sexta-feira, 10 de maio de 2013

A sabedoria da natureza



SÃO PAULO - O Conselho Federal de Medicina (CFM) decidiu limitar a 50 anos a idade até a qual mulheres podem submeter-se a técnicas de reprodução assistida. Na mesma linha, manteve a proibição de que o casal escolha o sexo da criança. De onde eles tiram essas ideias?
É claro que, quanto mais velha a mulher, maior o risco da gravidez. Mas é improvável que um limite linear que não considere a saúde do indivíduo seja a melhor resposta.
Há dúvidas até sobre o real impacto da idade na gestação. Como lembrou ontem Cláudia Colucci, um estudo que comparou grávidas de mais de 50 anos com de menos de 42 mostrou que não há diferença significativa nas taxas de complicações.
E por que pais não podem definir se terão um menino ou uma menina, já que isso não causa mal a ninguém?
Meu palpite aqui é que, para tomar essas decisões, o CFM apoiou-se não na ciência, como seria desejável, mas no bom e velho apelo à natureza ("argumentum ad naturam"). Como é muito difícil que, em estado natural, mulheres de mais de 50 engravidem, proibamo-las de tentar. Já que a mãe natureza não nos faculta escolher o sexo de nossos rebentos, impeçamos a ciência de fazê-lo.
O problema com esse argumento é que ele é uma falácia. Seria possível tanto fazer uma narrativa épica de como a humanidade triunfou derrotando a natureza, com seus predadores e intempéries, como lembrar exemplos de grandes equívocos causados pelo fato de termos tentado negar os primados de nossa biologia.
Se é ou não possível extrair um "deve ser", isto é, uma prescrição ética, de um "é", ou seja, de uma descrição do mundo, constitui um dos mais interessantes problemas filosóficos, que já consumiu oceanos de tinta. Diversos autores se saíram com diferentes respostas e, se há algo perto de uma unanimidade, é a de que precisamos evitar a noção simplista de que a natureza é sábia e, por isso, não podemos contrariá-la.
Hélio Schwartsman
Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve na versão impressa da Página A2 às terças, quartas, sextas, sábados e domingos e às quintas no site.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Taxonomia dos ratos, por João Sayad , na FSP


Se é impossível resolver, classificamos: o taxonomista é, antes de tudo, um resignado; convido a iniciar uma taxonomia da corrupção
Face a problemas insuperáveis, a ciência classifica.
Médicos classificam tumores em benignos, malignos, perversos ou dóceis. Zoólogos falam de baratas pretas, marrons, voadoras, cascudas ou molengas; ratos de rabo longo, camundongos, ratazanas, roedores urbanos e rurais. O método se chama taxonomia.
Se é impossível resolver, extinguir ou explicar, classificamos. O taxonomista é, antes de tudo, um resignado.
Convido o leitor a iniciar uma taxonomia da corrupção.
Existe a corrupção do fiscal, do policial, do oficial de justiça, do perito avaliador, do inspetor da prefeitura, do parlamentar. Esta é a malversação do tipo público. E a corrupção do setor privado, obviamente, faz par a cada uma das classes de corrupção do setor público.
Mas gêneros, espécies e subespécies ainda não foram bem definidos.
Contribuo, então, com uma classificação que, mesmo modesta, pode aumentar a produtividade dos caçadores de ratos, fabricantes de inseticidas e ratoeiras, auditores, corregedores, promotores, funcionários do Ministério Público, jornalistas e até gente do terceiro setor que ainda se incomode com o tema.
Dividiria a corrupção do setor público em dois grandes grupos.
A grande corrupção (chamemos de corrupção "a la grande") está associada a investimentos públicos enormes. É o mundo das negociatas impressionantes, das concessões viciadas, das toneladas de cimento.
O caso famoso do prédio do Tribunal Regional do Trabalho, na Barra Funda, em São Paulo, é bom exemplo. O prédio está lá. É grande, espaçoso e funcional. Pode-se dizer até que é bonito. Custou 160 milhões de reais a mais do que deveria ter custado. Mas está lá.
O culpado pelo desvio foi morar em Miami, comprou um monte de carros esporte e voltou preso. Quem ficou aqui acabou devolvendo em prestações o superfaturamento praticado. A relação custo-benefício, no final das contas, foi positiva: houve custo excessivo, mas o prédio, repita-se, ficou pronto.
As características desse tipo de corrupção são duas: primeiro, o bem público foi produzido e entregue. Depois, o valor subtraído ficou conhecido e teve limite. Acabou a obra, acabou o roubo. E os culpados mudam de ramo e nos deixam em paz, se não forem presos.
Existe também a corrupção pequena (de custeio, diriam os economistas): contrata parentes, compra papel higiênico superfaturado, orienta a criação de empresas de fachada para prestarem serviços, cria cooperativas para pagar funcionários terceirizados, faz acordo de "kick back" com os fornecedores e, principalmente, avacalha, paralisa, lasseia e termina por matar a organização que administra.
Esse tipo de corrupto "petit cash" instala-se em organizações públicas menores, nas quais pode atender a fisiologia e necessidades de financiamento eleitoral sem ser percebido de imediato.
Sangra a organização anos a fio, faz favores a seus superiores e enche-se de queijo de maneira paulatina e continuada. A alta administração do órgão se afasta e se esconde dos funcionários de carreira; o segredo e a confidencialidade passam a ser as regras na organização.
E os serviços públicos que seriam oferecidos vão perdendo qualidade, tornam-se irrelevantes. Os funcionários acabam deprimidos, pois não têm o que fazer, ganham mal e sabem que o "andar de cima" ganha bem por dentro e por fora. O resultado é o apodrecimento da organização até a morte definitiva.
O custo desse tipo de corrupção parece pequeno. Mas um desvio de 1 milhão por ano por tempo indefinido tem um valor atual elevado. Se a taxa de juros de desconto for de 7,5% ao ano, 1 milhão por ano custa ao contribuinte mais de 10 milhões.
Pior ainda, a relação custo-benefício é infinita: custa 10 milhões e não oferece nenhum benefício público. Não há adição, só subtração. É dez dividido por zero.
Não há um prédio, não há nada concreto no fim da linha, só há ruínas e desmoralização. E a sociedade fica sem o serviço público direito, enquanto centenas de funcionários passam anos em meio ao lixo.
Finalmente, esse tipo de corrupção tem um agravante.
Como é obtido em suaves prestações, não permite ao parasita fugir para outro país, ir morar na praia ou dedicar-se à criação de cavalos. O parasita permanece grudado na instituição hospedeira da qual suga o sustento por longos períodos, até que mudem os partidos no governo.
É uma corrupção mixa, que não produz fóruns, estradas ou pontes.
Proponho, a quem tiver paciência de continuar o trabalho de classificação, chamá-la de "corrupção brega". Minha vontade de prosseguir na tarefa acabou. Estou indignado.

terça-feira, 7 de maio de 2013

Governo vai barrar reforma do ICMS aprovada no Senado


Adriana Fernandes, Lu Aiko Otta e Ricardo Brito, de O Estado de S. Paulo
BRASÍLIA - Após meses de negociação, o governo sinalizou que poderá boicotar a versão final da reforma do ICMS, principal fonte de receita dos Estados. 
Depois que a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado aprovou um texto contendo mudanças com as quais o governo não concorda, o secretário executivo do Ministério da Fazenda, Nelson Barbosa, ameaçou retirar dinheiro do fundo que financiaria as perdas estaduais, e que tem por objetivo acabar com a guerra fiscal. A norma ainda precisa ser votada pelo plenário do Senado.
Em jogo, estão cerca de R$ 450 bilhões que seriam repassados para os Estados no período de 20 anos. Sem os recursos da União para os fundos de Compensação de Receita (FCR) e de Desenvolvimento Regional (FDR), a proposta de reforma do ICMS fica, na prática, inviabilizada.
Após a votação da CAE, Barbosa advertiu que as mudanças introduzidas pelos senadores foram "muito além do acordado". "O Senado é soberano para fazer a sua avaliação, como nós também somos para colocar os recursos nos dois fundos da reforma. Precisamos reavaliar o impacto dessas modificações", disse.
Alguns Estados também criticaram o texto aprovado. "Ficou mais complexo, porque continua o sistema de desigualdade de alíquotas", disse o secretário de Fazenda do Maranhão, Cláudio Trinchão, coordenador do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz). "Se o objetivo é racionalizar o ICMS, ele não será alcançado", comentou o secretário de Fazenda do Pará, José Tostes. "Vai ficar complicado e caro para as empresas e difícil de controlar para os Estados", afirmou secretário de Fazenda de Minas Gerais, Leonardo Colombini.
O texto aprovado nesta terça-feira prevê três níveis de alíquota do ICMS para as transações entre Estados: 4%, 7% e 12%, esta última para a Zona Franca de Manaus, nove zonas de livre comércio na região Norte e o gás natural. A alíquota de 7% vale para os Estados do Norte, Nordeste, Centro-Oeste e o Espírito Santo. A intenção inicial do governo era estabelecer uma única alíquota, de 4%, para praticamente todas as operações.
Ameaça. A estratégia do governo é usar a ameaça de retirar dinheiro dos fundos para reverter, no plenário do Senado, dois destaques aprovados pelos senadores da CAE que desvirtuam a proposta original da presidente Dilma Rousseff. Segundo Barbosa, o governo não concorda com a ampliação de 7% para comércio e serviços, setores em que há mais espaço para fraudes, maquiagem e o chamado "passeio de nota", práticas que são adotadas pelas empresas para pagarem menos ICMS nas operações interestaduais.
A inclusão do comércio foi feita pelo senador Agripino Maia (DEM-RN), e contrariou principalmente os Estados do Sul e Sudeste, que já haviam se conformado com os 7% para bens manufaturados. "Incluir comércio foi exagero", reclamou o secretário de Fazenda do Rio Grande do Sul, Odir Tonollier.
"Não era o que eu defendia, mas foi um passo importante", justificou o presidente da CAE, Lindbergh Farias (PT-RJ). As alíquotas diferentes são a base das disputas estaduais. Por isso, muitos especialistas acreditam que a batalha continuará. A chamada guerra fiscal acontece quando Estados oferecem desconto no ICMS para atrair empresas e investimentos.
Emendas. Nesta terça-feira, a CAE analisou emendas ao texto - entre elas, uma alteração proposta pelos senadores Aloysio Nunes (PSDB-SP) e Eduardo Suplicy (PT-SP), eliminando os 12% para a Zona Franca. Mas essa proposta foi derrotada.
Mas a avaliação de que o sistema piorou não é compartilhada pelo secretário de Fazenda de Goiás, Simão Cirineu, um experiente administrador tributário. Para ele, o funcionamento prático do sistema atual não contempla duas alíquotas, mas uma infinidade delas, já que há muitas formas de desconto.