínimo dois terços de todos os deslocamentos cotidianos da cidade são feitos a pé, muito mais do que nessas outras cidades.
Ou seja, nós já moramos numa cidade em que as pessoas andam a pé. Somos milhões de pedestres e não valorizamos isso.
Comparadas a outras grandes cidades globais, São Paulo não é, de fato, uma cidade fácil: as ruas muitas vezes não são nada atraentes, as calçadas têm buracos, e as travessias são perigosas, mas, principalmente nas áreas centrais (de onde saem grande parte de nossos turistas que viajam para fora), é possível encontrar lugares agradáveis, em que o deslocamento entre o ponto A e B pode ser feito com prazer.
Há ruas com árvores que dão boa sombra, há ruas seguras, há lojinhas simpáticas em qualquer lugar e há sempre alguma coisa acontecendo que pode nos interessar. Há, mais que tudo, milhões de pessoas andando para cá e para lá.
Mas há uma assimetria: o tempo médio de deslocamento a pé é de 15 minutos para quem ganha mais de 15 salários mínimos e 32 minutos para os que ganhame um e dois salários, como mostra estudo da estatística Glaucia Guimarães Pereira, feito para esse blog, a partir da pesquisa OD.
O que isso quer dizer? Que os mais ricos andam a metade do que os mais pobres.
Parece normal e até razoável. Mas talvez não seja. Afinal, as pessoas mais ricas tendem a morar em áreas mais centrais, mais bem servidas por metrô, mais confortáveis de andar a pé, muitas vezes razoavelmente perto de seus empregos. Afinal, em uma hora de caminhada, conseguimos fazer uns quatro quilômetros sem muito esforço.
Então, por que os mais ricos não andam mais que as mais pobres e não menos?
Acho que a primeira razão é o preconceito contra o transporte público. Muitas pessoas dizem que o transporte é ruim e às vezes é mesmo, mas uma pesquisa do Nossa São Paulo mostrou que a avaliação sobre os ônibus piora entre os que nunca andaram de ônibus. Você já deve ter ouvido isso: “quando o transporte melhorar, eu ando de ônibus”, mas o que muita gente está dizendo é: “eu não vou andar de ônibus nunca, e não vou nem testar”.
O prefeito de Bogotá, Enrique Peñalosa, famoso por promover uma pequena revolução nos hábitos de deslocamento de sua cidade, disse uma vez uma frase: “a boa cidade não é aquela onde todos têm um carro, mas aquela onde quem tem um carro prefere andar de ônibus”.
Ora, em São Paulo, já existem ônibus com ar condicionado e que fazem pouco barulho interno (aqueles bi-articulados que andam nos corredores) e grande parte dos vagões do metrô já tem ar condicionado e são confortáveis fora do horário de pico. Ainda é pouco e tudo isso precisa ser estendido à frota toda e às estações, que ainda são muito desconfortáveis.
A questão é que quem não usa, não reclama, e sem reclamação e participação, a maior licitação de ônibus no mundo, que está em curso em São Paulo, corre o risco de dar pouco peso à satisfação dos usuários, apesar disso constar do texto legal. Quem está acostumado a serviços de primeiro mundo poderia e deveria dar palpites no nosso transporte para ajudá-lo a mirar na qualidade de primeiro mundo.
Outra razão para andarmos menos: “no Brasil, falta segurança”. Sim, é verdade, falta mesmo. Mas andar de carro talvez não seja muito mais seguro do que andar a pé ou de transporte publico e a segurança aumenta quando há mais pessoas nas ruas.
A questão, portanto, parece ser cultural. Quem tem dinheiro, vai de carro.
Andar a pé sempre foi visto como algo relegado a quem não conseguia comprar seu carro, daí até o sentido da palavra “pedestre” – rasteiro, desimportante. Nós nos acostumamos a ver pessoas chegando de carro num restaurante e sendo recebidas por um valet na porta, como se fosse um insulto ter que andar alguns quarteirões para parar o carro em algum lugar, ou, pior ainda, chegar a pé.
Mas isso está mudando, no mundo todo. Gente com muito dinheiro escolhe ir a pé ou de bicicleta. Em Wall Street, em NY, ou na City, de Londres, pessoas que ganham milhões (de dólares ou libras) por ano saem para almoçar a pé e no caminho de volta, passam numa farmácia, sentam num banco, pegam um sanduíche e aproveitam a cidade.
No Brasil, há alguns segmentos que parecem mais refratários à mudança.
Um deles é o dos políticos e pessoas com funções públicas – os juízes, os prefeitos, os vereadores, os secretários, os funcionários graduados da administração municipal e estadual, que ainda têm no carro com motorista um sinal de seu status. Ou seja, quem faz as leis, quem administra as calçadas, quem fiscaliza o cumprimento da boa educação no trânsito de um modo geral não se coloca na posição de quem anda. E isso faz com que a cidade fique de fora dessa visão mundial. Há exceções, claro. Em São Paulo, o vereador Police Neto, por exemplo, abriu mão do carro oficial e faz seus deslocamentos em bicicleta ou transporte público. O secretário de Mobilidade da Prefeitura, Sergio Avelleda, também se desloca prioritariamente em bicicleta. São exceções bem-vindas, que deveriam em tese aumentar a empatia em relação a quem está na fila de um ponto de ônibus lotado ou quem tenta atravessar a rua numa faixa de pedestre.
Outro segmento é o dos que usam o carro como uma maneira de fugir da cidade, do barulho, do calor e das pessoas. Hoje de manhã eu vi um carro de luxo, talvez fosse um Porsche, ou algo assim, passando a pelo menos 100km/hora numa rua de um bairro residencial. Sentado num banco confortável, ouvindo música alta, com o ar condicionado regulado para 21 graus, o sujeito atrás dos vidros escuros provavelmente viu a rua vazia e acelerou, sem ligar para as pessoas nas calçadas, passeando num domingo de manhã, com cachorros na coleira e um pai com duas crianças que se assustaram com o barulho do motor.
Mas, há mudanças acontecendo, há pessoas envolvidas com a melhoria da cidade e dos espaços públicos. Há empresários que investem recursos pessoais para plantar árvores em praças. Há comerciantes que cuidam das calçadas. Há uma nova geração de arquitetos e urbanistas e gestores públicos que se preocupam com a qualidade de vida na cidade, com a possibilidade de andar a pé e aproveitar a rua.
Em algum momento na sua longa história, Londres já teve lama nas ruas, e os pedestres morriam de medo dos carros, o cheiro do Tâmisa era insuportável e a poluição matou mais de 4 mil pessoas no grande smog de 1952. Ou seja, tudo mudou por lá, graças à vontade muitos, desde os que andam nas ruas por falta de opção, mas principalmente graças à vontade dos que acreditam que andar de metrô e ônibus e a pé é o único jeito de uma cidade funcionar – quando todos podem se locomover juntos.
Torço para que o Washington Olivetto também ande muito em São Paulo e tenha uma boa experiência em nossas ruas. Torço também para que o prefeito João Doria caminhe por São Paulo. Só quem adota o ponto de vista do pedestre vai conseguir liderar a transição para uma cidade caminhável, com bom transporte público, alinhada com o que está acontecendo fora daqui.
Quem sabe não haverá um dia em que políticos, juízes, secretários, empresários, advogados, costureiras, engenheiros da CET, pedreiros, profissionais liberais, professores, estudantes, publicitários, empregadas domésticas, vendedores e porteiros se encontrem na mesma calçada, no mesmo vagão do metrô?
E que todos possam chegar com segurança e algum prazer aos seus destinos, exatamente como se estivessem em Nova York, Londres ou Paris?
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