segunda-feira, 16 de abril de 2012

Direitos humanos face à dramaticidade da vida


Maria Garcia - O Estado de S.Paulo

O valor universal dos direitos humanos vem juridicamente reconhecido desde a Carta da ONU de 1945, em cujo Preâmbulo os "Povos das Nações Unidas" reafirmam sua "fé nos direitos fundamentais do homem...", e na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Na Constituição brasileira de1988, duas disposições destacam-se no tema: o art. 5º, caput, pelo qual se garante a inviolabilidade do direito à vida, e o art. 227, pelo qual "é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, com absoluta prioridade, o direito á vida...", além de colocá-la "a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". Esse, o mandamento constitucional dirigido a todos (família, sociedade e Estado). Então, qual é o problema, afinal, dos direitos humanos?
Um longo processo de desconstrução inicia-se na modernidade. "Ser moderno", diz Marshall Berman, "é ser ao mesmo tempo revolucionário e conservador. Pode acontecer então que voltar atrás seja uma maneira de seguir adiante: levar o modernismo de volta a suas raízes, para que ele possa nutrir-se e renovar-se".
Evidentemente, o equilíbrio está em responder: o que deve ser mantido? O que deve ser mudado? E aí está toda a diferença. Charles Taylor escreve sobre "a doença da modernidade" (1994): a primeira causa de mal-estar é o individualismo, uma conquista da liberdade que apresenta traços de uma "sociedade permissiva", do comportamento da "me generation", ou da generalização do "narcisismo". A segunda causa prende-se a um outro fenômeno inquietante da época moderna que se pode chamar "a primazia da razão instrumental, ou seja, essa racionalidade que utilizamos quando avaliamos os meios mais simples de chegar a uma dada finalidade". Pensamos em termos de custo/beneficio, os quais atribuem um valor monetário à vida humana. A primazia da razão instrumental aparece também no prestígio que cerca a tecnologia e nos faz buscar soluções tecnológicas mesmo quando o objetivo é de outra ordem. A terceira causa do mal-estar nos leva ao nível político e às consequências resultantes, precisamente, do individualismo e da razão instrumental. Uma delas é que as estruturas da sociedade tecnoindustrial restringem nossas escolhas, decidem por nós o que nos é necessário, daí podendo atingir um nível de destruição como o que ocorre com o meio ambiente, e nas ameaças ecológicas que pesam sobre nossas vidas. Tais são, conclui Taylor, as três doenças da modernidade: a 1ª, uma perda de sentido, o desaparecimento dos horizontes morais. A 2ª, ao eclipse dos fins, em face de uma razão instrumental desenfreada. A 3ª refere-se à perda da liberdade.
Qual a receita? Segundo Taylor, desenvolver uma cultura política que valorize a participação do cidadão, seja nos níveis governamentais, seja nas associações livres, e para tanto, certamente, a educação se mostra um instrumento poderoso e é o que nos falta estimular.
Sobre o aborto, especificamente, a lei brasileira aponta a sua possibilidade em certos casos, ressaltando-se que a vida é um processo que se inicia com a concepção (José Afonso da Silva) e o direito a viver está assegurado pela Constituição. Direito significa possibilidade do seu exercício. Fora disso, não existe "direito a". Então, há certos pressupostos para o exame dessas questões: 1) a Constituição erigiu a vida em bem jurídico; 2) juridicamente, a vida é um processo que se inicia com o óvulo fecundado e termina com a morte; e 3) a divisão desse processo (pré-embrião, embrião, etc.) cabe às ciências naturais, para fins didáticos, medicinais e outros dessa área. No caso das crianças anencéfalas, portanto, todos esses pressupostos têm de estar presentes: existe um ser humano, vivo e, por consequência, sob a proteção constitucional.
"A tese da chamada ADPF 54", diz o médico e professor Rodolfo A. Nunes (Folha de S. Paulo, 10/4/12), "é de que na anencefalia não se trataria de aborto", pois inexistiria a possibilidade de vida extrauterina e, por isso, se situaria à margem da legislação atual. "Na realidade, essa tese não tem respaldo na literatura médica. A anencefalia não é equivalente à morte encefálica: as crianças podem ter uma parte do encéfalo posterior, médio e resíduos do anterior. Isso faz com que um pequeno porcentual delas, em função do grau de comprometimento, possa ter alta hospitalar, chorando, movimentando-se, respirando espontaneamente e viver semanas, meses ou, excepcionalmente, mais de um ano." E conclui: "Tentar abreviar o sofrimento trazido por uma doença grave eliminando alguém porque não se pôde curá-lo é cultura estranha ao nosso povo". Com efeito, se formos eliminar as causas de nosso sofrimento, faríamos como O Estado publicou em 3/4/12: "Professor mata por causa de barulho". O mesmo em outras circunstâncias, mais ou menos dolorosas e dramáticas. E, sem dúvida, Eliana Zagui, escritora, até hoje (36 anos) vivendo num leito de UTI no Hospital das Clínicas de São Paulo, paralisada desde o pescoço aos 3 anos, poderia ter sido sacrificada por causar sofrimento aos pais, que, aliás, "raramente a visitam" (Folha de S. Paulo, 10/4/12).
Conforme se destaca dos corajosos e fundamentados votos contrários, na recente decisão do STF: "Uma decisão judicial isentando de sanção o aborto de fetos portadores de anencefalia, ao arrepio da legislação penal vigente, além de discutível do ponto de vista ético, jurídico e cientifico, diante dos distintos aspectos que essa patologia pode apresentar na vida real, abriria as portas para a interrupção da gestação de inúmeros outros embriões que sofrem ou venham a sofrer outras doenças, genéticas ou adquiridas, as quais, de algum modo, levem ao encurtamento de sua vida intra ou extrauterina" (ministro Lewandowski). Assim, "o anencéfalo morre, e ele só pode morrer porque está vivo". A questão dos anencéfalos tem de ser tratada "com cautela redobrada diante da imprecisão do conceito, das dificuldades do diagnóstico e dos dissensos em torno da matéria".
Para que o aborto possa ser considerado crime, basta a eliminação da vida, "abstraída toda especulação quanto a sua viabilidade futura ou extrauterina". Nesse sentido, o aborto do feto anencéfalo é "conduta vedada de forma frontal pela ordem jurídica". Os apelos para a liberdade e autonomia pessoais são "de todo inócuos" e "atentam contra a própria ideia de um mundo diverso e plural". A discriminação que reduz o feto "à condição de lixo em nada difere do racismo, do sexismo, e do especismo". Todos esses casos retratam "a absurda defesa e absolvição da superioridade de alguns sobre outros" (ministro Peluso).
Eis a questão do valor universal dos direitos humanos neste limiar do século 21, quando enfocadas as condições e a dramaticidade da própria vida, onde quer que se encontre, desde as pequenas criaturas que não têm voz, às centenas de seres humanos sacrificados no Holocausto.  
MARIA GARCIA É PROFESSORA DE DIREITO, CONSTITUCIONAL, DIREITO EDUCACIONAL, BIODIREITO CONSTITUCIONAL NA PUC-SP

A realidade fora do tribunal


Para médico, mulheres devem receber as informações do diagnóstico e do prognóstico; a partir daí, cabe a elas decidir

15 de abril de 2012 | 3h 09
Thomaz Gollop - O Estado de S.Paulo

Mesmo depois de votada a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 - Anencefalia -, é preciso esclarecer pontos importantes. Várias lições foram aprendidas por todos que acompanharam cuidadosamente a votação encerrada quinta-feira no Supremo Tribunal Federal (STF). Quase ao final da votação o ministro Lewandowski afirmou que haveria graus variados de anencefalia. A ciência estabelece que anencefalia é uma malformação congênita grave e incompatível com a vida, caracterizada por ausência de encéfalo e de crânio, permanecendo apenas a base do crânio. Ela é uma entidade única e não é subdividida em graus. Em 100% dos casos é mortal. Os fetos portadores dessa anomalia sobrevivem minutos ou dias após o nascimento. Anencefalia é um diagnóstico preciso e único: ausência de crânio, encéfalo, existindo apenas a base do crânio. Existem outras malformações do sistema nervoso que são raras e distintas da anencefalia: acrania e merocrania, das quais não trata a ação apresentada ao STF.
Outra questão importante: autorizada a antecipação do parto em gestações acompanhadas de fetos anencéfalos estaria, segundo alguns, aberta uma porta para a ampliação dos permissivos legais do aborto. Certamente não, levada em consideração apenas essa decisão do STF. Muito bem falou o ministro Ayres Brito em seu voto: "Todo aborto é uma interrupção de gestação, mas nem toda interrupção de gestação é um aborto". Em todos os fóruns, nacionais e internacionais, incluído nosso Conselho Federal de Medicina, o feto anencéfalo é considerado um natimorto cerebral. Logo, não se trata de aborto, por não haver feto viável. Mais ainda, afirmou Ayres Brito: se os homens engravidassem, essa questão já estaria resolvida há muitos anos!
Foi importante absorver as lições que embasaram o voto do relator - ministro Marco Aurélio - ao elencar, entre outros, princípios que devem ser caríssimos à nação brasileira como laicidade do Estado, direitos reprodutivos e sexuais, autonomia das mulheres, não submeter ninguém (as mulheres no caso) a tratamento indigno ou a tortura. Verifica-se que o julgamento da ação foi muito além do foco central que a originou. No Brasil ainda é pouco difundido o conceito de laicidade do Estado: respeitam-se todas as religiões e mesmo quem não possui nenhuma. Cada uma pode manifestar-se sobre qualquer questão que diga respeito aos cidadãos(ãs), mas nenhuma delas deve interferir sobre questões que dizem respeito ao Estado. Nesse sentido, questões do Direito são públicas e questões de fé são privadas.
Em relação à autonomia das mulheres, deverá ficar claro que a decisão do STF não obriga as mulheres a anteciparem o parto em casos de anencefalia. Elas deverão receber todas as informações relativas ao diagnóstico e prognóstico fetal, assim como eventuais riscos para a saúde da gestante. O apoio psicológico será muito importante. A partir disso, cada mulher decidirá se quer manter a gravidez e, consequentemente, ser seguida em unidade obstétrica competente ou, ao contrário, interrompê-la. Naqueles casos em que a mulher se decidir pela interrupção, será seguido um protocolo de atendimento que está em fase final de elaboração na Área Técnica da Saúde da Mulher do Ministério da Saúde e orientará os profissionais de saúde na atenção ao abortamento em casos de anencefalia, conforme a norma técnica do ministério "Atenção Humanizada ao Abortamento" (2011), nos casos previstos em lei. Na verdade já há muitos precedentes de atendimento às mulheres nessa condição, pois nos últimos 23 anos os juízes de primeira instância concederam, caso a caso, alvarás judiciais e as mulheres foram então atendidas sem que se tenha notícias de dificuldades na prestação desse serviço. Não haverá, portanto, sobrecarga no Serviço Único de Saúde (SUS).
As causas dessa grave anomalia congênita são geográficas, sazonais, genéticas e nutricionais. Sobre as três primeiras não podemos ainda interferir. Entretanto, desde 1973 sabemos que a deficiência de ácido fólico (vitamina B9) é responsável por aproximadamente 50% dos casos de anencefalia. Por essa razão o Ministério da Saúde tem uma política pública que consiste em acrescentar ácido fólico às farinhas e com isso contribuir para a minimização da ocorrência e recorrência da anencefalia. Além disso, é ensinado aos médicos obstetras prescreverem ácido fólico na dose de 4 mg pelo menos um mês antes da gestação e nos primeiros dois meses da gravidez. Esse é um medicamento barato e disponível no SUS. E em relação à precisão e disponibilidade de diagnóstico? O diagnóstico é 100% seguro com uma única ultrassonografia a partir de 12 semanas de gravidez. Dizia com razão o saudoso professor José Aristodemo Pinotti que há dois diagnósticos ultrassonográficos em obstetrícia que não têm erro: óbito fetal e anencefalia. Qualquer serviço público ou privado está habilitado a fazê-lo.  
THOMAZ GOLLOP É MÉDICO OBSTETRA, ESPECIALISTA EM MEDICINA FETAL

Fotografando o que não existe


CLAUDIO EDINGER, Aliás, dia 15/4/2012
Quando fui fotografar num centro espírita em São Paulo voltei pra casa com um legítimo Picasso, comprado por R$ 50 à vista. Sensacional! Aproveitei e encomendei ao médium uma foto psicofeita por Cartier-Bresson. Ele mandou avisar que aguarda o momento decisivo certo...
Picasso dizia que a arte é uma mentira que conta a verdade. Falava da fotografia. Mentira só é mentira se puder passar por verdade. O rosto todo torto e deformado de uma mulher com dois olhos do lado de cá do nariz não é uma mentira. É a verdade de Picasso. Mas a foto que fiz há dois anos e coloco no Facebook como sendo eu é pura mentira. A foto de ontem é mentira hoje. Eu não sou mais daquele jeito que era ontem, hoje. Não penso mais assim, não sou mais aquele (e aquela) cara. E a fotografia é tanto mentira pelo tempo quanto pelo espaço. A foto da praia nos dá a ilusão de que é ela, mas não tem nada da praia - nem cheiro, nem vento, nem molha, nem enche o carro de areia. A Susan Sontag definiu bem isso: "Todas as fotos são memento mori, lembranças de algo que já desapareceu".
Queremos que a vida não acabe, que nossa juventude não acabe, que as coisas boas nunca acabem. A fotografia surgiu disso, dessa fome do que não acaba nunca. Ela nasceu em 1824 nas mãos de Nicephore Nièpce, um inventor francês. Mas há controvérsias. Alguns dizem que foi Daguerre, em 1839. Um outro inventor, Bayard, quando soube que Daguerre havia sido reconhecido como tal, aceito pela Academia Francesa de Ciências, mandou-lhes uma foto de si mesmo afogado (!). Não só inventou a fotografia como também foi o primeiro grande mentiroso explícito do ramo. Enquanto isso, Fox Talbot inventava a fotografia na Inglaterra. Mais que isso, inventava a fotografia arte, já que era, de longe, o melhor fotógrafo dos três. Até aqui no Brasil um francês chamado Hércules Florence, redescoberto pelo nosso brilhante Boris Kossoy, criou um método só dele de transferir o mundo pro papel.
Antes disso vários pintores utilizaram o artifício da câmera obscura para fazer sua arte. A câmera obscura foi descoberta pelo chinês Mo-Ti, 400 anos antes de Cristo. Na própria caverna de Platão, as pessoas presas viam imagens nas paredes, possivelmente sob o efeito da câmera obscura.
É fácil fazer uma câmera obscura em casa: escolha um quarto com uma boa vista, feche as janelas com uma cortina preta, imune à luz, e fita adesiva. Abra um pequeno furo de um ou dois centímetros no meio do tecido e na parede oposta à janela deve aparecer, de cabeça pra baixo, a vista da janela. O fotógrafo cubano-americano Abelardo Morell utiliza a câmera obscura para fazer trabalhos lindos que estão na coleção de mais de cem museus do mundo. São imagens de imagens de imagens...
O Pintor mais célebre a usar a câmera obscura foi o espanhol Diego Velásquez. Para pintar um dos quadros mais importantes da história, o Las Meninas, Velasquez usou uma câmera obscura. E não foi o único, Caravaggio também usava o artifício. A fotografia perseguia a pintura como uma assombração.
A sanha era tanta pra nascer que ela foi inventada por cinco pessoas diferentes. E quando nasceu assustou de tal forma a pintura que essa virou o Impressionismo. E, do Impressionismo, a pintura foi distanciando-se cada vez mais da fotografia, com Braque e Picasso e o cubismo. Por anos a jovem arte fotográfica crescia nas mãos de grandes artistas como Talbot, Fenton, Muybridge, Nadar, Prokudin-Gorsii, Lartigue, Atget, Brassai, Stieglitz e Steichen. Nos anos 60 o fotógrafo americano William Eggleston revolucionou a fotografia tornando-a colorida e ainda mais presente nos museus. Claro, a foto colorida foi inventada muito antes, mas acabou potencializada nas mãos de Eggleston, que influenciou toda uma geração brilhante trabalhando com câmeras de grande formato: Stephen Shore, Joel Meyerowitz, Richard Misrach, Joel Sternfeld.
"No futuro o analfabeto não vai mais ser quem não sabe ler", disse profeticamente o pensador Walter Benjamin no começo do século 20. "O analfabeto será quem não souber ver fotografias." Isso hoje acabou. Acabaram-se os analfabetos fotográficos. Só que fotografia mesmo é um alfabeto. "Quem conhece e desenha bem as letras é um ótimo calígrafo", dizia o fotógrafo húngaro André Kertész, cuja exposição abre no MIS em maio. "O bom escritor tem que ter algo a dizer."
E algo a dizer nestes novos tempos de completa literacia fotográfica é o que não falta. Redes sociais como o Facebook e Instagram aumentam a cada segundo nossa capacidade de compartilhar e mostrar domínio sobre o alfabeto fotográfico. A foto publicada é, queiramos ou não, editada e assimilada por quem vê e assim produz novas imagens melhores e mais sofisticadas. É um processo que ninguém sabe onde vai parar. Mas, se o que está acontecendo agora é alguma pista, a fotografia vai crescer de tal forma que os tempos atuais serão apenas a pré-história da nossa arte. Já vemos isso acontecendo aos poucos aqui no Brasil, nas mãos geniais de Miguel Rio Branco, Claudia Jaguaribe, Cassio Vasconcelos, Cristiano Mascaro, Sebastião Salgado, Pedro Martinelli, João Castilho, Pedro Motta, Eustáquio Neves, Gustavo Lacerda, Caio Reisewitz, Gal Oppido, Bob Wolfenson, Julio Bittencourt, Christian Cravo, Iatã Cannabrava, Juan Esteves, Juliana Stein, Rogerio Reis, Tiago Santana, Eduardo Muylaert, Betina Samaia, Marcos Bonisson, Bruno Veiga, Rosangela Rennó, Rochele Costi, Tuca Vieira, Gui Mohallen, Cia de Foto, Lost Art e muitos, muitos outros.
Imagino o médium do centro espírita recebendo o espirito de Nièpce, vendo o que está acontecendo, abrir um largo sorriso. Quem diria que aquela sua simples foto, do fundo do quintal, iria dar nisso...