sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

O choro privilegiado, Gabeira , OESP

Há coisas na democracia brasileira que não entendo bem. Uma delas é essa possibilidade que o Supremo dá ao ministro com voto vencido de pedir vista e adiar a decisão da maioria. Talvez essa dificuldade se explique pelo fato de ter uma experiência parlamentar, na qual defendi causas minoritárias.
No Parlamento, depois que a maioria se manifesta, o resultado é proclamado e só resta ao perdedor fazer uma declaração de votos, o direito de espernear, como dizíamos no plenário. Daí não entendo por que o ministro Dias Toffoli pode adiar a proclamação de um resultado indiscutível numericamente. Tenho a impressão de que, se me fosse dada a chance de bloquear uma decisão majoritária, hesitaria.
De certa forma, eu me sentiria numa brincadeira que perdeu a graça. Se a maioria não consegue impor uma decisão majoritária, acaba despertando certa compaixão pela sua fragilidade.
Os defensores do foro privilegiado já perderam a batalha. Deveriam contentar-se com o choro e abrir mão de manobras protelatórias. Adiar a decisão apenas atrasa uma experiência que já foi decidida, no debate pela imprensa, nas redes sociais, nos movimentos cívicos e nas pesquisas de opinião.
Um grupo minoritário de ministros do Supremo não pode decidir o que é melhor para nossa experiência democrática. No Brasil, o atraso é tão entranhado nos costumes que se consagra até o direito de atrasar, que agora está sendo exercido pelo ministro Toffoli.
Mas não é só desejo de voto mais pensado. Ele tem algo articulado com os políticos, os principais interessados em manter o foro privilegiado.
Enquanto o STF pisa no freio, a Câmara se apressa a votar um projeto no mesmo sentido, restringindo o foro privilegiado.
Aí pode entrar um gato: a extensão do foro privilegiado aos ex-presidentes, algo que favorece Temer, Lula e Dilma, até Collor, quando deixar o mandato de senador. É realmente algo inédito no mundo: o País que derrubou dois presidentes no período de democratização conclui que devem ser protegidos também depois do mandato.
Durante o mandato presidencial, já são de certa forma blindados. Só podem ser processados por crimes posteriores à sua posse. Assim mesmo, quando são acusados por crimes cometidos durante o mandato, a investigação é submetida à Câmara, onde a maioria é hostil à Lava Jato.
Estamos todos atentos, embora a atenção nem sempre baste para inibir os políticos desesperados. Eles nem se importam mais com as consequências para a democracia.
As coisas podem não ser tão simples como se pensa. Num programa de televisão, Gustavo Franco, ao lançar seu livro sobre a história monetária no Brasil, afirmou que o mercado acha que qualquer dos candidatos favoritos no momento continuará a reconstruir o País.
No caso do PT, o mercado tem esperanças de que, vitoriosa, a esquerda volte a se encontrar com a classe média e abrande sua linha. Não tem sido esse o discurso do PT. Lula afirmou várias vezes que vai estabelecer o controle social da imprensa. Em quase todas as análises, a esquerda conclui que foi derrubada porque não soube radicalizar.
Pelo menos no discurso, o caminho aponta para a Venezuela. Além do mais, tenho minhas dúvidas quanto à reconciliação com a classe média. Acho, sinceramente, muito improvável, mesmo com a ampla admissão dos erros e das trapaças.
No caso de Bolsonaro, tudo indica que caminha para uma visão liberal na economia, dura na repressão ao crime e conservadora nos costumes. É formula que tenta conciliar o avanço do capitalismo com as tradições que ele, naturalmente, dissolve na sua expansão global.
Tanto para os eleitores de Trump como para os de Bolsonaro, há uma força nostálgica em movimento. Voltar atrás, no caso americano, explorando carvão, tentando ressuscitar áreas industriais arruinadas. No caso brasileiro, voltar aos tempos do regime militar, durante o qual não houve escândalos de corrupção nem a violência urbana.
O Brasil de hoje é muito diferente do País dos anos 1960. E também não é o mesmo dos anos 1990, quando o PT chegou ao poder.
O economista Paulo Guedes, que deverá ser o homem da economia na campanha Bolsonaro, afirmou que, ao se encontrarem os dois, uniram-se ordem e progresso. Se entendemos por ordem o combate à corrupção e uma política de segurança eficaz, tudo bem. Mas a eficácia não se mede pelo número de mortos, e sim pelas mortes evitadas. E o progresso? Assim como está no lema da Bandeira, é bastante vago. Muitos o associam ao crescimento econômico.
Mas tanto os marxistas como os liberais tendem a uma visão religiosa do mundo, abstraem a limitação dos recursos naturais, algo que envolve todas as espécies. Num contexto de campanha radicalizada, qualquer das hipóteses terá muita dificuldade em governar um País dividido. E no processo de reconstrução será preciso encontrar alguns pontos que unam a Nação para além de sua clivagem ideológica.
Na sua entrevista ao Roda Viva, Gustavo Franco deu uma pista que me pareceu interessante: ao invés de falarmos tanto em reformas, sempre empurradas com a barriga, por que não buscar uma sociedade de inovação?Essa história de deixar as coisas apodrecendo, mas só mexer nelas em reformas, tem de ser substituída por uma ideia de inovação permanente.
É esse o mundo em que vivemos. Se não nos adaptamos a ele, seremos, de certa forma, engolidos.
A campanha eleitoral ainda nem começou. Fala-se num candidato de centro. De fato, suas chances serão boas. No entanto, na política não se trabalha apenas com chances, mas também com a encarnação da proposta, o candidato.
O PSDB, com Alckmin, fala em choque de capitalismo, algo que vi e ouvi em 98. De choque em choque, vai acabar a energia. Um mesmo empresário alemão levou 56 dias para abrir uma empresa em São Paulo e apenas 24 horas para abrir outra nos EUA. Que tal segurar os fios e experimentar o choque antes de aplicá-lo no País?
*Jornalista

Jogo de soma zero, Carlos Melo, O Estado de S.Paulo

Os efeitos eleitorais dos planos Cruzado (1986) e Real (1994) foram evidentes. No primeiro, o PMDB conquistou 22 dos 23 Estados em disputa; o segundo fez Fernando Henrique Cardoso presidente da República. Governos adoram acreditar que ganhos econômicos revertam ânimos políticos. Mas o passado nem sempre é comparável ao presente.
Em 1986, a Nova República vinha embalada pelas Diretas-Já e na eleição/agonia de Tancredo. Em 1994, não pesava sobre o presidente Itamar Franco suspeitas que repousam sobre Michel Temer e seu governo. Ademais, nos patamares de então, os ganhos marginais com o fim da inflação eram enormes.
Nos últimos anos, a recessão foi profunda; as marcas resistem: perdeu-se renda e emprego; houve também declínio da qualidade de políticas públicas – basta citar a segurança nos centros urbanos.
Em paralelo, o espetáculo de degradação política que levou ao impeachment e não cessou com o PMDB e o Centrão no poder: parlamentares não podem pegar um voo comercial em sossego; imagens de malas e o sentimento de engodo não se dissipam como lágrimas na chuva de uma melhora econômica ainda relativa.
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Como se fosse dois, o governo Temer é um todo contraditório: o da economia tenta dar conta dos desafios; a equipe é crível, não foi atingida por escândalos. Dificuldades à parte, encaminha imprescindível agenda micro e reformas macro: a inflação recuou, os juros caíram. Mas o governo da política é o desastre conhecido: superfisiologismo e o tacão da Lava Jato; piora dos serviços. Custos que abalam o humor e somam zero com ganhos econômicos. A pesquisa do Ibope grita: 21%, apenas, concordam com a hipótese de que 2018 será mais próspero; para 86%, “corrupto” é a palavra mais adequada para descrever o governo.
A percepção de melhora é mais lenta para o cidadão do que para os agentes econômicos; depende de algo mais que expectativas. Desconhece estatísticas, é indiferente à divulgação de índices. Não mora em tendências; vive no presente. Considerando tudo, natural que pareça distante.
*CIENTISTA POLÍTICO E PROFESSOR DO INSPER

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Presunção de hipossuficiência, *Almir Pazzianotto Pinto, O Estado de S.Paulo


Como reagirão os juízes do Trabalho chamados a decidir entre o artigo 444 e o novo § único?


30 Novembro 2017 | 03h01
Diz o artigo 1.º do Código Civil: “Toda pessoa é capaz de direitos e obrigações na órbita civil”. E “a personalidade começa do nascimento com vida”, completa o artigo 2.º. Entre o nascimento e a maioridade, adquirida aos 18 anos, o homem passa por duas fases: a da incapacidade absoluta, encerrada aos 16 anos, e a da incapacidade relativa, perdurável dos 16 aos 18.
São incapazes, “relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer”, os maiores de 16 e menores de 18 anos, os ébrios habituais, os viciados em tóxicos e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido, “os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo” e “os pródigos” (Código Civil, artigos 3.º e 4.º). O artigo 5.º conclui: “A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil”.
Nem sempre foi assim. Segundo o Código de 1916, apenas aos 21 anos a menoridade tinha fim. O passar do tempo e a evolução dos costumes levaram o legislador a admitir bastarem 18 anos para que o cidadão, homem ou mulher, se torne apto a tomar conta da própria vida. A plena capacidade para atos da vida civil poderá ser conquistada, por maior de 16 anos, pela emancipação, pelo casamento, por colação de grau em curso superior de ensino ou pelo estabelecimento civil ou comercial, se o fizer com economia própria (Código Civil, artigo 5.º).
Válidas para a vida civil, as normas de Direito Civil perdem eficácia quando o homem, ou a mulher, passa a participar da vida econômica na posição de empregado. O paradoxo legal é evidente: torna-se capaz aos 16 anos para ser patrão, mas continua incapaz enquanto empregado.
A expressão hipossuficiente não é encontrada na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), pois se oculta no interior do artigo 3.º, que traz a seguinte definição: “Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário”. O perigo consiste no termo “dependência”. O dispositivo estaria melhor dizendo: “Empregado é a pessoa que trabalha de maneira não eventual para empregador, mediante salário pago por hora, dia, semana ou mês”.
A CLT, conforme revelado na Exposição de Motivos, adota o princípio da superioridade da ordem estatutária sobre os contratos, “porque a liberdade contratual pressupõe a igualdade dos contratantes enquanto o Direito Social reconhece, como um fato real, a situação desfavorável do trabalhador e promove a sua proteção legal”. Levando ao extremo a visão tutelar do mundo do trabalho, equiparou os empregadores no artigo 2.º, parágrafo 1.º, e os empregados no artigo 3.º, de tal sorte a não reconhecer distinções “relativas à espécie de emprego e à condição do trabalhador, nem entre o trabalho intelectual, técnico e manual”. O manto tutelar do Estado cobre os assalariados, independentemente da qualificação, da função, da posição hierárquica e do salário. Houvesse igualdade, prevaleceria o contrato; como a lei presume dependência, predomina a tutela.
Hipossuficiente, segundo o Dicionário Aurélio, “diz-se de, ou pessoa que é economicamente fraca, que não é autossuficiente”. O termo não é privativo de empregado. O microempresário pode ser hipossuficiente, o mesmo sucede com o pequeno agricultor, o profissional liberal, a dona de casa, o aposentado pelo INSS, cujos proventos mal lhe permitem comprar medicamentos. Nem todo trabalhador, entretanto, deve integrar a classe ou categoria dos hipossuficientes, só pelo fato de ser empregado. O diretor empregado de instituição financeira, de indústria automotiva, de estatal ou sociedade de economia mista por certo goza de condições de vida distintas de alguém economicamente fraco.
Conquanto seja invisível no texto, a presunção da hipossuficiência é forte o bastante para influir em milhões de contratos, alimentar a doutrina e fundamentar decisões da Justiça do Trabalho. Muita tinta se gastou no debate sobre a respectiva natureza jurídica, se jurídica, econômica, técnica ou social. Prevaleceu, afinal, a doutrina da natureza jurídica. Na prática, todavia, em qualquer relação contratual as partes adquirem direitos e contraem obrigações. Do mesmo modo que o empregado é obrigado a trabalhar, o empregador tem o dever de lhe pagar e de lhe assegurar o conjunto de direitos previstos em lei ou norma coletiva. Afinal, quem se subordina a quem? Ambos estão reciprocamente ligados por vínculos de direitos e obrigações, sendo incorreto presumir-se a hipossuficiência como estado natural e necessário de todo e qualquer empregado.
A Lei n.º 13.467/2017 adotou dois requisitos para limitar a hipossuficiência trabalhista. Segundo a redação do parágrafo único acrescido ao artigo 444 da CLT, ganha capacidade contratual plena o “empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral da Previdência Social” (R$ 11.062,00). Preenchidas ambas as exigências, deixaria de ser hipo e passaria a plenamente capaz, como no Código Civil, habilitando-se à livre estipulação das relações individuais de trabalho. O contrato que celebrar, ou as alterações contratuais que porventura negociar com o empregador, com fundamento no citado parágrafo único, sobrepor-se-ão “às disposições (legais) de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos e às decisões das autoridades competentes”, como prescreve o artigo 444? Estamos diante de radical mudança de orientação legal, aparentemente contrária ao espírito tutelar da CLT. Como reagirão os juízes do Trabalho ao serem chamados a decidir entre o artigo 444 e o novo parágrafo único?
Em Direito, escreveu experiente jurista, nada pior do que o mal definido.
*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho