Quando um banco entra em crise, o Banco Central intervém para evitar a falência; quando a segurança de uma cidade entra em crise, o governo federal aciona a Guarda Nacional; quando a saúde fica catastrófica, importam-se médicos; quando uma estrada é destruída por chuva, o governo federal auxilia o estado; mas quando um município não tem condições de oferecer boa escola a suas crianças, o governo federal fecha os olhos, porque isso não é responsabilidade da União. Limita-se a distribuir, por meio do Fundeb, R$ 10,3 bilhões por ano, equivalente a R$ 205 por criança ou R$ 2 a cada dia letivo.
A boa educação de uma criança, assumindo um bom salário para atrair os melhores alunos das universidades para o magistério, em boas e bem equipadas novas escolas, todas em horário integral, custaria R$ 9.500 por ano, por aluno. Das 5.564 cidades brasileiras, a receita orçamentária total não chega a R$ 9.500 por criança em idade escolar. Se considerarmos os gastos fixos e custeios da administração municipal, nenhuma de nossas cidades teria condições de oferecer educação de qualidade a suas crianças.
Para mudar tal panorama, o país tem dois caminhos: deixar que o futuro de nossas crianças dependa de alta renda de sua família ou responsabilizar a União pela educação dos filhos do Brasil.
As cidades que não têm condições de oferecer uma boa educação para seus filhos apelariam ao governo federal e este adotaria as escolas dessas cidades, respeitando todos os acordos federativos, todos os direitos dos municípios, mas também os direitos de todas as crianças do Brasil, independentemente da cidade onde moram.
Antes mesmo de uma Lei de Adoção Federal ser aprovada, quem sabe um ou outro prefeito não toma a iniciativa de ir ao governo federal e dizer: “Presidente, não tenho condições de oferecer a educação que minhas crianças merecem como qualquer criança brasileira. Por isso, peço que o governo federal adote as escolas da minha cidade”.
Para isso, o caminho é uma carreira nacional com elevados salários e elevadas responsabilidades, com estabilidade submetida a avaliações periódicas, em edificações bonitas e confortáveis com os mais modernos equipamentos, em horário integral.
Lamentavelmente nem todos os prefeitos teriam este gesto de responsabilidade para com suas crianças. Muitos vão preferir continuar sem condições de pagar bons salários, enfrentando greves periódicas que terminam com mínimos aumentos de salários e imensas perdas pedagógicas. Mas, se de repente, muitos despertassem e colocassem os interesses de suas crianças acima de tudo, o governo federal poderia definir critérios para selecionar aos poucos as cidades que seriam adotadas.
Na medida em que este caminho fosse dando certo, em 20 ou 30 anos veríamos todas as crianças brasileiras serem tratadas como brasileiras, em vez de municipais, como hoje. O país teria um sistema de qualidade e com qualidade igual na educação de suas crianças, quebrando o muro do atraso e o muro da desigualdade que nos caracterizam.
sábado, 3 de maio de 2014
Conspirando com Gabo
26 de abril de 2014 | 17h 16
Ariel Dorfman - O Estado de S. Paulo
Nem só de literatura são feitas as lembranças de Gabo, agora que o seu corpo já não está entre nós. Acredito que nos sete anos que passei, desde 1973, conspirando com ele, graças ao exílio e a Pinochet, juntando-me a ele, almoçando em sua casa em Barcelona e jantando no Pedregal de San Ángel, sentados nos cafés de Paris e de Roma e até, acho, certa vez, em Estocolmo, sempre conspirando, conjurando, tramando, sempre em busca da maneira mais rápida e imaginativa para acabarmos com as ditaduras que assolavam nossa América Latina.
Thomas Bravo / Reuters
Gabriel García Márquez faleceu em 17 de abril
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Que mais poderia desejar um jovem escritor latino-americano, como eu era naquela época, senão passar horas e horas na companhia do autor de Cem Anos de Solidão? Era possível pedir algo mais, em meio àquele caudal de encontros, Gabo abrindo suas agendas de contatos, Gabo atendendo ao telefone nas madrugadas e Gabo entrevistando figuras da resistência, sempre disposto a intervir para salvar uma vida, transpor uma porta, escrever um artigo? Era possível pedir mais?
Eu não tinha sequer me colocado a questão quando o destino me ofereceu, em agosto de 1980, a oportunidade de compartilhar com Gabo e vários outros escritores uma semana inteira em Cocoyoc como jurados de um concurso literário sobre militarismo na América Latina. Digo que o destino me proporcionou essa graça, porque é uma delícia narrar a própria vida com uma frase típica do próprio García Márquez, mas a verdade é que o convite não veio do destino e sim de Julio Scherer, o lendário diretor da revistaProceso. Assim que recebi o convite, tive consciência do que me fizera falta ao longo desses sete anos anteriores, com a revelação de que, durante tantas sessões insubstituíveis e amáveis com Gabo, estimulados pela urgência da política, quase nunca havíamos tido tempo de falar sobre literatura, daquelas obras que, em tempos mais normais, teriam sido tema cotidiano e incessante de conversação.
E aconteceu que a semana que passamos nesse balneário mexicano foi uma interminável tertúlia estética. O tema, para mal dos nossos pecados, era o militarismo na nossa triste América e não o modo como Chekov fazia fluir um conto ou a terna violência com a qual Cervantes tratava e maltratava seus personagens. Mas a Dama do Cachorrinho, o Jardim das Cerejeiras , o Quixote e uma quantidade de outros livros que nos rondavam iam se infiltrando nas conversas que acompanhavam as comilanças e as deliberações. Como não falar de Kafka e de Dante quando discutíamos romances ou as fronteiras imprecisas entre ficção e testemunho, fantasia e jornalismo, quando nos perguntávamos se cabia em nossa seleção um compêndio de fotografias? E foi nessa semana que tive inúmeras ocasiões para discutir Sófocles com Gabo, ou La Vorágine, ou as vicissitudes do thriller. Mas, ele e eu não estávamos sozinhos, e às vezes me bastava simplesmente presenciar às escaramuças de Gabo com Julio Cortázar, outro dos jurados, ou a tenacidade e finura com que ele defendia um texto diante de Pablo González ou René Zavaleta ou Theotonio dos Santos; bastava-me isso para sentir que, vagamente, ia me aproximando de García Márquez de uma maneira nova.
O que trouxe comigo, isto sim, dessa semana foi uma lembrança precisa e imorredoura.
Na primeira noite em que chegamos, enquanto bebericávamos do lado de fora de seu chalé, observei que Gabo segurava debaixo do braço um manuscrito, e não o soltava nem sequer para beber ou para servir-se de um tira-gosto; por nada neste mundo ele queria pôr essas folhas sobre a mesa. Acho que esperava que eu perguntasse do que se tratava, que misterioso e fino objeto ocultava. E não o decepcionei, perguntei. Ele sorriu de maneira quase provocadora e certamente maliciosa e me deixou espiar o título: CRÓNICA DE UNA MUERTE ANUNCIADA. Quis sequestrar o romance imediatamente, esquecer os vários volumes que esperavam meu veredito e benevolência em meu quarto, mas Gabo não permitiu. "As duas mulheres mais importantes da minha vida", sentenciou, referindo-se a Mercedes, sua esposa, e a Carmen Balcells, sua agente, "declararam que se eu deixar este livro sair das minhas mãos antes de ser publicado vão me matar." Era um exagero. Julio Scherer, que ouvia com uma expressão sagaz e um tanto maliciosa nosso diálogo sentado em sua cadeira embaixo dos coqueiros, admitiu que já havia lido a crônica na noite anterior. Mas isso não me dava nenhum direito, tampouco esperança, pois nunca se soube que ninguém decente pudesse negar algo a Scherer quando ele pedia com seu habitual entusiasmo e intensidade. De maneira que decidi não insistir.
Então, para aliviar minha frustração, Gabo me presenteou com uma revelação. Contou que acabara de receber, acrescentando que foi depois que terminou de escrever o romance, uma cópia da autópsia do cadáver de Cayetano Gentile, um amigo seu que em 1951 foi assassinado a facadas e cuja desamparada sombra e destino exigiam havia décadas um depoimento intenso e inesquecível.
Gabo se inclinou para a frente e baixou a voz, como se fosse me confidenciar um segredo extraordinário.
"O único ferimento mortal", disse García Márquez, "encontrado no cadáver foi nas costas, justamente na terceira vértebra lombar, e lhe perfurou o rim. E, sabe de uma coisa? Foi ali, exatamente nesse ponto, que eu, desconhecendo em absoluto esse detalhe, imaginei a lesão do meu personagem Santiago Nasar; pus uma chaga na minha ficção que imitou, recordou e antecipou a exatidão do real."
Os olhos de Gabo brilhavam como os de uma criança maravilhada, como devem ter brilhado os olhos de Bernal Díaz del Castillo quando, não muito distante do local em que eu conversava com meu amigo, viu a capital dos astecas e declarou que o lembrava das cidades fictícias de Amadis de Gaula. E meus olhos também brilhavam por essa viagem instantânea até as origens, pela vertigem que experimentava ao poder aproximar-me da maneira como García Márquez criava suas obras. Para ele, como para nossa América, tudo era ao mesmo tempo verídico e fabuloso, história e invenção, dor e mito.
Então, nossos olhos brilharam simultaneamente, os meus e os dele, por compartilharmos da alegria de quem descobre um rio imenso no instante obscuro em que nasce da fonte mais remota de uma montanha. Porque o arcanjo Gabriel me presenteava com a certeza de que, depois de tudo, talvez não estivéssemos tão sós, se podíamos imaginar a praga da nossa violência e a praga da nossa desventura de uma maneira tão minuciosa, excessiva e perfeita.
Uma certeza que continua e continuará nos presenteando uma América agora de luto./TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
O lixo é um luxo
Como outros bens, as sobras luxuosas da Rua Oscar Freire deveriam ser mais bem distribuídas
26 de abril de 2014 | 16h 33
Joca Reiners Terron - O Estado de S. Paulo
Caso o leitor ainda não tenha percebido, a estrutura do lixo em São Paulo compreende uma narrativa. A história contada com sintaxe tortuosa e repleta de lacunas está composta por lixeiras residenciais e condominiais de todos os formatos, e se estende à decepcionante malha pública de lixeiras de ruas, avenidas e praças, invariavelmente depredadas ou cheias, a ponto de o faceiro pedestre lançar um papel de bala em uma delas e recebê-lo de volta na cara por não haver mais espaço. Faltam nessa cadeia lixeiras de reciclagem, aquelas coloridas, mais raras até que as próprias usinas de reciclagem e a cartela premiada da Mega-Sena. E o que sobra, nos bueiros e meios-fios, em cada esquina, na porta de casa, em todo canto, é lixo. Ou, mediante o ponto de vista, dinheiro.
Renato S. Cerqueira/Futura Press
High trash. Movida a energia solar, lixeira compacta resíduos e avisa quando lotou
Capítulo especial desse enredo são as três lixeiras de luxo instaladas na semana passada pela Associação dos Lojistas dos Jardins na região da Rua Oscar Freire, epicentro do consumismo. São objetos high tech que, desobedecendo à máxima popular que se refere às coisas tão perfeitas que "só faltam falar", falam de verdade. Ou ao menos escrevem, pois estão dotadas de sistema que avisa sua administradora quando lotam, por meio de mensagem de texto para celular. As lixeiras eletrônicas custam – cada uma – R$ 8.800. Importadas dos EUA, funcionam a energia solar e têm mecanismo de compactação de conteúdo. Com isso, sua capacidade equivale a 12 vezes a de uma lata de lixo comum de iguais proporções. Testei uma delas na Alameda Lorena: joguei um papel de bala em seu interior. Não foi devolvido em minha cara, além de ter sido apetitosamente mastigado pela lata. Só falta arrotar, pensei. De imediato a máquina soltou ruído semelhante a um arroto de satisfação.
Mas o que nos conta a história do lixo na cidade? A resposta, sem dúvida, poderia ser dada pelos catadores que vagam por aí com suas carroças inumanas atreladas ao lombo. Talvez eles nos revelem o que podemos intuir somente em vê-los: não evoluímos um tiquinho desde o Descobrimento. O dia 13 de maio de 1888, ocasião da sanção da Lei Áurea, foi um blefe do calendário. As carroças utilizadas por catadores em São Paulo são cerca de quatro vezes maiores que suas equivalentes argentinas. Produzido ao longo do ano inaugural do primeiro mandato presidencial de Lula (2003–2006), o documentário franco-brasileiro Le Rêve de São Paulo (O sonho de São Paulo), de Jean-Pierre Duret e Andrea Santana, relata a migração de camponeses nordestinos para a metrópole. Alguns deles escapam da indigência graças ao trabalho na incipiente indústria de reciclagem metropolitana.
O filme concede a oportunidade de verificar aquilo que ocorre detrás dos suspeitos tapumes que, sob viadutos e pontilhões, ocultam catadores e suas carroças carregadas. Nesses centros de reciclagem, famílias inteiras operam o milagre urbano da transmutação do lixo em material reciclável. Vencem a miséria e sonham. "Agora sei o que um passarinho sente ao sair da gaiola", diz Carlos, de 36 anos, que arrastou carroça ao longo de nove anos para construir sua casinha em uma favela: "Alegria". No entanto, as condições de trabalho desses catadores – em sua luta cotidiana contra o tráfego assassino, respirando monóxido de carbono, arrastando pesos muitas vezes superiores ao do próprio corpo – permanece menos que humana.
Na Oscar Freire, depois de jogar um palito de picolé na superlixeira, um garoto se assusta com o barulho da compactação. Aos pedestres curiosos, a máquina de compactar lixo parece dotada de poderes sobre-humanos. Mais que isso, parece limpinha e insuspeita, se comparada às carroças dos catadores. Nesse quesito, a narrativa compreendida pelo lixo é sempre assunto sensível. Alguns se lembram do escândalo causado pela lixeira de R$ 1.000 comprada com cartão corporativo pelo então reitor da UnB, Timothy Mulholland, em 2008. Ou do curta-metragem Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado, pioneiro em abordar o lixo da sociedade de consumo como narrativa. No entanto, 25 anos após o filme do cineasta gaúcho, ainda nos surpreendemos com mecanismos que facilitem o trabalho de reciclagem de catadores como Carlos e muitos outros.
O retrato da situação do lixo em São Paulo está nas lixeiras tradicionais diante dos prédios, invariavelmente gradeadas. O lixo trancado dificulta sua recolha, além de indicar que a elite paulistana não quer dividir nem seus restos. Seria mais racional que a cidade as substituísse por compactadoras similares às dos Jardins, assim a reciclagem realizaria seu trabalho essencial com mais eficácia e menos dolo. A compactação não eliminaria o catador, mas diminuiria o peso que ele carrega. A adoção de lixeiras compactadoras em maior proporção mudaria o cenário, mas mesmo assim o lixo precisaria ser recolhido num sistema que preveja recolha de recicláveis. O lixo, como tantos outros bens, precisa ser distribuído. Em 2006, a Oscar Freire, sempre na vanguarda, aterrou sua fiação elétrica, antecipando atual projeto da prefeitura. Tais melhorias são bem-vindas, mas consumidores de luxo não deveriam ser os únicos cidadãos com direito a ver o céu: os recicladores de lixo também merecem um novo horizonte.
JOCA REINERS TERRON É ESCRITOR E AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE A TRISTEZA EXTRAORDINÁRIA DO LEOPARDO-DAS-NEVES (COMPANHIA DAS LETRAS) E DO TEXTO DA PEÇA BOM RETIRO 958 METROS, ENCENADA PELO TEATRO DA VERTIGEM ENTRE 2012 E 2013
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