domingo, 13 de abril de 2014

Conta do sebastianismo


Mais uma vez retorna o coro do 'volta, Lula', mas a mudança teria alto custo

12 de abril de 2014 | 16h 49

Marco Aurélio Nogueira
Política é cálculo e oportunidade, paixão e frieza. Iniciativa, capacidade de preparar o futuro, domar ventos e crises, interagir com a vida. Passa por reconhecer erros e assumir responsabilidades. É ação coletiva: carreiras solo dificilmente progridem e o companheirismo, as lealdades, as amizades pesam de forma determinante. O coro "volta, Lula", repetido à boca pequena e sempre mais recorrente, é um convite à reflexão sobre a natureza da política e especialmente sobre as chances de sucesso de suas operações, custos e resultados devidamente considerados.
Ele deve estar se indagando se valeria a pena entrar na disputa a esta altura - Ricardo Stuckert/Instituto Lula
Ricardo Stuckert/Instituto Lula
Ele deve estar se indagando se valeria a pena entrar na disputa a esta altura
Para começar do começo: por que cresce o coro? Sondagens de opinião não indicam declínio categórico do prestígio da presidente. Tem havido certas inflexões preocupantes, é verdade, mas seu nome permanece forte. Por que então pedem a volta do ex-presidente? Por que tamanha insistência de Lula em dizer que Dilma é a "sua" candidata, pois é a "melhor pessoa para vencer as eleições" e ele, Lula, se pudesse registraria em cartório a decisão de não sair candidato? Em sua visão, tudo não passaria de enorme boataria, não de uma intenção.
Se o que atiça o coro não é o ex-presidente, então temos um problema: há gente demais insatisfeita com o desempenho presidencial e insegura com a real capacidade eleitoral de Dilma. Petistas, empresários, banqueiros e peemedebistas pedem o retorno do ex-presidente. Há, também, os que usam a situação para negociar novos espaços, promover acertos de contas ou simplesmente tumultuar o ambiente. Mas é um fato que o mal-estar está instalado em Brasília. Motivos certamente não faltam. Problemas desgastantes sucedem-se sem parar. Petrobrás, crise energética iminente, André Vargas, inflação emergente, CPIs, riscos e tropeços da Copa: tudo desaba sobre a presidente e se converte imediatamente em fato político. E Dilma, pouco afeita aos humores e exigências da política, tende a submergir, a silenciar ou a tartamudear. Não passa confiança, nem firmeza.
Lula foi direto ao ponto: seria preciso "ir pra cima", enfrentar a oposição, defender o governo "com unhas e dentes", reagir antes que seja tarde demais. Salvar a presidente é garantir o futuro. Como há um componente congelado no cenário – o estilo, a personalidade e a biografia de Dilma, que não mudarão –, o contraste se agiganta. Dilma é enfezada, não tem carisma nem empatia. Lula é puro charme, transpira humildade e autenticidade, é franco, simples e didático. A astúcia em pessoa. Levanta multidões, agrada e sabe cortejar quem dele se aproxima. Alimenta uma legião de fãs e muitas expectativas. Perto dele, Dilma é opaca, não agrega nem entusiasma.
Os "sebastianistas" acreditam que Lula descongestionaria o ambiente, abriria novos espaços e daria novo fôlego a tudo. Animal político por excelência, Lula gerenciaria com mais competência as relações Estado/sociedade, acalmando tanto a movimentação social quanto o desarranjo e a pressão político-institucional, o que Dilma não tem conseguido fazer. Estão preocupados com o déficit de articulação e coordenação política que se evidenciou no País e ameaça a estabilidade econômica, a intermediação política, a continuidade das reformas, os arranjos político-sociais estruturados desde 2002 e, evidentemente, os negócios. Sem a resolução desse déficit, ficaria abalado o pacto informal entre as grandes empresas nacionais e multinacionais, os bancos, o agronegócio e a grande agricultura, a política tradicional e parte dos interesses organizados do mundo do trabalho.
Como esse pacto foi articulado por Lula, por que então não pedir a ele que embale a criança e injete oxigênio no que está ofegando? Com ele, seria possível voltar a sonhar; com Dilma, o sono continuaria agitado, instável. A aposta é que Lula tem personalidade, estilo e biografia para resgatar aquilo que fez a fortuna de seus dois governos, atualizando-os à nova fase do País.
Trata-se de uma construção mental que excita os ambientes, criando a sensação de que existe interna corporis, ao alcance da mão, uma alternativa para que o projeto de poder se reponha em melhores condições.
Há, porém, um custo alto na hipotética operação. Primeiro, porque a mera cogitação dela ajuda a enfraquecer o governo e a piorar a situação. Quanto mais Lula diz não querer o cargo, mais passa a impressão de que nem mesmo ele acredita em Dilma. Segundo, porque ela escancararia uma grosseira falha de estratégia: teria sido um erro entronar Dilma como sucessora de Lula. Com ela, o País não seguiu na mesma toada. Ao ser "deslulizado", entristeceu. E o pacto que sustenta o governo ficou com maiores dificuldades operacionais. Terceiro, porque nunca é fácil trocar o piloto com o avião em pleno voo. Turbulências e trepidações serão certamente inevitáveis, figurinos e discursos precisarão ser refeitos às pressas, aliados perdidos terão de ser novamente agregados. Quarto, porque Lula, precisamente por ter muita sagacidade e talento (além de muito capital político), deve estar pensando se vale a pena entrar na disputa agora. Ele precisaria sacrificar Dilma, o que não é fácil nem propriamente dignificante. E precisaria concorrer num quadro que não se mostra tão tranquilo assim, ou seja, no qual teria tanto possibilidades de vitória glorificadora quanto de derrota.
Há, por fim, uma questão que complica o cálculo. Bastaria um bom timoneiro para que o navio volte a singrar os mares sem sobressaltos? A qualidade da nave e da marujada também pesa, e quase sempre de modo categórico. O mesmo vale para a cartografia que orienta o capitão: um mapa malfeito, desatualizado ou imperfeito pode levá-lo na direção de rochedos implacáveis ou deixá-lo à deriva. Como se trata de política, o mapa é o que costumamos chamar de projeto. E ele não existe de modo claro e suficiente.
MARCO AURÉLIO NOGUEIRA É PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA E DIRETOR DO INSTITUTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS E RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA UNESP

O Ilaudo é F.


De como o ex-camelô de Itapipoca domou um canto selvagem do centrão de São Paulo

12 de abril de 2014 | 16h 27

Christian Carvalho Cruz - O Estado de S. Paulo
Tirando fornicação, flor e "fui fazendo, patrãozinho", o Ilaudo não gosta de quase nada que começa com a letra F. Festa, funk, futebol, fumo, Facebook, ficar esperando cair do céu, fiscal folgado da Prefeitura, nada disso. O Ilaudo gosta de limpeza, arrumação e, mais recentemente, de girafas. Mas paixão mesmo, dessas de não conseguir ficar longe, ele sente por um pedaço barulhento e inclemente da região central de São Paulo. É a ponta daquele V formado pela confluência da Avenida Tiradentes com a Rua Brigadeiro Tobias, uns 300 m² de zona morta por onde a gente pode subir ou descer a Passarela da Rua das Noivas, pertinho da Estação da Luz. Quer dizer, pode subir ou descer de um ano pra cá, depois que o Ilaudo tomou conta, assim meio de fininho, sem avisar ou pedir permissão. "Fui fazendo, patrãozinho." Antes disso, outras coisas começadas com F deixavam o local com ares de Faixa de Gaza: feira do rolo (o famoso escambo de celulares roubados), fezes humanas e até furo de faca. Um fuzuê desgraçado em que ninguém dava jeito, fosse na velha ou na Nova Luz.
Mas onde está a beleza na cidade dos shoppings, Borba Gato e Minhocão? - Tiago Queiroz/Estadão
Tiago Queiroz/Estadão
Mas onde está a beleza na cidade dos shoppings, Borba Gato e Minhocão?
Interessado em alugar o prédio contíguo e ampliar seus domínios econômicos, o Ilaudo – de batismo Sebastião Ilaudo de Sousa Braga – resolveu dar cabo daquele furdúncio. O imóvel, uma linguiça de 22 metros de comprimento por 6 de largura, com três andares e seis salas comerciais, estava fechado havia cinco anos. Os proprietários pediam R$ 3 milhões pra se livrar dele. Comprar o Ilaudo não podia, mas alugar para sublocar as salas, quem sabe. Ele estava ficando bom nisso. Chegado do Ceará na gestão Paulo Maluf (o Ilaudo conta o tempo assim, de prefeito em prefeito), ele começou como camelô. Tinha 19 anos, uma banca de cintos, meias e cuecas na Rua Mauá e o objetivo de abrir uma loja de verdade. "Eu não queria capinar a vida toda, que é o que meu pai fazia, minha mãe fazia, meus 11 irmãos faziam, todo mundo fazia no nosso sítio em Itapipoca. Eu queria ser comerciante. E comércio tem que ser em São Paulo." Na gestão Marta Suplicy, ele já tinha conseguido poupar o suficiente para adiantar três meses de aluguel (sem fiador, só assim, sabe como é) e montar seu primeiro negócio formal – uma loja de bolsas e malas na mesma Rua Mauá, no térreo do antigo Hotel Federal Paulista, àquela altura já transformado em cortiço-pensão, a fina flor da moradia low cost.
Era só uma portinha de 1,5 metro de frente, mas serviu para aumentar o faturamento e, mais importante, a fama de inquilino bom pagador do Ilaudo. Outros proprietários passaram a querer alugar pra ele. E ele a realugar pra terceiros. Cinco prefeitos depois, já são 17 pontos comerciais nesse jeito ilaudiano de ganhar dinheiro, incluindo uma loja alugada pra própria mulher, a Sueny, e outra pro próprio filho, o Ilaudo Júnior. Se Ilaudo paga, Ilaudo cobra – são apenas negócios. "Pago uns R$ 50 mil de aluguel por mês, e recebo uns R$ 70 mil. Mas é valor por cima, não sou bom de exatidão. Meu negócio é ir fazendo, patrãozinho."
Pra alugar o predinho da passarela o Ilaudo teve que fazer um tanto mais. Aquilo só daria dinheiro se as pessoas voltassem a andar por ali e, de preferência, devagar e não correndo, segurando a bolsa ou tapando o nariz. "Primeiro paguei 200 contos pro casal de mendigos que morava aí ir embora", diz o Ilaudo, apontando com o queixo o terreno que se espraia da rampa em espiral da passarela até a linha do trem. Faziam de tudo lá, de fogueira pra queimar fio roubado a fuc-fuc-nheco-nheco. "Depois gradeei tudinho e levantei um muro onde a grade não alcançou." Então reinstalou a iluminação original da passarela: no total, 13 lâmpadas e luminárias, mais umas gaiolas de proteção para dificultar o festival de afanação. Hoje, a 13ª lâmpada serve de marco territorial pro Ilaudo. Ele adentra a passarela e, olhando pra cima, vai contando: uma, duas, três, quatro... Na última, suspira feliz e fala: "Até aqui é meu". Tão dele que ultimamente mandou trazer umas plantas e, naquela terra antes seca e fedida debaixo da passarela, fez nascer um jardim que ele só parou de regar todos os dias por causa da atual escassez de água que uns e outros pros lados do Morumbi fingem não ver.
Perfeccionista, porém, o Ilaudo pensou que pra ficar o fino o espaço carecia de enfeite. Pois ele encontrou dois, logo depois do carnaval, jogados na calçada da Estação da Luz. Convocou uns cabras e carregaram o par de girafas de fibra, em tamanho quase natural, para o neojardim da passarela. "Era resto de alegoria. Ficaram lá três dias e ninguém veio buscar, nem o lixeiro, então botei as bicha de pé. Agora todo mundo tira foto. Não ficou uma beleza?" Numa cidade que tem estátua do Borba Gato, Minhocão e shopping center com forma de transatlântico na beira do Rio Tietê, quem somos nós pra avaliar a feiura das girafas do Ilaudo? E lá estão elas, firmes e empertigadas, quase rindo do trânsito sempre parado na Tiradentes, dando um quê fantasioso a esta ferrada metrópole fatigada. Pra completar, o Ilaudo ainda as rodeou de árvores frutíferas. Já colheu e comeu goiaba, e agora espera pelas laranjas, os limões, as mexericas e as romãs.
É fácil ver o resultado do esforço do Ilaudo. Atravesse a passarela pro lado da Rua Florêncio de Abreu. Ali há uma banca de jornal, uma loja de vestidos de noiva, um ponto de táxi e uma lanchonete. Mas não tem um Ilaudo, de modo que o pedaço continua meio fodido. O lixo é o de menos. Os mal-encarados vendendo celulares, baterias e até sapatos usados, também. O pior é a fedentina, na opinião do Antonio do Nascimento, jornaleiro. "É tanto cocô de gente que, quando eu abro a banca, só torço pro vento soprar pra outro canto. Se eu tivesse dinheiro fazia o que o Ilaudo fez." Já o taxista Robson de Carvalho jura que não é desfeita, mas considera as girafas do Ilaudo um horror. "Pra quem olha daqui elas tapam a Estação, uma das poucas vistas bonitas do bairro. Eu colocaria elas no Jardim da Luz. Lá tem um monte de árvore, meio selva, é mais adequado." E o português da lanchonete, o Américo Pereira da Costa, há 53 anos no pedaço, é prático – está lá a caneta equilibrada na orelha pra provar. "Veja bem, eu já pago meus impostos, não tenho que cuidar do que não é meu. Do meu eu cuido. Pago um dinheiro a um policial que vem todos os dias vigiar enquanto fecho o bar à noitinha. Daí até a manhã seguinte, fica ao deus-dará." Vai ver é por isso que a estátua da santa que ornamenta a fachada vizinha está presa com cabos de aço à parede.
Do lado de cá, os fantasmas se foram. No pós-Ilaudo, até o proprietário do predinho voltou a ocupar a sala do último andar. E está feliz que só. "Papai, que era imigrante romeno, comprou o imóvel em 1951. Morávamos em cima e embaixo era repleto de lojas. Era bem maior, mas foi sendo derrubado por causa das obras da avenida e do metrô", conta o Luiz Gorodetcki, de 74 anos, representante comercial do ramo de tecidos. Ele cobra R$ 8,5 mil de aluguel por mês do Ilaudo, "e ele nunca atrasou um dia sequer". Aí o Ilaudo subloca o térreo pra uma pastelaria, uma sorveteria e uma lojinha de miudezas, e o primeiro andar prum restaurante a quilo. Arrecada R$ 12 mil, lucro de R$ 4 mil, não tem falcatrua. O calçadão em frente ganhou mesinhas de plástico e é comum ver famílias vindas das compras na 25 de Março lanchando por ali. E tudo é tão limpo que não tem formiga nem pomba bicando farelo. O imóvel continua à venda, mas o Luiz diz que agora, com as benfeitorias do Ilaudo, por menos de R$ 5,5 milhões nem abre conversa. "Esse rapaz é um tesouro", ele diz baixinho. "Trabalhador, dono de boas intenções e bom coração. Daria um grande vereador." O Ilaudo ri encabulado e sacode a cabeça. "Longe de mim, patrãozinho."
A verdade é que o Ilaudo, com o seu "fui fazendo", conquistou uma rede de solidariedade na região, particularmente entre os colegas comerciantes da Rua Mauá. Dizem por lá que o Ilaudo é sujeito homi. E isso não tem a ver com o fato de ele ser macho de usar calça branca agarrada e sapato bico fino preto e pintar as unhas com esmalte incolor. Tem a ver com o fato de poderem contar com ele. "Se um em cada três de nós fosse igual o Ilaudo, o mundo tava salvo", diz o Francisco Lemos, eletricista da rua. Igual a ele tem o Alemão da banquinha de relógios, que dá ração pros cinco vira-latas e um pit bull que o Ilaudo amocozou junto das girafas. Ou o Neguinho do Apoio, que, de porrete na mão e sentimento de PM na alma, patrulha a área contra ataques de trombadinhas e pichadores. Aquele é o mundo do Ilaudo. Aos 41 anos e 22 de São Paulo, ele nunca botou os pés na Avenida Paulista, na Oscar Freire ou no Parque Ibirapuera. Tem fetiche pelo Museu da Língua Portuguesa, mas nunca ultrapassou o portão. "Não dá tempo. Preciso trabalhar e, nos últimos tempos, cuidar da passarela", explica. Quem não gosta muito disso é a Sueny, mulher do Ilaudo há oito anos, mãe do filho mais novo dele, o Felipinho, de 20 dias. A família mora numa quitinete na Rua General Osório, onde o Ilaudo só pode ser encontrado das 9 da noite, quando chega, janta, se banha e vai pra cama ao final do Jornal Nacional, às 6 da manhã, quando acorda, toma um café e sai. "Às vezes digo pra ele: ‘Ô, paizinho, leve logo o colchão pra passarela, porque só falta tu dormir lá’", conta a Sueny, fanfarrona, às gargalhadas.
E sabe que Ilaudo até já pensou nisso? Principalmente depois que numa madrugada recente quatro camaradas estacionaram um caminhãozinho no calçadão e, se dizendo os donos das girafas, as levariam embora. Alertado por celular pelo Bigode, o vigia que ele contratou a R$ 1.000 por mês pra cuidar da passarela à noite, o Ilaudo correu até lá. "Não liberei as girafas, não. Pedi prova de que eram os proprietários. Foto, recibo... Não apresentaram nada, não liberei. No dia seguinte chumbei as bicha no chão." Situação parecida já tinha ocorrido quando um fiscal da Prefeitura chegou dizendo que tudo aquilo era irregular – grade, muro, jardim, girafa – e que o Ilaudo ia ter que destruir. "Destruo sim, patrãozinho. Mas o senhor me deixe nome completo e número da funcional. Porque quando o lugar voltar a ser o inferno que era e os pessoal reclamar, eu vou precisar dizer quem foi o responsável." O fiscal achou por bem não fuzilar a própria reputação e foi-se embora.
A manutenção da "passarela", que é como o Ilaudo chama todo o complexo, lhe custa R$ 2.000 por mês. Fraco nas exatidão, como diz, mas forte nas invenção, ele construiu um pequeno puxadinho pegado à avenida e alugou como salão de beleza. Pode isso, Ilaudo? "Fui fazendo, né, patrãozinho? A causa é boa", ele ri. Do aluguel do salão, R$ 1.500, ele tira parte do custo da passarela e inteira do próprio bolso.
Na última quarta-feira, apresentei o conto de fadas do Ilaudo ao subprefeito da Sé, o Alcides Amazonas. Ele só conhecia as girafas de vista, mas, há 15 dias no cargo, não fazia ideia se ali rolava forró ou funeral. Ficou feliz de ouvir a história toda. Disse que o Ilaudo é um exemplo de cidadão. Nos oito distritos sob a administração do Alcides circulam 3 milhões de pessoas por dia, há 14 estações de metrô e 431 mil habitantes. Meio furibundo, ele afirmou que acha triste ter que varrer a Praça da Sé dez vezes por dia e mais triste ainda que só 23 das 182 praças e áreas verdes da região sejam adotadas formalmente por empresas, naquele convênio em que se pode cravar uma plaquinha de propaganda sobre a grama. No Bom Retiro, distrito do Ilaudo, nenhuma das 18 praças e áreas verdes é adotada. "É claro que é preciso seguir alguns critérios para se fazer isso. De qualquer maneira, aprovo a iniciativa do Ilaudo. Vou fazer uma visita, convidá-lo a formalizar a situação na passarela e lhe dar as felicitações pela consciência cidadã." Felicitação começa com F, mas o Ilaudo diz que está aguardando com toda a franqueza do mundo.

Silicone & filosofunk


Não precisava ser Mozart, mas tinha que escolher 'Beijinho no Ombro' para uma prova de filosofia?

12 de abril de 2014 | 16h 01

Sérgio Augusto
Não foi bem um factoide, pois de fato aconteceu, mas a palavra hype bem se aplica ao destaque que na mídia lhe deram.
Gostosa chic? Agora a funkeira considera assumir uma forma menos calipígia - Adriano Damas
Adriano Damas
Gostosa chic? Agora a funkeira considera assumir uma forma menos calipígia
Há dias, o professor de filosofia de uma escola de ensino médio do Distrito Federal não só enfiou numa prova a musa do funk carioca Valesca Popozuda como referiu-se à cantora como uma "grande pensadora contemporânea". O vazamento do que em princípio parecia uma inconsequente pegadinha escolar incendiou as redes sociais, gerando protestos em cadeia contra o professor e inflamadas críticas à qualidade do ensino no País e à inanidade das músicas da esteatopígia funkeira. Além de desproporcional, o alarido motivou uma sucessão de equívocos, típica dos debates vai da valsa estrumados pela internet.
Nosso ensino é sabidamente fuleiro; é possível que Antônio Kubitschek, o pivô da celeuma, não seja uma sumidade, mas uma pegadinha só não o desqualifica como professor. Se é que podemos chamar de pegadinha a pergunta que ele propôs aos seus alunos na Escola de Ensino Médio 3 de Taguatinga:
"Segundo a grande pensadora contemporânea Valesca Popozuda, se bater de frente: 1) é só tiro, porrada e bomba; 2) é só beijinho no ombro; 3) é recalque; 4) é vida longa".
(A resposta correta é a primeira. Quem não conhecia a letra do funk Beijinho no Ombro, sucesso da ex-estrela da Gaiola das Popozudas, quebrou a cara.)
Detalhe importante: essa era a 11ª das 12 questões da prova bimestral de filosofia preparada pelo professor Kubitschek. As demais, segundo o testemunho de um de seus alunos, Gabriel Guilherme, versavam sobre ética, moral e outras questões genuinamente filosóficas, derivadas de assuntos abordados em aula e na literatura didática indicada no curso. Ou seja, ninguém, presumo, foi reprovado por desconhecer o repertório musical da Popozuda. Eu mesmo, ex-estudante de filosofia, só no araque teria marcado a resposta correta. Conheço Sócrates, Platão & Cia., mas em funk sou um ignorantaço. Aprendi a cantar Woke up this Morning de tanto ouvi-lo nos créditos da Família Soprano, mas devo estar confundindo funk com hip hop.
Como cantora e compositora, Valesca Reis Santos, 35 anos de idade e 106 cm de balaio, não vale os 550 ml de silicone que injetou em cada nádega para fazer jus ao apelido e construir uma imagem diferenciada. "Qualquer problema com ele [o avantajado buzanfã] afeta diretamente minha carreira", justificou-se ao segurá-lo por R$ 5 milhões, alguns anos atrás; valor a ser zerado caso ela leve adiante a ideia de retirar a prótese e assumir uma nova estampa, menos opulenta, calipígia, e menos brega, conforme anunciou no meio da semana. Menos brega vai ser difícil.
Suas músicas – alguns títulos: Late que eu Tô Passando, Agora eu Sou Solteira, Agora eu Virei Puta, Quero te Dar – são de uma indigência atroz, cheias de estribilhos monossilábicos (se, se, se, eu, eu, eu, só, só, só, dá, dá, dá, tô, tô, tô), típicas da gagueira funk, e acafajestadas provocações ("late, late", "fica de quatro"), típicas de quem se orgulha de encarnar o papel de "cachorrona".
Gozadora, sim; pensadora, é pilhéria.
O professor Kubitschek nega que estivesse caçoando dela, que sua única intenção era provocar entre os alunos "uma discussão sobre a formação de valores na sociedade" e pensar "no papel da imprensa que gosta de sensacionalismo" e só vai à escola "quando o assunto é ruim". Se seus pupilos demonstraram conhecer mais o funk de Valesca do que a ética socrática e outras questões filosóficas abordadas no exame, a inversão de valores na sociedade requer mesmo uma atenção especial do professor e redobrada vigilância da imprensa. Justiça se faça: quem desta vez armou o auê foi o Facebook, foi o Twitter, não a mídia impressa, que apenas correu atrás da repercussão.
Num bom exame de filosofia não há lugar para múltiplas escolhas. Reflexão, a matéria-prima da filosofia, não combina com gincana ou jogos de salão. A restrição é válida até para perguntas mais, digamos, didaticamente relevantes. Como esta, por exemplo: "Segundo o grande pensador Hegel, as ideias que revolucionam o mundo avançam: 1) sempre celeremente; 2) atrás dos canhões; 3) impregnadas de ódio; 4) a passo miúdo".
No entanto, permitido o intermezzo galhofeiro, por que não dar uma chance a outro tipo de música? Não precisava ser Mozart, nem ter alguma conotação filosófica (como a marchinha "existencialista" Chiquita Bacana), mas escolher Beijinho no Ombro foi, como diria Valesca, de f(*%#$@*)oder.
A própria gluteofilosofunk achou a polêmica "uma bobagem". E foi. Valesca também acertou ao levantar a hipótese de que nada teria acontecido se o professor Kubitschek tivesse escolhido "um trecho de qualquer música da MPB ou até mesmo de qualquer outro gênero musical". Mas errou ao calcular que começando a ler Machado de Assis, como prometeu fazer, poderá tornar-se um dia "uma pensadora de elite" – sem silicone nas lândrias, esbelta, menos espalhafatosamente vestida. Para quê? Ainda se fosse para desafiar Marilena Chauí a cantar Agora eu Virei Funkeira.
P.S. A resposta certa ao teste do Hegel é a quarta.