domingo, 23 de fevereiro de 2014

20 anos do Plano Real - GUSTAVO FRANCO


O Estado de S.Paulo - 23/02

Na próxima sexta feira, dia 28 de fevereiro de 2014, quando começarem os trabalhos de carnaval, vamos festejar também os 20 anos da publicação da Medida Provisória nº 434, que introduziu a URV (Unidade Real de Valor), uma formidável inovação que assumiu a forma de segunda moeda nacional, porém apenas "virtual", ou "para servir exclusivamente como padrão de valor monetário" (art. 1).

A URV era o real, desde o início. Em seu artigo 2º, a MP 434 já determinava que, quando a URV fosse emitida em forma de cédulas - e assim passasse a servir para pagamentos -, o cruzeiro real seria extinto e a URV teria seu nome mudado para real.

A inflação beirava os 40% mensais, mas, em vista do modo como foi construída, a URV (que Saulo Ramos, com verve e má vontade chamou de "feto de moeda") era uma "moeda estável", ou uma unidade de conta protegida da inflação, portanto, superior às outras em circulação ou em uso para indexar contratos, e por isso as substituiu de modo espontâneo e surpreendentemente rápido.

Na partida, em 1º de março de 1994, a cotação da URV em cruzeiros reais, a moeda de pagamentos, era CR$ 647,50, valor que o BC usava para fixar a taxa de câmbio (e não o contrário). No dia seguinte a URV mudou para CR$ 657,50, conforme a variação da inflação corrente, e depois para CR$ 667,65 assim fomos.

Em poucas semanas a URV se alastrou de forma viral, pois era um convite irresistível: migrar espontaneamente para uma moeda de conta que andava junto com o dólar. Por que o Brasil não poderia ter uma moeda tão boa quanto a de qualquer outro país? Por que a moeda estável, a indexada, era privilégio apenas do rico que usava o "overnight"?

Em 1º de julho, quatro meses depois (e bem poderia ter sido antes!), as novas cédulas e moedas do real foram colocadas em circulação em lugar do cruzeiro real na razão de R$ 1,00 para CR$ 2.750,00. A reforma monetária estava completa e o real em plena circulação. Quem disse que o brasileiro não sabe fazer conta e não é capaz de entender e agir inteligentemente diante de questões econômicas aparentemente complexas?

Depois de 20 anos, a adoção generalizada da URV ainda está cercada de uma aura de mistério e fascinação, e entre os especialistas, é lembrada como uma das experiências de estabilização mais engenhosas e bem-sucedidas que a humanidade já conheceu. O fim da hiperinflação alemã em 1923, que fez uso de um expediente semelhante - o rentenmark - é frequentemente descrito como um "milagre", e desafia explicações, tal como a URV.

O fato é que a introdução da moeda de conta indexada deu início a uma reação química em cadeia, uma espécie de redescoberta do "valor das coisas", que estendia seus efeitos para todo o espectro de simbolismos associados ao dinheiro, sugerindo, inclusive, a identificação entre inflação e imoralidade. Havia muita coisa em jogo no plano simbólico: a moeda, como a bandeira e o hino, está entre os mais importantes símbolos nacionais, de tal sorte que sua degradação, quando levada ao extremo de uma hiperinflação, espalhava suas consequências para muito além da órbita econômica.

Elias Canetti, numa passagem famosa sobre a hiperinflação alemã, observou mais genericamente que uma inflação desse tipo "pode ser tomada como uma orgia satânica de desvalorização no qual os homens e as unidades de seu dinheiro exercem os mais estranhos efeitos sobre si mesmos. Um se projeta no outro, o homem sentindo-se tão 'ruim' quanto o seu dinheiro". Nada a estranhar, portanto, no torpor e na dissolução de valores, entendida de forma mais ampla, em vigor durante aqueles anos e que, infelizmente, deixou sequelas.

O "caminho de volta" enunciado pelo Plano Real compreendia a recomposição e reunificação das funções da moeda em sequência: primeiro a de servir como unidade de conta com a URV, substituindo outros indexadores e unidades de conta usadas em contratos e orçamentos familiares, segundo a de servir como meio de pagamento de curso legal, com a emissão de cédulas e moedas denominadas em real, e por último, e mais difícil, a de funcionar como reserva de valor, teste realizado quando a nova moeda deixou de ser indexada ao dólar e flutuou com relação à moeda norte-americana. E diante do veredicto dos mercados, quando o real apreciou com relação ao dólar, e assim se manteve, o circuito estava completo.

Era apenas o começo, é claro, e o programa prosseguiu, inclusive porque havia clareza que o Plano Real, diferentemente dos outros planos econômicos, compreendia uma extensa agenda de ações contemplando os chamados fundamentos econômicos da estabilização e do desenvolvimento. Era uma linguagem inovadora para uma época em que as pessoas ainda acreditavam em Papai Noel e inflação inercial. Essa agenda era o cerne do programa. A passagem do tempo e a alternância no poder só tornaram mais claro que estávamos adotando paradigmas já bem assentados no tocante à disciplina monetária, à responsabilidade fiscal e à sustentabilidade financeira do Estado.

A URV, depois transformada em real, trouxe a inflação no Brasil para níveis internacionais no início de 1997 sem sustos, confiscos, caneladas e recessão. No ano calendário de 1998 a inflação medida pelo IPCA foi de 1,6%, a menor da série histórica. Foi a menor inflação anual desde que o IPC da Fipe começou a ser calculado em 1940.

Pois assim, a estabilização nos retirou de um estado de torpor e depressão para outro de euforia e ansiedade; a agenda de estabilização rapidamente se converteu na discussão das reformas necessárias para o crescimento, onde estacionamos já faz alguns anos.

O problema do crescimento é semelhante ao da estabilização de muitas formas: ambos dependem de coordenação, persuasão, segurança quanto à consistência macroeconômica e, sobretudo, incentivos corretos. O sucesso da URV e do Plano Real é sempre associado ao estilo da coisa, à transparência no fazer e à ideia de um "convite a aderir" a um mecanismo que os agentes econômicos percebem como superior. Não é um "Pacto Social" negociado por sindicatos e associações patronais, nem um mecanismo compulsório e invasivo como foram os congelamentos. Essas coisas não funcionam: as pessoas, inclusive as jurídicas, preferem exercer suas próprias escolhas orientadas por suas próprias percepções sobre os seus melhores interesses. Assim funcionam as economias de mercado como a nossa. Quando o governo organiza políticas públicas que atentam para esse detalhe crucial sobre o modo com a economia funciona, as coisas costumam dar certo.

O capim e os burros - CELSO MING


O Estado de S.Paulo - 23/02

Velha ilustração usada para ensinar as excelências da cooperação (veja ao lado) mostra o que tem ocorrido entre governo federal e Banco Central (BC). Dois burros atados por uma corda puxam em direções opostas, cada um para a sua touceira de capim.

Ou seja, a política fiscal, que cuida das receitas e despesas do governo federal, e a política monetária, que cuida do volume de dinheiro na economia e, em consequência, dos juros básicos, quase nunca se entendem. Ao deixar que as despesas cresçam bem mais do que as receitas, a política fiscal cria renda demais e demanda demais e, portanto, produz inflação. Enquanto isso, a política monetária, que restringe o volume de moeda, tenta conter a inflação. O resultado, por enquanto, é inflação alta, perda de confiança e tudo o mais que vem a reboque. Quinta-feira, o ministro Guido Mantega admitiu que mais austeridade ajuda o BC a derrubar a inflação.

Depois que Antonio Palocci foi substituído por Mantega na administração Lula, governo federal e BC viviam em conflito. Mantega pisava no acelerador das despesas e o então presidente do BC, Henrique Meirelles, tratava de pisar nos freios. Às vezes, o presidente Lula chamava ambos às falas, mas Mantega exigia que o BC se enquadrasse às suas orientações, como prevê o organograma, e Meirelles operava como se fosse autônomo. Na prática, tomava a política fiscal expansionista do governo federal como dado de realidade para definir a política de juros.

O governo Dilma iniciou novo período de convergência para puxar o consumo: Alexandre Tombini encarregou-se de derrubar os juros e Mantega se atirou à gastança. A partir de abril de 2013, embora mais disfarçado ou mesmo negado, o conflito ressurgiu. O governo federal foi perdulário na administração das despesas públicas porque entendia que precisava definir políticas contracíclicas, ou seja, precisava compensar com mais gastos os efeitos recessivos da crise externa. Em seus documentos, o BC deixou de reclamar da política expansionista do governo federal como repetia até julho de 2013, e passou a afirmar que "a política fiscal tende a convergir para a neutralidade", o que significa que, lá pelas tantas, a política fiscal deixará de produzir inflação. A atitude básica do BC é a mesma: toma os resultados da política fiscal como dado de realidade e trata de empurrar os juros para onde acha que têm de ir.

E assim ficou: a inflação não cedeu porque a política monetária não conta com a colaboração da política fiscal. Agora o governo promete mais austeridade, não porque entende que precise ajudar a derrubar a demanda, mas porque teme o rebaixamento da qualidade dos títulos do Tesouro pela agência de classificação de risco Standard & Poor's, como esta Coluna apontou quarta-feira.

O resultado desse desencontro não foi só inflação alta, distorções da política econômica e avanço raquítico do PIB, mas, também, a retração dos investimentos. Quem ganhou foram as touceiras de capim, não alcançadas pelos burros.

É tempo de acertar contas com o 'curto século 20' - SERGIO FAUSTO O Estado de S.Paulo - 23/02



Em 2014 completam-se cem anos do início da 1.ª Guerra Mundial. O conflito foi um divisor de épocas. Eric Hobsbawm, historiador inglês marxista, assinala-o como marco inaugural do "curto século 20". François Furet, historiador francês liberal, escreve que o mundo até ali existente morreu junto com os 15 milhões de pessoas vitimadas pela maior carnificina humana vista até então.

A 1.ª Guerra pôs fim ao "longo século 19", iniciado com a derrota de Napoleão, a formação da Santa Aliança, o fortalecimento da coalizão entre a burguesia industrial nascente e as aristocracias recicladas dos velhos regimes anteriores à Revolução Francesa. Na esteira da guerra, abriu-se a "Era dos Extremos", como Hobsbawm chamou o "curto século 20", marcado pela novidade histórica do aparecimento de sistemas totalitários, de signo oposto, o comunismo e o fascismo (não por acaso, o historiador inglês identifica no colapso da União Soviética o ato final do século passado).

É inegável que a Revolução Russa é filha da guerra de 1914-1918. Sem a ruína do Exército czarista e as privações provocadas pelo conflito os bolcheviques não teriam tomado o Palácio de Inverno em outubro de 1917. O filósofo e historiador francês Élie Halévy foi profético ao escrever, em meio à guerra: "Desfavorável provavelmente às formas liberais do socialismo, ela fortalece, consideravelmente, o socialismo de Estado".

Também a ascensão do nazi-fascismo é indissociável da devastação que a guerra provocou na Europa e do surgimento da "ameaça comunista", representada pela consolidação da União Soviética e pelo seu prestígio entre a esquerda europeia. Prestígio crescente nos anos 20 e 30, apesar das críticas que logo surgiram, na própria esquerda, à ditadura do partido único implantada por Lenin e levada às suas últimas consequências por Stalin.

No Brasil a guerra deu impulso ao primeiro ensaio espontâneo de industrialização por substituição de importações, devido à virtual interrupção do comércio com a Europa. Mais significativos e prolongados, porém, foram os seus efeitos políticos.

A 1.ª Guerra marcou a ascensão definitiva dos Estados Unidos à posição de maior economia, em condições de se tornar igualmente a maior potência militar do planeta, duplo status que a 2.ª Guerra viria confirmar e reforçar, com a União Soviética no polo oposto. A hegemonia americana no Hemisfério Ocidental, de Norte a Sul, tornou-se incontestável. Por outro lado, ao mesmo tempo as ideologias europeias de contestação frontal ao liberalismo encontraram receptividade no Brasil (e na América Latina). Não ganharam adeptos numerosos como em seus locais de origem (o Partido Comunista Brasileiro - PCB -, fundado em 1922, e a Ação Integralista Brasileira, criada dez anos depois, jamais chegaram a ser partidos de massa). A despeito disso, comunistas e integralistas (a versão nativista do fascismo europeu) passaram a ter presença em grupos sociais influentes: profissionais e intelectuais de classe média urbana, em sua maioria, e operários fabris sindicalizados, em menor grau.

Suas ideias antiliberais encontraram pontos de contato e afinidade com o pensamento nacionalista autoritário dominante nos anos 30. Ambos tinham no "artificialismo da democracia liberal-burguesa" um alvo comum. Por esse caminho o fascismo deixou suas marcas no Estado Novo (1937-1945) e, mais tarde, na ditadura militar (1964-1985). Mais distante do poder, o comunismo não imprimiu marcas institucionais tão claras, mas o DNA autoritário do leninismo continuou a se reproduzir ao longo do século 20 no Brasil, mesmo depois de parcialmente expurgado do seu componente totalitário puro e duro, a partir da segunda metade dos anos 50, quando os crimes de Stalin foram revelados e o stalinismo perdeu vigor. Veio então a revolução cubana a dar-lhe novo alento.

A esquerda brasileira paga até hoje um tributo caro à sua incapacidade de se livrar desse DNA antiliberal. Sobram restos mal digeridos de uma herança histórica que parte significativa da esquerda prefere não enfrentar com transparência e honestidade intelectual. Em lugar de um diálogo aberto sobre as contribuições, conflituosamente complementares, do liberalismo e do socialismo democrático às conquistas civilizatórias da humanidade, grande parte da esquerda prefere refugiar-se na pantomima dos punhos erguidos e no ataque robótico ao "neoliberalismo" - como se o liberalismo econômico fosse um só e o liberalismo político, o seu apêndice - e ao "imperialismo americano", como se ainda vivêssemos sob a guerra fria. Ao mesmo tempo, silencia diante de regimes autoritários "de esquerda" e não hesita em agir para enfraquecer processos e instituições que, pertencendo ao liberalismo político clássico em sua origem, se tornaram, pelas lutas sociais, patrimônio das democracias dignas desse nome em qualquer lugar do mundo.

Justiça seja feita a intelectuais eurocomunistas ligados ao antigo PCB que promoveram o debate sobre o liberalismo e o socialismo na primeira metade dos anos 80, ainda na etapa formativa da nova democracia brasileira. No âmbito do PT, principal partido da esquerda brasileira no pós-64, intelectuais como Francisco Weffort fizeram esforço na mesma direção. O debate, porém, foi posto à margem, substituído pelo empenho na organização da máquina partidária e pelo pragmatismo da luta pelo poder. Tampouco o PSDB colaborou para dar densidade a essa discussão, em que pese a contribuição individual de algumas de suas lideranças.

Se queremos construir um pensamento social e político à altura dos desafios deste século, que mal começa e já coloca novas exigências, precisamos retomar o debate apenas ensaiado sobre o liberalismo e o socialismo, com sensibilidade para as suas manifestações especificamente brasileiras, e acertar as nossas contas com "o curto século 20".