sábado, 22 de fevereiro de 2014

Trabalhando o sal


22 de fevereiro de 2014 | 2h 09

Marcelo Rubens Paiva - O Estado de S.Paulo
Em 1995, Antonio Callado lembrou na sua coluna da Folha de SP do passeio de lancha:
"Outra recordação que me ficou nítida liga-se a Búzios. Ali fui, num fim de semana de 1971... Quando paramos a uns 100 metros da praia, vimos alguém, uma moça, que nadava firme em nossa direção. Minutos depois subia a bordo, cara alegre, molhada do mar, Eunice Paiva, mulher do deputado Rubens Paiva, amigo de Renato, amigo meu, de todos nós, um dos homens mais simpáticos e risonhos que já conheci. Eunice andara preocupada. Rubens fora detido pela Aeronáutica dias antes e nenhuma notícia sua tinha chegado à família. Mas agora Eunice, que fora também presa, mas em seguida libertada, podia respirar, tranquila, podia nadar em Búzios, tomar um drinque com os amigos, pois acabara de estar com o ministro da Justiça, ou da Aeronáutica, que lhe havia garantido que Rubens já tinha sido interrogado, passava bem e dentro de uns dois dias estaria de volta a sua casa. Dois dias depois, isto sim, os jornais recebiam uma notícia tão displicente que se diria que seus inventores não faziam a menor questão que fosse levada a sério: Rubens estaria sendo transferido de prisão, num carro, quando guerrilheiros que tentavam libertá-lo tinham atacado e sequestrado o prisioneiro. O que correu pelo Rio, logo que se suspeitou de sua morte, é que ele morrera às mãos, ou pelo menos de tortura diretamente comandada pelo brigadeiro João Paulo Penido Burnier, aquele mesmo que queria fazer explodir o gasômetro do Rio para pôr a autoria do crime na conta dos comunistas. A família Paiva nunca mais teve notícias oficiais de Rubens. Nunca se encontrou a cova onde o terão atirado depois do assassinato. A cara de Eunice continuou molhada e salgada durante muito tempo, tal como naquela manhã de Búzios. A água é que não era mais do mar".
Li para ela, assim que a coluna foi publicada. Reparei na minha mãe o sorriso. Você se lembra? "Claro, foi dias depois de eu ser solta, eu estava magérrima, queimada, de biquíni, linda", respondeu vaidosa.
A imagem da minha mãe queimada, magérrima, aliviada, linda, de biquíni, aos 41 anos, subindo "alegre" no verão de 1971 na lancha na praia de Manguinhos, perto da casa escondida na montanha, sem luz e telefone, do Françoise Moreau, para onde fomos depois de ficar 13 dias presa do DOI/Codi do Rio de Janeiro, não saiu da memória do Callado.
Escritor é assim: se lembra daquilo que escorre contradição. O bom escritor não é o que se lembra de tudo, mas do essencial, e associa o sal da água a lágrimas que não são do mar.
Ela tinha perdido muitos quilos na prisão. Ficou numa cela de fundo, em que ninguém aparecia. Nada de sol. No primeiro dia, foi chamada para depor. Provavelmente enquanto meu pai era torturado na sala ao lado. Ela não o viu. Viu sua foto no álbum de presos, o que a deixou contraditoriamente aliviada, pois então ele estava ali, nas mesmas dependências, vivo, mas angustiada, pois suas fotografias faziam agora companhia a presos "terroristas procurados", "mortos em combate", torturados!
Minha mãe não sabia de muita coisa. Não conhecia detalhes da luta armada, organizações clandestinas, guerrilheiros na selva, nas cidades. Lia notícias filtradas pela censura ou autocensura de terroristas tombados em combate, sequestros de embaixadores, assaltos a bancos. Meu pai, que sabia de muita coisa, a poupava por "questão de segurança". Seria inútil torturá-la, apesar de ela saber que, mesmo visado, ele fazia alguma coisa contra o regime que o cassou e o exilou em 1964 e, então, ia à forra.
Pelas novas revelações, meu pai morreu na madrugada em que minha mãe foi presa, e seu corpo levado em seguida. Ela foi deixada numa cela no fundo do corredor mais 12 dias. Pra quê? Melhor nem pensar... Tenho um estranho agradecimento a fazer aos militares brasileiros: obrigado por não terem matado também a minha mãe.
*
Em 1996, pegamos o metrô até o cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais - Primeiro Subdistrito da Sé. Os funcionários estavam assustados com a quantidade de fotógrafos e cinegrafistas. Mal sabiam que se fazia História naquele cartório abafado e comum.
Um cordão da imprensa respeitou nossa passagem. A escrevente substituta Cibeli da Silva Bortolotto entregou o atestado: "Certifico que, em 23 de fevereiro de 1996, foi feito o registro de óbito de Rubens Beyrodt Paiva. Profissão, engenheiro civil. Estado civil, casado. Natural de Santos, neste Estado. Observações: Registro de Óbito lavrado nos termos do Artigo 3.º da Lei 9.140 de 4 de dezembro de 1995".
Meu pai morria pelos termos da Lei 9.140, 25 anos depois de ter morrido por tortura.
Na saída, ela sorriu, falou com a imprensa e ergueu o atestado de óbito como um troféu. Foi naquele momento que descobri: ali está a verdadeira heroína da família, sobre ela que escritores devem escrever, se a História é a narrativa dos vencedores, a literatura é a versão dos vencidos (Nicolau Sevcenko). V de vitória. Nunca faria uma cara triste. Bem que tentaram.
Por anos, fotógrafos nos queriam tristes. Deflagramos uma batalha contra o pieguismo da imprensa. Sim, éramos a família modelo vítima da ditadura, mas não faríamos o papelão de sairmos tristes nas fotos. Nosso inimigo não iria nos derrubar. Guerra é guerra. Minha mãe deu o tom: a família Rubens Paiva não chora em frente às câmeras, não faz cara de coitada, não se faz de vítima. A família Rubens Paiva não é a única vítima da ditadura. Esteve em guerra contra ela desde o primeiro dia. O País é a maior vítima. O crime foi contra a humanidade, não contra Rubens Paiva. Nossa luta não tem fim. Precisamos estar bronzeados e saudáveis para a contraofensiva. A angústia, as lágrimas, o ódio, apenas entre quatro paredes.
Agradeço Callado por ter melhorado a autoestima da minha mãe. Pena ele não estar vivo para saber que a farsa displicente da fuga de um dos homens mais simpáticos e risonhos que já conheceu acaba de ser desmontada pelo militar que a armou.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Jornalista tem o direito de fazer crítica impiedosa, Por Elton Bezerra

A publicação de reportagem ou opinião com crítica dura e até impiedosa afasta o intuito de ofender, principalmente quando dirigida a figuras públicas. Com esse fundamento, o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, acolheu o Recurso Extraordinário da Editora Abril contra condenação do Tribunal de Justiça do Distrito Federal que a obrigava a indenizar em R$ 10 mil o ex-governador Joaquim Roriz por danos morais. A empresa foi defendida pelo advogado Alexandre Fidalgo, do EGSF Advogados.
“Não caracterizará hipótese de responsabilidade civil a publicação de matéria jornalística cujo conteúdo divulgar observações em caráter mordaz ou irônico ou, então, veicular opiniões em tom de crítica severa, dura ou, até, impiedosa, ainda mais se a pessoa a quem tais observações forem dirigidas ostentar a condição de figura pública, investida, ou não, de autoridade governamental, pois, em tal contexto, a liberdade de crítica qualifica-se como verdadeira excludente anímica, apta a afastar o intuito doloso de ofender”, afirmou o decano do STF.
Na avaliação de Celso de Mello (foto), a liberdade de imprensa é uma projeção da liberdade de manifestação do pensamento e de comunicação, e assim tem conteúdo abrangente, compreendendo, dentre outras prerrogativas: o direito de informar, o direito de buscar a informação, o direito de opinar e o direito de criticar. Dessa forma, afirma o decano, o interesse social, que legitima o direito de criticar, está acima de “eventuais suscetibilidades” das figuras públicas.
Mello afirma que essa prerrogativa dos profissionais de imprensa justifica-se pela prevalência do interesse geral da coletividade e da necessidade de permanente escrutínio social a que estão sujeitas as pessoas públicas, independente de terem ou não cargo oficial.
“Com efeito, a exposição de fatos e a veiculação de conceitos, utilizadas como elementos materializadores da prática concreta do direito de crítica, descaracterizam o ‘animus injuriandi vel diffamandi’, legitimando, assim, em plenitude, o exercício dessa particular expressão da liberdade de imprensa”, diz Mello.
No caso, o ex-governador do Distrito Federal Joaquim Roriz processou a Editora Abril e o jornalista Diego Escosteguy por conta de uma reportagem publicada em dezembro de 2009. No texto, a revista compara Roriz ao personagem Don Corleone, do filme O Poderoso Chefão, e afirma que ele pode ser o homem que teria ensinado José Roberto Arruda, ex-governador do DF, a roubar.
No entendimento do TJ-DF, a veiculação de juízo de valor teria deixado “clara a intenção do veículo de comunicação e do responsável pela matéria de injuriar e difamar, com ofensa à honra e à moral, excedendo os limites da liberdade de imprensa”. Para o ministro, a crítica faz parte do trabalho do jornalista.
Clique aqui para ler a decisão do ministro Celso de Mello

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Golpe à brasileira - MARCO ANTONIO VILLA


O Estado de S.Paulo - 19/02

Às vésperas dos 50 anos do golpe militar torna-se necessário um resgate da História para entendermos o presente. Em 1964 o Brasil era um país politicamente repartido. Dividido e paralisado. Crise econômica, greves, ameaça de golpe militar, marasmo administrativo. O clima de radicalização era agravado por velhos adversários da democracia. A direita brasileira tinha uma relação de incompatibilidade com as urnas. Não conseguia conviver com uma democracia de massas num momento de profundas transformações. Temerosa do novo, buscava um antigo recurso: arrastar as Forças Armadas para o centro da luta política, dentro da velha tradição inaugurada pela República, que já havia nascido com um golpe de Estado.

A esquerda comunista não ficava atrás. Sempre estivera nas vizinhanças dos quartéis, como em 1935, quando tentou depor Getúlio Vargas por meio de uma quartelada. Depois de 1945, buscou incessantemente o apoio dos militares, alcunhando alguns de "generais e almirantes do povo". Ser "do povo" era comungar com a política do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e estar pronto para atender ao chamado do partido numa eventual aventura golpista. As células clandestinas do PCB nas Forças Armadas eram apresentadas como uma demonstração de força política.

À esquerda do PCB havia os adeptos da guerrilha. O Partido Comunista do Brasil (PCdoB) era um deles. Queria iniciar a luta armada e enviou, em março de 1964, o primeiro grupo de guerrilheiros para treinar na Academia Militar de Pequim. As Ligas Camponesas, que desejavam a reforma agrária "na lei ou na marra", organizaram campos de treinamento no País em 1962 - com militantes presos foram encontrados documentos que vinculavam a guerrilha a Cuba. Já os adeptos de Leonel Brizola julgavam que tinham ampla base militar entre soldados, marinheiros, cabos e sargentos.

Assim, numa conjuntura radicalizada, esperava-se do presidente um ponto de equilíbrio político. Ledo engano. João Goulart articulava sua permanência na Presidência e necessitava emendar a Constituição. Sinalizava que tinha apoio nos quartéis para, se necessário, impor pela força a reeleição (que era proibida). Organizou um "dispositivo militar" que "cortaria a cabeça" da direita. Insistia em que não podia governar com um Congresso Nacional conservador, apesar de o seu partido, o PTB, ter a maior bancada na Câmara dos Deputados após o retorno do presidencialismo e não ter encaminhado à Casa os projetos de lei para tornar viáveis as reformas de base.

Veio 1964. E de novo foram construídas interpretações para uso político, mas distantes da História. A associação do regime militar brasileiro com as ditaduras do Cone Sul (Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai) foi a principal delas. Nada mais falso. O autoritarismo aqui faz parte de uma tradição antidemocrática solidamente enraizada e que nasceu com o Positivismo, no final do Império. O desprezo pela democracia rondou o nosso país durante cem anos de República. Tanto os setores conservadores como os chamados progressistas transformaram a democracia num obstáculo à solução dos graves problemas nacionais, especialmente nos momentos de crise política. Como se a ampla discussão dos problemas fosse um entrave à ação.

O regime militar brasileiro não foi uma ditadura de 21 anos. Não é possível chamar de ditadura o período 1964-1968 - até o Ato Institucional n.º 5 (AI-5) -, com toda a movimentação político-cultural que havia no País. Muito menos os anos 1979-1985, com a aprovação da Lei de Anistia e as eleições diretas para os governos estaduais em 1982. Que ditadura no mundo foi assim?

Nos últimos anos se consolidou a versão de que os militantes da luta armada combateram a ditadura em defesa da liberdade. E que os militares teriam voltado para os quartéis graças às suas heroicas ações. Num país sem memória, é muito fácil reescrever a História.

A luta armada não passou de ações isoladas de assaltos a bancos, sequestros, ataques a instalações militares e só. Apoio popular? Nenhum. Argumenta-se que não havia outro meio de resistir à ditadura a não ser pela força. Mais um grave equívoco: muitos desses grupos existiam antes de 1964 e outros foram criados pouco depois, quando ainda havia espaço democrático. Ou seja, a opção pela luta armada, o desprezo pela luta política e pela participação no sistema político, e a simpatia pelo foquismo guevarista antecederam o AI-5, quando, de fato, houve o fechamento do regime. O terrorismo desses pequenos grupos deu munição (sem trocadilho) para o terrorismo de Estado e acabou sendo usado pela extrema direita como pretexto para justificar o injustificável: a barbárie repressiva.

A luta pela democracia foi travada politicamente pelos movimentos populares, pela defesa da anistia, no movimento estudantil e nos sindicatos. Teve em setores da Igreja Católica importantes aliados, assim como entre os intelectuais, que protestavam contra a censura. E o MDB, este nada fez? E os seus militantes e parlamentares que foram perseguidos? E os cassados?

Os militantes da luta armada construíram um discurso eficaz. Quem os questiona é tachado de adepto da ditadura. Assim, ficam protegidos de qualquer crítica e evitam o que tanto temem: o debate, a divergência, a pluralidade, enfim, a democracia. Mais: transformam a discussão política em questão pessoal, como se a discordância fosse uma espécie de desqualificação dos sofrimentos da prisão. Não há relação entre uma coisa e outra: criticar a luta armada não legitima o terrorismo de Estado. Temos de refutar as versões falaciosas. Romper o círculo de ferro construído, ainda em 1964, pelos adversários da democracia, tanto à esquerda como à direita. Não podemos ser reféns, historicamente falando, daqueles que transformaram o antagonista em inimigo; o espaço da política, em espaço de guerra.