sábado, 2 de outubro de 2021

Carta a Thiago Amparo,\fsp

 Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor da biografia "Cruz e Sousa: Dante Negro do Brasil" e do romance "O Crime do Rio Vermelho", entre outros livros

Meu caro Thiago, polêmica atrai polêmica. Mas como deixar sem respostas questões que nos causam tanta “ânsia de vômito”? Eu vomitei de verdade, acredite, Thiago. Foi insuportável guardar tudo o que li dentro de mim. Expeli uma bílis amarelada, asquerosa. Penso que havia um pouco de Leandro Narloch nela, um pouco de Antônio Risério também.

Por ser negro e escrever em jornal, sinto-me obrigado a dar também algumas respostas. Você sabe. É corriqueiro da branquitude mostrar que é dona do Sol. O Sol nasceu, primeiro, num continente chamado África, de onde vieram a astrologia, a medicina e a filosofia.

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'Homens Escravizados Cavando Trincheiras', de autoria anônima, c. 1850 - Rijksmuseum/Divulgação


Narloch, no artigo da Folha, parece pedir aos negros, hoje na base da base da pirâmide social, certa piedade pelas mulheres “brancas empobrecidas, envoltas num manto de má qualidade”, ao passo que as negras aparecem no cenário colonial “altamente ornadas de ouro e rendas”. Ora, ora. Quem é racista nessa história: os sinhozinhos Narloch e Risério ou a própria Folha, fundada 33 anos após a Abolição?

Ambos parecem ignorar a existência da escravidão, mesmo que nos portos brasileiros tenham aportado cerca de 5 milhões de negros e negras. É preciso dizer a esses senhores, com base na história, que parcela considerável virou comida de tubarão, em pleno oceano.

Nós sabemos, afinal, quem está coberto pelo “manto de má qualidade”. Senhores, percam um tempinho e olhem índices sociais: na educação, na saúde, na cadeia de comando. Deem-se ao trabalho de espiar as ruas de São Paulo e Rio de Janeiro. Por favor, façam isso, uma única vez na vida.

Caro Thiago, que admiro embora pessoalmente não conheça, essa turma não acompanha redes sociais e imprensa? Lá debatemos da eugenia de Monteiro Lobato à morte do Beto no Carrefour de Porto Alegre.

E o que dizer de “Abecê da Liberdade: a história de Luiz Gama, o menino que quebrou correntes com palavras”, da Companhia das Letras, ilustrado por Edu Oliveira, escrito pela dupla José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta, parceiros em muitos livros?

O que é aquilo, meu irmão? O livro é um acinte à dignidade de negros e negras caros à sua ancestralidade.

A narrativa de Torero e Pimenta é ofensiva à sociedade. É enganadora. Zomba do crime que é a escravidão. Para os três autores, homens brancos, crianças negras brincam em navio negreiro de “pega-pega”, de “esconde-esconde” e, ainda, “pulando... correntes”.

Não há ingenuidade nisso. Há deboche. Há racismo. Há crime. Há o escárnio que minimiza estatísticas que mostram que 56% da população que se declara preta e parda está sem bens de consumo e sem esgoto. Ou seja, sem os “ouros e as rendas”.

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