domingo, 3 de maio de 2015

Um luar na Casa da Morte, Aliás


DIEGO MOURA - O ESTADO DE S. PAULO
02 Maio 2015 | 16h 00

Ao viver dias de treva, Etienne Romeu jogou luz sobre a selvageria da ditadura militar

Quando caísse a noite, a Lua estaria exatamente na metade de sua metamorfose cíclica, partindo do quarto crescente em direção ao intenso brilho da fase cheia. Se as nuvens não atrapalhassem, até o fim da semana, ela se exibiria lá do alto, para quem quisesse ver. No entanto, para a bancária Inês Etienne Romeu haveria apenas escuridão. E dor. Naquele 5 de maio de 1971, a noite veio muito mais cedo para ela, por volta das 9 horas da manhã. Os tentáculos da ditadura militar, coordenados pelo temido delegado do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), Sérgio Paranhos Fleury, eclipsaram a vida de Inês por 96 dias. O único brilho ao seu alcance seria o dos olhos furiosos de seus torturadores, na forma de múltiplos choques, chutes, estupros. Inês, a guerrilheira, fora presa em São Paulo como terrorista e seu destino era a Casa da Morte, em Petrópolis.
Denuncia: "Não teríamos pista dos companheiros se Inês não existisse."
Denuncia: "Não teríamos pista dos companheiros se Inês não existisse."
“Inês era minha guru”, se emocionou com um leve sorriso a ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci. Cabelão curto todo penteado para cima, estilo Dilma Rousseff, e vestindo terno preto, cuja formalidade só era quebrada por uma infinitude de bolinhas brancas, Eleonora também já combatera nas trincheiras da “subversão”. Ela compunha o painel Violência e Gênero, organizado pelas Comissões Nacional e Estadual da Verdade de São Paulo, em março de 2013, no auge dos trabalhos de redescoberta do passado. “Ela continua sendo uma pessoa muito generosa, sobreviveu à Casa da Morte. Foi ela! Através do seu sofrimento. Conseguiu lapidar esse sofrimento, fazendo a denúncia.” Um silêncio preenche o auditório Paulo Kobayahi, na Assembleia Legislativa de São Paulo.
A Casa da Morte, insuspeito sobrado residencial que pertencia ao empresário alemão Mário Lodders, em Petrópolis, funcionou como instituição de extermínio e detenção clandestina do Centro de Informação do Exército (CIE) na década de 1970. O tenente-coronel reformado Paulo Malhães chamou-a de “centro de conveniência”, já que a principal função do lugar não era obter informações dos prisioneiros, mas sim transformar “subversivos” em colaboradores do regime. Pelo menos 22 pessoas passaram por lá, todas condenadas à morte sem direito de defesa. Apenas Inês sobreviveu.
Seus algozes queriam que ela virasse a casaca e passasse a colaborar. Fizeram com que ela assinasse papéis e até gravasse uma fita, na qual dizia que colaborava em troca da liberdade e de dinheiro. Ameaçaram. Caso rompesse o pacto, seria morta, presa para o resto da vida. Mesmo a irmã, que nada tinha a ver com política, sofreria. Em novembro de 1971, a família conseguiu que a justiça reconhecesse sua prisão, quando ela passou a cumprir pena no presídio Talavera Bruce, em Bangu, Rio de Janeiro. Lá amargaria mais oito anos de cárcere até a libertação com a Lei da Anistia. Deixou de ser detenta para se tornar a última presa política brasileira, pesando pouco mais de 30 quilos. Sobreviveu aos choques, espancamentos e 4 tentativas de suicídio: jogou-se na frente de ônibus, tentou cortar os pulsos e até vidro moído das ampolas de injeção engoliu, para se ver livre daqueles tormentos.
Apesar de tudo, na casa da irmã, em Fortaleza, Inês logo se recuperou e começou a estruturar a ampla denúncia que faria à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para revelar todos os detalhes sobre a Casa da Morte que conseguira guardar na memória: nomes, apelidos e características físicas de torturadores, identidade do proprietário do imóvel, planta do local e até mesmo o número de telefone da residência. “Muito cuidadosa e muito zelosa da tarefa dela. Compartilhou isso com pouquíssimas pessoas”, recordou-se com orgulho na voz Eleonora. “Nós não teríamos nenhuma pista dos companheiros e companheiras assassinados se Inês não existisse.”
As mais de 20 páginas do depoimento de Inês Etienne também narraram em detalhes as torturas sofridas por ela durante os 96 dias em que esteve trancafiada em Petrópolis. O deputado Adriano Diogo (PT), que presidia a mesa, convidou a historiadora da Unicamp Margareth Rago para ler ao público as palavras ditadas por Inês e datilografadas pelo escrivão, hoje amareladas pelo tempo. Começou. “A certa altura, o dr. Roberto me disse que eles não queriam mais informação alguma. Estavam praticando o mais puro sadismo, pois eu já havia sido condenada à morte e ele, dr. Roberto, decidira que ela seria a mais lenta e cruel possível, tal o ódio que sentia pelos ‘terroristas’”, leu Margareth. “O ‘Márcio’ invadia minha cela para ‘examinar’ meu ânus...” A voz dela afinou. O choro veio vindo de mansinho. “... e verificar se o ‘Camarão’ havia praticado sodomia comigo. Esse mesmo ‘Márcio’ obrigou-me a segurar seu pênis, enquanto se contorcia obscenamente. Durante esse período fui estuprada duas vezes pelo ‘Camarão’ e era obrigada a limpar a cozinha completamente nua, ouvindo gracejos e obscenidades, os mais grosseiros...” Não conseguiu mais. Os olhinhos fundos da historiadora se encheram d’água, sob uma chuva de aplausos molhados.
Não bastasse todo o sofrimento até ali, Inês nunca esteve tranquila. Desde que saiu da cadeia, dizia ser perseguida, contaram os amigos. Ninguém dava muito crédito, até 10 de setembro de 2003. O caso é bastante nebuloso: o porteiro do prédio onde morava, em São Paulo, foi avisado por ela de que um marceneiro viria a casa para execução de um serviço. O homem chegou e ficou por lá 45 minutos. No dia seguinte, a empregada de Inês achou a patroa agonizante no chão e paredes ensanguentadas. Mesmo com o laudo médico indicando um trauma craniano por “múltiplos golpes”, o 77º Distrito Policial de São Paulo registrou o caso como “acidente doméstico” e nunca identificou o suposto marceneiro. Entre uma sessão e outra de fisioterapia tentava recuperar os movimentos e o raciocínio de outros tempos.
“Se eu morrer, quero que todas as circunstâncias da minha morte sejam esclarecidas, ainda que demande tempo, trabalho e sacrifício, menos em minha memória, mais em nome da honra do País em que nasci, muito pela decência de minha Pátria e de meus compatriotas”, sentenciou a mineira Inês Etienne Romeu em seu depoimento à OAB, no ano de 1981. Depois de 34 anos de sua fala reveladora, Inês respirou pela última vez. Sob a honra do Brasil democrático, da decência da Pátria e de seus compatriotas, enfartou enquanto dormia, na noite da última segunda-feira, 27, aos 72 anos, como informaram os jornais. Sem censura. 
/COLABORARAM MURILLO CHAMUSCA E THIAGO DE OLIVEIRA

Tela quente


CLARISSA THOMÉ | RIO - O ESTADO DE S. PAULO
02 Maio 2015 | 16h 00

Imbróglio judicial envolvendo obras de Portinari, Di e Volpi é mais um episódio conturbado da derrocada dos Mayrink Veigas

Em julho de 2007, o anúncio de que quadros e aparelhos de jantar da socialite Carmen Mayrink Veiga iriam a leilão movimentou o mercado de artes. Quinze mil convites foram distribuídos. Atraídos pelo sobrenome famoso, sinônimo de luxo e requinte, 3,5 mil pessoas visitaram a exposição de pouco mais de 40 lotes, que incluíam telas de Guignard, Milton Dacosta, Volpi e Di Cavalcanti. A venda foi um sucesso, com arrecadação de R$ 2,5 milhões em valores da época - meio milhão a mais do que o esperado para pagar credores como o Banco do Brasil e o falido Banco Nacional. E poupou Carmen de vender um de seus quadros mais queridos: um retrato dela pintado por Cândido Portinari.
Desapego: Carmem e Tony vivem sozinhos no Flamengo; ela diz não ter apego aos bens materiais
Desapego: Carmem e Tony vivem sozinhos no Flamengo; ela diz não ter apego aos bens materiais
Quase oito anos depois do leilão, as paredes enfeitadas pelos quadros que pertenceram à “locomotiva do Rio de Janeiro”, como Carmen era chamada por Ibrahim Sued, o mais importante colunista da sociedade carioca, correm o risco de ficar nuas. A juíza Milena Angélica Drumond Morais Diz, da 38.ª Vara Cível, entendeu que houve fraude na execução de outra dívida, contraída junto ao antigo Banco Real, e determinou que os quadros sejam retomados. “Todo mundo conhece a família Mayrink Veiga das colunas sociais. Quem comprou sabia que eles estavam quebrados. A juíza entendeu que os arrematantes assumiram o risco”, diz Guilherme Ferreira, executivo de um fundo de investidores, o Jive Investments, que cobra a dívida. 
Para evitar oficiais de Justiça à porta, pelo menos um comprador já recorreu da decisão. E um dos argumentos usados é tão curioso quanto a retomada dos bens: ele reivindica que a tela Vênus, de Milton Dacosta, é sua por usucapião (direito à posse em função do uso contínuo e prolongado de um bem, o termo costuma ser mais empregado para casas e terrenos). 
O imbróglio judicial é mais um capítulo conturbado na derrocada da família Mayrink Veiga, iniciada no início dos anos 1990. Até então, o que se noticiava sobre o casal Tony e Carmen eram os jantares sempre pontuais e com lugares marcados, regados a champanhe - ela não gostava de servir vinhos e nunca tolerou atrasos. Falava-se das viagens internacionais, dos vestidos usados por Carmen, feitos por estilistas como Givenchy, Valentino, Guy Laroche, Guilherme Guimarães, todos amigos da socialite, que a levaram ao hall da fama da Vanity Fair como uma das mais bem-vestidas do mundo, em 1981. 
Pais de Antenor e Antonia, educados na Europa, o casal dividia-se entre o apartamento de mil metros quadrados no Morro da Viúva, no Flamengo, com vista para o Pão de Açúcar, a mansão em Angra dos Reis e o apartamento em Paris, uma exigência de Carmen. O empresário preferia Londres como base europeia da família. 
Enquanto a mulher se divertia em jantares, bailes e desfiles de moda, Tony, mais discreto e avesso a badalações, gostava de safáris. Certa vez, pagou US$ 150 mil por uma expedição à África para abater elefante, búfalo e rinoceronte. Um bimotor abastecia o acampamento - a água servida era da marca francesa Evian, contou ele em entrevista à revista Veja, comentando sobre o livro que preparava a respeito de suas caçadas.
Todo esse luxo era sustentado por uma holding de oito empresas do setor de armamentos e equipamentos para embarcações. A Casa Mayrink Veiga, fundada em 1864, forneceu armas para o Exército desde a Guerra do Paraguai - nos anos 1980, passaria de representante a fabricante de armamentos. Tony foi dono ainda da Rádio Mayrink Veiga, fechada pela ditadura militar em 1965, em represália por ter integrado a Cadeia da Legalidade de Leonel Brizola, criada três anos antes. 
As empresas começaram a fazer água com o confisco da poupança no governo de Fernando Collor, em 1990. Em 1993, o conglomerado inglês Ferranti, fornecedor de sistemas de defesa, foi à falência. Tony, representante no Brasil do grupo, dizia que tinha deixado dívidas com a Casa Mayrink Veiga. Também se disse prejudicado pela quebra da Indústria Verolme, que ficou com dois navios equipados pela Mayrink Veiga no estaleiro. 
O que se seguiu foram empréstimos e tentativas de renegociação da dívida. No ápice da crise, oficiais de justiça e advogados do Banco do Brasil estiveram no apartamento da família, em Botafogo, para penhorar os bens dos Mayrink Veigas - estavam acompanhados da imprensa. Era maio de 1995. Em setembro daquele ano, ocorreria o primeiro leilão judicial para o pagamento das dívidas: venderam o Rolls-Royce 1951, em que Carmen chegou à igreja no dia do seu casamento. 
Na tentativa de quitar parte do débito com o Banco Nacional, bens penhorados foram levados a leilão com autorização da 29.ª Vara Cível, em 2007. O Banco do Brasil também se habilitou. A socialite mineira Anna Vitória Motta Zammit foi uma das principais compradoras: levou um aparelho de jantar Imari (porcelana japonesa do século 16) de 125 peças, quatro quadros de Milton Dacosta, e dois quadros chineses, presenteados por Germano Gerdau, seu então namorado. O pecuarista paraense Benedito Mutran Filho ficou com outros dez quadros de Dacosta. A construtora Andrade Gutierrez adquiriu a tela Aula de Anatomia, de Chico Caruso. A lista incluía Cena de Folclore, de Di Cavalcanti, Igreja com Campanário, de Lasar Segall, Jurujuba, de Guignard, e Paisagem Rural com Figuras, de Volpi. 
São esses os bens que a Jive Investments foi autorizada a retomar pela 38.ª Vara Cível. Além do Nacional e do BB, os Mayrink Veigas deviam R$ 3,5 milhões para o Banco Real - a dívida está atualizada em R$ 14 milhões. Em garantia, Tony havia oferecido a Ilha Savaratá, no Rio de Janeiro. Só que o bem já estava hipotecado. Duas vezes.
A Jive especializou-se em adquirir créditos vencidos e não pagos, principalmente de bancos. São 52 pessoas trabalhando em 800 créditos comprados de empresas que deixaram dívidas. Adquirem as dívidas sem grandes informações sobre os inadimplentes. “A grande tecnologia é identificar bens que estão escondidos, que caminhos tomaram ou se estão em nome de laranjas”, afirma Guilherme Ferreira. 
Na busca por caloteiros contumazes, houve caso insólito. Um pecuarista deu como garantia de pagamento bois, que receberam chips na orelha, para serem monitorados. Como a dívida não foi quitada, a Justiça determinou o recolhimento dos animais com “brincos”. Montou-se operação com 20 tropeiros e caminhões. Quando chegaram à fazenda, em Minas Gerais, encontraram 400 orelhas no pasto. “O pecuarista mutilou o gado para fugir da execução. O juiz ficou revoltado com a crueldade e com o desafio à Justiça. Determinou o arresto de todos os bois no pasto. O pecuarista voltou à mesa de negociação e nós recebemos a dívida. Nosso objetivo não era ficar com os bois”, conta. 
Guilherme diz que é preciso ter veia artística às vezes. Um cafeicultor falido retomou os negócios com outra empresa: tornou-se fornecedor de cafeterias gourmet. “Ele deixou a empresa ruim morrer e abriu outra, com outra razão social, outro CNPJ. Nos passamos por negociantes interessados em abrir franquia de cafés em São Paulo”, lembra. Compraram R$ 3 mil em pó de café, alegando que testariam o produto. “Tudo isso serviu para embasar o pedido de sucessão da empresa para assumir as antigas dívidas. Tivemos acesso ao novo nome da empresa, ao CNPJ, aos e-mails. Nosso objetivo é fazer o devedor entender que é mais vantajoso negociar com a gente, resolver nosso crédito. Ou vai ter de pagar a todo mundo.” 
No caso dos Mayrink Veigas, o caminho para chegar aos bens foi pedindo a quebra do sigilo fiscal. Os quadros e obras de arte estavam nas declarações do imposto de renda de Tony e do filho, Antenor, avalistas da dívida. “Havia uma execução dessa dívida. Não é a família que decide quem vai receber, mas a Justiça.” 
Antenor, afastado das empresas da família desde 1994, lembra que o leilão teve autorização judicial. “Esse dinheiro nunca passou pela conta do meu pai ou da minha mãe. Houve um leilão autorizado pela Justiça, foi feito acordo para a venda desses quadros. Essas empresas pegam créditos podres e tentam salvar algum. O cara só quer fazer tumulto”, afirmou. 
O advogado Luiz Eduardo Cavalcanti Correa, que defende o investidor financeiro Angelo Romano, comprador de um Milton Dacosta, lembra que o leilão foi autorizado pela Justiça e amplamente divulgado, e que os autos do processo foram retirados do cartório judicial por dois anos pela então advogada do Banco Real, quando houve o leilão. “Mas, se nada disso for aceito, meu cliente tem usucapião. Ele está com o quadro há mais de sete anos na parede. Ficou absolutamente surpreso com essa decisão.” 
Soraia Cals, dona do escritório de arte que organizou o leilão, também se surpreendeu. “Em 20 anos, isso não tem precedentes. O leiloeiro tem fé pública, é um agente do Estado. O que estão fazendo é totalmente sem propósito.” 
Soraia diz que mesmo que a empresa retomasse os quadros, dificilmente conseguiria os valores de anos atrás. “Um Milton Dacosta, que hoje sairia por R$ 40 mil, foi vendido pelo dobro porque havia pertencido à Carmen Mayrink Veiga. Era o valor agregado por ser da Carmen”, afirmou. Episódio semelhante aconteceu com itens que pertenceram à Lily de Carvalho Marinho, viúva de Roberto Marinho. “Vendi por R$ 14 mil copinhos que em qualquer loja de antiguidade sairiam por R$ 100.”
Se os primeiros leilões foram traumáticos para Carmen, os últimos foram por decisão própria. Desfez-se de todos os móveis e objetos de decoração. Os vestidos de alta costura foram doados para o acervo do Instituto Zuzu Angel. As roupas, bolsas e sapatos, vendidos em bazares para as amigas. 
Ainda mora no apartamento do Morro da Viúva. Agora reformado, o enorme imóvel foi dividido. A parte mais ampla está fechada. Ela vive apenas com o marido no espaço menor. Tony, de 87 anos, fuma desde os 13. Sofreu três enfartes e contabiliza onze stents. Carmen, de 86, locomove-se em cadeira de rodas por causa de uma doença degenerativa que lhe tolhe os movimentos das pernas e lhe causa dores. Sai cada vez menos de casa. Quando perguntada em entrevistas se se ressente de ter se desfeito dos bens, responde que nunca foi apegada a nada na vida. Só aos filhos. E aos gatos.

Da natureza das coisas - LUIZ FELIPE PONDÉ, in FSP


FOLHA DE SP - 20/04

Não queira pegar todas as mulheres do mundo, mas cuide bem daquelas que vierem a sua cama


Em nosso mundo, não há natureza das coisas, entende-se que tudo seja uma construção social.

Delírio puro. Prefiro os antigos, justamente por perceberem que são os limites que nos humanizam, e não o desejo sem limites.

Os inteligentinhos dirão coisas como "conservador!". Mas a vida segue, o mundo se acabará um dia, e os inteligentinhos dirão, em seu último grito de agonia, "opressão!".

Mas não quero falar de política, que trato apenas como quem lida com uma ferida para que ela não se infeccione em demasia.

Quero falar de epicurismo. Não a ideia banal de epicurista como alguém que vai muito ao shopping ou come todas as gostosas do mundo (o sonho de qualquer cara normal). Falo do epicurismo antigo, do filósofo grego Epicuro (341 a.C. "" 270 a.C.). De Lucrécio (cerca de 96 a.C. "" cerca de 55 a.C.), filósofo latino, autor do poema "Da Natureza das Coisas".

Para ambos, a natureza da realidade é ser contingente. Isso quer dizer que "o fundo da realidade" é o acaso (que é a mesma coisa que contingência em filosofia).

Esse acaso é o movimento livre e sem ordem dos átomos. Portanto, tanto Epicuro quanto Lucrécio eram atomistas, o que é a mesma coisa de dizer que eram materialistas. A alma, esse "ar", se perde no momento da morte.

Como dizia Epicuro, quando eu estou, a morte não está, quando ela está, não estou. Ou seja: não há o que temer na morte porque ela é uma libertação da eterna contingência que move um destino cego. E a melhor coisa nisso é que a "consciência" desaparece.

Essa ideia me parece insuperável como liberdade. Ter a pedra como destino é meu sonho de eternidade.

Sendo assim, morreu, acabou. Muita gente teme uma possibilidade como essa.

Eu tendo a achá-la sedutora principalmente quando suspeito que viver para sempre seria como ser obrigado a beber água para sempre, mesmo tendo passado a sede.

Vejo beleza nisso tudo. A contingência liberta, mas não no sentido moderninho de que por isso podemos nos "inventar" ao bel prazer. Isso é coisa de "teenager".

Mas, justamente o contrário: meu desejo também é contingente, como tudo mais. Dar asas a ele é ter fé de que eu, diferentemente do resto do universo, não sou também feito à semelhança do acaso.

Só os iniciantes confiam em si próprios. Meu desejo é a porta de entrada por onde a contingência se instala do seio da minha alma.

Não, a beleza está no que os antigos epicuristas viam nessa condição: sem deuses, sem eternidade, fruto do acaso, essa é a natureza das coisas, ser cega.

O prazer de Epicuro era justamente o de escapar da escravidão do desejo, não essa ideia contemporânea de que viver a realização contínua do desejo é a felicidade.

A concepção contemporânea de felicidade é brega, coisa de gente que se emociona quando um novo shopping é aberto na cidade.

Lucrécio entendia que a cegueira da natureza é a natureza das coisas.

É dela não carregar sentido em si mesma, e por isso é tão importante: porque me lembra continuamente que a vaidade e as expectativas, com o tempo, se tornam um tormento.

Não é totalmente absurdo escutarmos aqui o sábio israelita, também antigo, que escreveu o "Eclesiastes" (Velho Testamento): "vaidade, tudo é vaidade".

A grande questão é como se sustenta uma vida feliz decorrente dessa natureza das coisas. Podemos dizer que decorre, antes de tudo, do "relaxamento" do desejo que a consciência da contingência traz: a sabedoria da natureza é ela ser puro átomo e não uma lei.

Não há "missão" na vida. Viver segundo os prazeres do trabalho, da mesa e do corpo da mulher é tudo que podemos fazer. O puro prazer de existir.

Sem excessos, do contrário, nos tornamos escravos do trabalho, da mesa e do corpo da mulher.

Não porque uma danação eterna nos espera (ninguém nos vigia), mas porque o excesso do desejo destrói seu próprio usufruto na medida em que nos desesperamos com a possível falta do objeto desse desejo.

Dito de forma simples: não queira pegar todas as mulheres do mundo, mas cuide bem daquelas que, por graça da contingência, vierem a sua cama.