Ruy Castro
Meu nome é [digamos, Ruy] e sou alcoólatra. É assim que as pessoas se apresentam nas reuniões dos Alcoólicos Anônimos quando pedem a palavra para contar sua história. O sobrenome não interessa. Não porque temam se expor, mas porque, não importa a origem, classe social, profissão, idade ou cor da pele, todos os alcoólatras vivem a mesma história. Todos acreditam que bebem por prazer, que têm controle sobre o que bebem e que deixarão de beber quando quiserem. Alguns se salvam aos 44 minutos do segundo tempo. A maioria não chega a isso, morre antes. Estou, por enquanto, no primeiro grupo.
Bebi dos 20 aos 40 anos. Durante os primeiros 15, foi realmente uma história de prazer: grandes vinhos e uísques em balcões dourados; ao fundo, a parede espelhada, os copos de cristal, o troar da coqueteleira; em volta, belas mulheres e gente falando francês. O cenário, Rio, Lisboa, Paris, Nova York, São Paulo. A vida era isso e beber apenas fazia parte dela.
E, então, a roda começou a girar: a cada semana, mais dias; a cada dia, mais cedo; e, a cada hora, em maior velocidade. Um dia, sem aviso, a dependência se instalou. Aos poucos, o glamour se dissipou, as pessoas sumiram, as luzes se apagaram, a vida ficou sórdida e o mundo cabia numa vodca em copo de geleia. Nessa espiral, vão-se os empregos, os trabalhos, a credibilidade, os amigos, a família, o dinheiro e a saúde.
Um dia, sem aviso, a dependência se instalou. Aos poucos, o glamour se dissipou, as pessoas sumiram, as luzes se apagaram, a vida ficou sórdida e o mundo cabia numa vodca em copo de geleia. Nessa espiral, vão-se os empregos, os trabalhos, a credibilidade, os amigos, a família, o dinheiro e a saúde
Os conselhos tipo "Você está bebendo demais, vai acabar morrendo" não adiantam. A partir de certa etapa, o alcoólatra já não bebe porque quer, mas, paradoxalmente, para salvar a vida. Sem a bebida, que seu organismo não pode mais dispensar, não consegue levar à boca a xícara do café da manhã. A mão treme como um beija-flor. O próprio copo (de vinho, vodca, uísque, cerveja, cachaça, tanto faz) que lhe permitirá uma momentânea estabilização chega à boca com dificuldade. Ingerida a poção mágica, as mãos param de tremer por certo tempo —uma ou duas horas, para alguns; alguns minutos, para mim.
Beber sob controle? Sim, é possível, mas só se você não for dependente. Muita gente se limita a um uísque, duas taças de vinho ou três chopes por dia, porque este é o seu limite —acima deste, o porre, a ressaca e a culpa. O alcoólatra não tem limite, custa a ficar de porre, nunca tem ressaca e não sabe o que é culpa. Se, por acaso, ainda lhe restar uma centelha de consciência, talvez ache que precisa "dar um tempo", "moderar" —parar de vez, nem pensar—, mas, a essa altura, já não é a cabeça que comanda. Quem manda agora é o organismo, um ente à parte, monstruoso, com necessidades próprias e que, se não for atendido, torna-se uma fera acuada.
Não existe dependente feliz. O álcool, ao contrário do que se pensa, não é um excitante, mas um depressor. Com o tempo, o volume de álcool nas entranhas instaura um processo de apatia, desânimo e, por fim, a depressão, que, na cabeça do dependente, só pode ser combatido com mais álcool —o que é a causa torna-se um pretexto para beber mais. Se for a um psicanalista para tentar descobrir "por que bebe tanto", é possível que, em um ano ou dois, ele fique sabendo. Infelizmente, isso não tem a menor importância, porque ele já terá morrido antes.
Há dias, completei 37 anos de abstinência. Bebi pela última vez no dia 25 de janeiro de 1988, minutos antes de sair para a internação numa clínica em Cotia, a 30 quilômetros de São Paulo, levado por minha então mulher, a jornalista Alice Sampaio. Pelos 28 dias seguintes, descobri o que acontece quando o organismo se vê privado, sem aviso prévio, da substância que ele já não podia dispensar. A fera que traz dentro de si se manifesta com inacreditável furor. Mas uma clínica é um ambiente controlado, e eles sabem como domá-la. Em alguns dias, a fera se aplaca, se submete e a vida recomeça, quase do zero. A história desses 28 dias está contada no livro "O Oitavo Selo", de Heloisa Seixas, que acaba de sair pela Companhia das Letras.
Os 37 anos a seco se passaram dia a dia, sem um segundo de arrependimento de minha parte por ter deixado. Mas não me entenda mal. Sei muito bem que beber é ótimo. Não sou contra ninguém beber. Sou contra eu beber.
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