Com exceção do francês Jacques Audiard, o cineasta que nos presenteou com a fantasia pseudomexicana "Emília Pérez", é difícil encontrar um adulto sensato cuja imaginação produza a figura do traficante assassino virtuoso.
Mas esta coluna não é sobre ficção, e sim sobre a realidade da qual os mexicanos não serão poupados, nem por um milhão de ONGs piedosas.
Um dos primeiros atos de Donald Trump, no dia da posse, foi designar como terroristas os cartéis de traficantes do México. Na prática, a decisão pode ampliar o uso de sanções e também —esta questão não é clara— envolver as Forças Armadas no combate ao tráfico.
A ideia de narcoterrorismo nos EUA não é nova e é bipartidária. De Ronald Reagan a Hillary Clinton, políticos americanos defenderam alguma forma de envolvimento militar na caça aos cartéis que se aproxima de meio século de fracassos.
No México, o índice de homicídios estava em declínio no começo do milênio, até que o presidente Felipe Calderón, empossado em 2006, implantou a militarização do combate ao tráfico. Desde então, o país acumulou centenas de milhares de homicídios e pelo menos 100 mil casos de desaparecidos.
O presidente americano cita a trágica epidemia de opioides para ameaçar o México e o Canadá com sanções comerciais. Para quem se interessa por fatos, o Canadá é responsável por 0,2% das apreensões de fentanil por autoridades americanas, e a agência canadense responsável pela fronteira confirma que a quantidade de drogas ilegais com origem nos EUA é mais alta e não para de subir.
Mesmo sem incluir os cartéis na lista de Organizações Terroristas Estrangeiras do Departamento de Estado, o governo federal americano já dispunha de vasta capacidade de coleta de inteligência sobre os traficantes. A questão aqui é de prioridade. Mas a inclusão cria um cenário de incerteza jurídica, além de não trazer garantia de proteção da segurança nacional. Um especialista do think tank Rand Corporation disse acreditar que os traficantes poderiam se transformar em grupos terroristas de fato.
O historiador mexicano Oswaldo Zavalla, autor de um livro sobre o narcotráfico, lembra que a maioria dos usuários de fentanil são cidadãos americanos, assim como a maioria dos responsáveis pela entrada desta droga nos EUA. Como já acontece com pessoas flagradas em qualquer contato com a Al Qaeda ou com o Estado Islâmico, americanos usuários de opioides poderiam ser investigados por apoio a terrorismo. Empresas e bancos —nos EUA e em outros países— ficariam expostos à Justiça criminal americana por ter inadvertidamente vínculos com empresas ou indivíduos mexicanos apontados como suspeitos.
Num presente de captura de governos por extremistas, é difícil conceber como misturar grupos movidos por religião ou ideologia, inimigos declarados de um país, a criminosos cujo interesse é sobretudo financeiro.
Jason Blazakis, ex-assessor do governo Barack Obama responsável por vetar a classificação de organizações terroristas, explicou recentemente que a decisão de não incluir os cartéis na lista foi tomada sobretudo pelo dano que ela poderia causar às relações bilaterais com o México, um país que não endossa essa classificação. Mas o tempo em que considerações diplomáticas tinham peso em Washington parece hoje distante.
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