Agentes da Polícia Militar do estado de São Paulo mataram na Baixada Santista, só no último mês, 39 pessoas, incluindo quem estava dentro de casa, quem gritava pela vida e até um portador de deficiência visual. Desde o início da chamada Operação Escudo, realizada no ano passado, o número de mortes somadas se aproxima de 70 pessoas, segundo os dados oficiais.
O nome disso não é a batizada Operação Verão —a que está em curso agora— nem um acúmulo de "morte decorrente de intervenção policial" como disfarces para maquiar a calculada ação praticada por homens fardados que, encorajados pelo governador paulista, Tarcísio de Freitas (Republicanos), e seu secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, são renitentes em se deixar identificar por câmeras de segurança e inclusive, como se noticia, adulteram as cenas de crime em defesa de seus atos. O nome disso é matança, ou, Nilo Batista que nos perdoe, política criminal com derramamento de sangue.
E é incrível que, na vigência formal do Estado civil desde 1985, o debate sobre a desmilitarização da polícia, pior do que não ter avançado, retrocedeu ao ponto de projetos que tratam de leis orgânicas das polícias Militar e Civil repristinarem, particularmente na primeira, a lógica da caserna e do combate ao inimigo, contrária ao controle das atividades pela sociedade civil. Isso sem falar no acúmulo de operações de "garantia da lei e da ordem" (GLO) e aumento de competências jurisdicionais que grassaram em tempos recentes, a nublar a distinção do funcionamento que deve ser residual e excepcional da própria Justiça Militar no Brasil. A militarização da polícia e da política, em vez de ser controlada, cresceu, e os frutos estão aí.
A vingança institucional disfarçada pelos uniformes de agentes do Estado não é privilégio da polícia paulista. Não é que a sociedade seja violenta a atrair reação proporcional do Estado; mas é a polícia ostensiva que, à frente de política de guerra nas ruas, responsável por índices de letalidade inacreditáveis, atemoriza a população.
Ainda assim, o fato de os eventos recentes se darem em São Paulo deveria abrir os olhos para o efeito deletério ainda pior do que a escandalosa atuação orientada ao extermínio de população jovem, preta e periférica. O estado de São Paulo é, sem contenção da arrogância, o propulsor dos debates políticos e econômicos do país.
A matança paulista se constitui em plano cujos efeitos ainda não se consegue prever. O secretário da Segurança, um deputado federal licenciado, no último dia 20 de fevereiro foi à Câmara dos Deputados para acompanhar o andamento do projeto de lei recém-votado no Senado Federal (PL 2.253/2022) que coloca uma pá de cal no sistema de progressão de penas no Brasil. Esse mesmo projeto dissemina a monitoração eletrônica sem preocupação orçamentária prévia e ressuscita a lógica anticientífica do exame criminológico —algo que, além de anacrônico, é inconstitucional.
Uma coisa tem tudo a ver com a outra. É coerente o deputado federal licenciado, com base eleitoral ligada à Rota, dedicar-se à pauta do superencarceramento e ordenar triunfante que uma "operação" se siga à primeira desde o ano de 2023 na Baixada Santista. Quem não se preocupa com a reintegração se envereda pela política de extermínio.
A Operação Verão é continuação da carnificina da Operação Escudo, com a agravante de que, no mesmo período de atuação, já foi responsável pelo dobro de assassinatos nas incursões policiais nas periferias de São Vicente, Santos, Cubatão, Praia Grande e Guarujá.
Os discursos e as ações de Derrite enaltecem a lógica do aniquilamento que notabiliza parte das forças de segurança pública do Brasil que ainda se rotulam —incensadas inclusive por chamadas jornalísticas— como "tropas de elite". Como se o rótulo cinematográfico fizesse sentido e suplantasse índices de abusos e assassinatos da população preta e pobre.
Denúncias de violações de direitos humanos (inclusive por órgãos internacionais que viram a situação da população e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos ao emitir o comunicado 177/2023) cometidas na dita "operação", que na verdade é uma só e se prolonga no tempo, não incomodam o secretário e seu chefe em sua lógica que oscila entre militarista, populista e assassina. Se não se cuidasse de vidas humanas, alguém poderia supor uma realidade paralela, tão olímpica é a indiferença aos alertas dos mais diferentes e isentos órgãos da sociedade civil.
Com o distanciamento da política pública de uso de câmeras corporais (enquanto o programa "Olho Vivo" foi estimulado, os números de mortes decorrentes de intervenção policial haviam caído cerca de 80%), investigações de fachada (há casos em que nem sequer se determinou perícia nos locais das execuções), pouca transparência no trato e disseminação de informações aos órgãos de controle externo (incluídos Ministério Público e ouvidorias), inexistência de protocolos para o uso de equipamentos especiais de atividade policial nas áreas em questão e falta de proteção a vítimas e testemunhas das matanças, a segurança pública de São Paulo se tornou um caso de terror.
Com o crescente empilhamento de corpos e indicativos de execuções sumárias, sem controle externo das atividades, é de se perguntar se não chegará a hora de intervenção federal diante do deliberado ataque aos direitos da pessoa humana (art. 34, VII, b, Constituição Federal). Ao que parece, no estado de São Paulo, a população da Baixada Santista não tem a quem recorrer.
Nenhum comentário:
Postar um comentário