quarta-feira, 5 de junho de 2024

Alianças por um fio, Por Christian Lynch, MEIO (definitivo)

 Lula assumiu seu terceiro mandato com um espírito restaurador, ensaiando retorno às rotinas de 2010. Uma delas, que combina com a ideia da frente ampla, foi a de montar no Congresso uma coalizão baleia, ou arca de Noé, oferecendo espaço no ministério e preferências no atendimento de pedidos a todos os bichos que nela embarcarem. Ocorre que as condições do Brasil mudaram. Ainda no esforço da frente ampla, mas de forma inédita, Lula abarcou o apoio do “partido liberal” - e sobre ele falamos mais adiante. Ambas as alianças apresentam fragilidades que podem definir o futuro eleitoral de Lula.

Sobre a reencenação da coalizão baleia, as condições do Brasil mudaram. A maior diversidade de interesses e ideologias resulta em mais conflitos e desafios na formulação e implementação de políticas públicas. A necessidade de conciliar posições divergentes resulta em políticas ambíguas ou pouco efetivas, aumentando a insatisfação entre os aliados e a população em geral. Não por acaso, Lula tem se aproximado do Supremo Tribunal, também alvo do Congresso. Um judiciarismo de coalizão pode ajudá-lo a reverter algumas derrotas cruciais.

A ideologia dominante no Congresso, por sua vez, é conservadora. O surgimento das emendas impositivas e do orçamento secreto emanciparam o centrão – o miolo direito congressual - da dependência do governo. O conservadorismo também o tornou mais refratário a alianças de ocasião. Em outras palavras, obter maioria ficou mais caro e difícil. O presidente da República perdeu seu antigo poder de agenda. Daí as derrotas que ali sofre. A má administração da coalizão também não ajuda. O presidente resiste a se livrar dos companheiros, nem se empenha pessoalmente na interlocução, a despeito de periódicas promessas. Aposta que o sucessor de Arthur Lira na presidência da Câmara seja mais amigável. Será?

Lula tem muito o que mostrar em matéria de realizações. Há a aprovação do arcabouço fiscal e da reforma tributária, a redução das queimadas, a normalidade institucional, o retorno da liberdade de imprensa, a subida do produto interno bruto, a queda da inflação e do desemprego, o retorno do diálogo com a sociedade civil. Na política externa, o Brasil deixou de ser pária. Adotou posição mais crítica à ditadura venezuelana e condenou com veemência os crimes de guerra em Gaza. A criação de um ministério extraordinário para o Rio Grande do Sul foi uma iniciativa inteligente para capitalizar a ajuda do governo federal aos flagelados. A deficiência na comunicação hoje, porém, retira dos governos metade dos créditos que lhe são devidos. E a desarticulada base governista não tem competência sequer para derrubar o veto de Bolsonaro aos disparos em massa de fake news.

Ou o governo não compreendeu o alcance da revolução midiática, ou não ainda não descobriu o que fazer.

Há vinte anos a internet já permitia aos blogueiros de esquerda quebrar o monopólio informacional do jornalismo liberal. Nada disso pode ser comparado, porém, às atuais redes sociais, nova mídia pela qual se informa e se comunica a maioria dos brasileiros, impulsionada por algoritmos que favorecem notícias escandalosas. Já não basta a uma administração ser objetivamente boa para vencer uma eleição. Ser e parecer se tornaram coisas completamente diferentes. Ou o governo não compreendeu o alcance da revolução midiática, ou não ainda não descobriu o que fazer. Talvez porque a própria esquerda ainda não tenha processado as transformações socioeconômicas e tecnológicas ocorridas durante o último ciclo globalizador. Sem um diagnóstico seguro, não se organiza um plano de ação.

As dúvidas sobre a viabilidade de um Lula 4 estimulam precocemente as especulações relativas ao sucessor de Jair Bolsonaro na eleição de 2026. Se Bolsonaro vai mal, o populismo reacionário vai bem. Inelegível, o ex-presidente impõe duas grandes condições de apoio a seus eventuais sucessores: primeiro, a mais abjeta vassalagem; segundo, o empenho diuturno por uma anistia que o livre de pagar pelos crimes cometidos na presidência. Nesse meio tempo, os membros de sua família mobilizam a base por meio de narrativas vitimistas, na expectativa de que o tempo reduza a indignação por seus ilícitos, cuja apuração infelizmente se arrasta na Polícia Federal. No culto, Michelle levanta os fanáticos. No Senado, Flávio promete negócios aos empresários inescrupulosos. Na Câmara, Eduardo desfila nos convescotes da Internacional Neofascista ao lado de bufões como Javier Milei; criminosos de guerra como Benjamin Netanyahu, além de adular o já condenado Donald Trump.

Isso não significa que o establishment conservador do Congresso seja bolsonarista. A direita centrônica de Arthur Lira e Ciro Nogueira é grata a Bolsonaro, respeita seu curral eleitoral, mas rejeita o extremismo. O presidente de que têm saudade não é Bolsonaro, mas Temer. Aspiram ao semipresidencialismo, não à ditadura. Querem blindagem, não encrenca com o Supremo. É possível que os candidatos à sucessão de Bolsonaro – Tarcísio e Caiado – também pensem assim. Os otimistas dizem que eles são moderados. Mas que, enquanto a Justiça não tirar Bolsonaro de circulação, eles são obrigados a acenar para o populismo reacionário para melhorar suas posições de herdeiros. Já os realistas não sabem se são realmente moderados encapotados de extremistas ou, no fundo, apenas extremistas que usam talheres. Afinal, não existe bolsonarismo moderado. Ademais, enquanto as redes sociais não forem submetidas ao império da lei, o extremismo continuará, com ou sem Bolsonaro. E, não podendo abrir mão dos votos fascistóides, seus sucessores – Tarcísio e Caiado – terão de continuar dançando a valsa do extremismo.

Relações com o “partido liberal”

Nesse cenário complexo, explica-se a a aposta do governo no desempenho econômico para subir nas pesquisas e prevenir um eventual revés eleitoral. É verdade que o investimento da extrema-direita na guerra cultural e nas fake news neutralizou parte dos efeitos eleitorais da melhoria econômica. Mas ela segue responsável por um percentual expressivo de votos por parte dos eleitores ideologicamente menos radicalizados. A tradicional fórmula de Lula combina aquecimento econômico e redistribuição de renda, pela mobilização do aparato econômico estatal como indutor do crescimento. As engrenagens aqui são, do ponto de vista monetário, o Banco Central; do financeiro, os bancos do Brasil e a Caixa Econômica; e de alavancagem econômica, a Petrobras. Daí a pressão pela queda dos juros por parte do Banco Central, cujo presidente é bolsonarista, e a retomada de grandes projetos na Petrobras - como o Comperj, a prospecção na margem equatorial do Amazonas e a refinaria de Abreu e Lima. Até o ministro Dias Toffoli dá uma mãozinha, quando reabilita as empreiteiras condenadas no âmbito da defunta Lava Jato para retomar a antiga parceria nesses novos (e velhos) empreendimentos.

O “partido liberal” tem representantes em vários, um grupo tradicional que tem dinheiro, influência política e prestígio social.

A preparação eleitoral do governo encomenda, porém, uma crise potencial com o “partido liberal”. Por essa expressão não designo aqui a sigla reacionária de Valdemar da Costa Neto, mas aqueles setores que no Brasil se identificam como “sociedade civil” e cujo coração batia pelos tucanos antes da implosão do PSDB. O “partido liberal” tem representantes em vários, um grupo tradicional que tem dinheiro, influência política e prestígio social. O “partido liberal” fala pelos editoriais da imprensa tradicional, publicada e televisiva, e reúne muito do que há de mais respeitável no empresariado e nas finanças. Seus membros não são tão homogêneos quanto parecem: mesmo o centro tem uma direita e uma esquerda. Aderiram à Lavajato para depor Dilma, depois se dividiram entre apoiar ou depor Temer, seguiram divididos quando Moro aderiu a Bolsonaro, voltaram a se reunir para lhe fazer oposição e por fim apoiaram Lula para afastar o risco da ditadura. Na frente ampla do governo atual, o “partido liberal” está representado por três personagens: o vice-presidente, Geraldo Alckmin; a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, e a do Planejamento, Simone Tebet. Personagens que, aos olhos do “partido”, têm menos visibilidade do que gostariam. Embora formalmente de centro, tendo em vista o espectro ideológico de partidos no ministério, a verdade é que o governo permanece essencialmente nucleado em torno do PT. Fato é que as perspectivas de uma política econômica intervencionista e danosa ao meio ambiente pelo governo têm o potencial de alienar de vez da base o apoio do “partido liberal”.

Talvez não tenha jeito. Liberais democratas tendem a desconfiar do Estado e a ver a política como um múnus público exercido por uma elite ou uma classe média esclarecida. Ocorre que em uma democracia de massas quem conduz a política são profissionais, que se orientam conforme cálculos pragmáticos e curtoprazistas. Seu business é vencer eleições e, no caso de líderes como Lula ou Valdemar, manter a relevância de suas agremiações. E aqui há um problema objetivamente insolúvel. Desenraizado do ponto de vista partidário, o “partido liberal” enquanto “sociedade civil” não tem responsabilidades eleitorais. Se o governo seguir a política econômica “responsável” recomendada por seus economistas e terminar batido nas urnas, os custos da derrota serão arcados exclusivamente pela esquerda. O “partido liberal” apoiará o novo governo de centro direita, ou negociará um apoio crítico a outro, de direita pura. Ficariam como hoje, com a diferença do sinal invertido: apoiando a política econômica “responsável”, mas criticando o conservadorismo dos costumes.

Ainda não há como saber se se trata de um movimento de rompimento ou apenas de uma forma mais dura de pressão sobre o governo. Muito menos se o “partido” marchará unido ou separado, com cada banda indo para um lado. Não seria a primeira vez.

Cientista político, editor da revista Insight Inteligência e professor do IESP-UERJ


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