sexta-feira, 12 de julho de 2024

Bernardo Carvalho - Eleitores ingênuos da extrema direita confundem suicídio coletivo com esperança, FSP (definitivo)

 Num prefácio de 1964, explicando a "filosofia fora de moda" de Voltaire, Roland Barthes escreveu: "Os ateus já não se prostram aos pés dos deístas, que aliás já não existem. A dialética matou o maniqueísmo, e é raro que se discuta a Providência".

De lá para cá, muita coisa mudou. Em todo caso, o importante para Barthes era mostrar como, no século 18, às vésperas da chegada da burguesia ao poder, Voltaire corria a favor do seu tempo a ponto de coincidir com o movimento da História. É mais fácil (e mais natural) ser irônico contra o obscurantismo religioso e inquisidor na aurora da razão moderna do que na Idade Média.

Homem com cabelos compridos brancos e terno azul
Retrato de Voltaire (c. 1718-24), por Nicolas de Largillière - Wikimedia Commons/Reprodução

Voltaire foi um filósofo feliz, porque esperado e acolhido por seu tempo. Um porta-voz do nascimento da razão burguesa contra um inimigo "uniformemente condenável".

Só é possível ironizar o otimismo insistente e sistemático, como em "Cândido, ou o Otimismo", convertê-lo em corrupção lógica, associá-lo à cegueira, à ingenuidade e à estupidez diante de um mundo de horrores, injustiças e atrocidades sem fim, se já nos consideramos fora dele, no mundo da razão moderna.

Em Voltaire, a razão ganha um sentido natural que a faz pairar acima da História, no lugar antes ocupado por Deus, e que se por um lado a contrapõe a toda doutrina ou sistema opressivo, por outro a mantém paradoxalmente em suspensão absoluta fora do tempo.

É a inteligência, a liberdade de espírito anti-intelectualista, segundo Barthes, que vai fazer de Voltaire um aliado do liberalismo contra marxistas, existencialistas, progressistas e intelectuais de esquerda. Com a dimensão e a ferocidade dos crimes racistas revelados como política de Estado na Europa do século 20, entretanto, já não bastará o panfleto da liberdade de espírito e de expressão contra a estupidez e o dogma: "Já não dá para dar lições de tolerância a ninguém", é preciso explicar, pôr-se e perceber-se em movimento, de volta à dinâmica da História.

Ouvi outro dia um historiador fazer o elogio do otimismo. Falava mais como político e homem público de esquerda do que como escritor, papel com o qual ele também flertava. Nenhum político que deseje angariar votos vai se apresentar como pessimista, é claro. Mas também não me lembro de nenhum grande escritor otimista.

"Voltaire foi um escritor feliz, mas foi certamente o último", escreve Barthes. Seu anacronismo —que ele tenha se tornado o último escritor feliz— talvez nos permita repensar a razão hoje, a ironia e o que pode o otimismo dentro da História, num mundo tomado pela onda racista, autoritária e obscurantista dos movimentos de extrema direita.

O senso comum costuma associar pessimismo a niilismo, naturalmente, ainda mais em tempos de crise, quando a razão se torna contraintuitiva. Nas artes, porém, o pessimismo sempre foi motor das contradições de que a História também é feita.

De onde vem a força de escritores cujas obras monumentais representam mundos terríveis, sombrios e deprimentes? Por que escrevem em vez de se matar? De onde vem o riso que muitas vezes envolve e sustenta essa escrita? Basta pensar em Kafka, em Beckett, em Thomas Bernhard.

O pessimismo é uma insatisfação viva, uma indisposição com o seu tempo. É contrapor-se à transparência e à naturalidade do presente, revelando o movimento da História. Não tem nada de imobilidade, paralisia, cinismo ou desistência. Ao contrário. É a constatação realista e crítica da História e suas contradições.

Inversamente, é a repulsa e o rancor pela reflexão crítica, aposta na imobilidade e na extemporaneidade dos bodes expiatórios, das soluções simplistas (absolutas e falsas), que alimentam o populismo de extrema direita. E não é de todo absurdo pensar que um otimismo cego, pervertendo a razão, informe, sim, seus eleitores mais ingênuos ou desesperados, a ponto de fazê-los confundir suicídio coletivo com esperança.

No fim de semana passado a França de Voltaire por pouco não escolheu ser governada pela extrema direita. Foi salva graças à costura de um surpreendente —e até então inconcebível— compromisso das esquerdas para evitar o pior.

A ironia já não dá conta da estupidez, a não ser para mostrar como, mais de três séculos depois, chamada a comparecer diante da História, desalojada do lugar absoluto ao qual tinha sido alçada pelo advento da mesma classe que agora a pisoteia ao igualar esquerda a extrema direita, a razão (ou o simulacro que resta dela) pouco pode contra a barbárie da qual prometia salvar a humanidade.


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