quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Securitização abutre, Maria Paula Bertran , FSP

A retomada de imóveis nunca havia sido do interesse de ninguém até agora

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O discurso é sedutor: o financiamento das moradias com menos ônus para o setor público, descarregando as pressões sobre os recursos oriundos de FGTS e poupança; a possibilidade de criação de um mercado de crédito imobiliário menos burocratizado, com juros mais baixos e oportunidade de acesso mais ampla; por fim, a consagração de uma economia de mercado, com o fortalecimento de produtos financeiros que trazem os bons olhos dos investidores para o Brasil.

A realidade é mais complicada. Estamos vivendo um boom imobiliário, no contraintuitivo contexto de pandemia e de inédita alta no endividamento das famílias.

Temos um histórico de instabilidades. Com a pandemia, temos também o prognóstico de desemprego e recessão. Ninguém sabe por quanto tempo. Até hoje, a Caixa Econômica Federal exerceu o papel de amortecedor entre as crises econômicas que atingiam a população e os contratos de financiamento, que oferecem o próprio imóvel financiado como garantia.

Nunca foi interesse de ninguém, Caixa (falando pelo governo federal) e mutuários, que as pessoas perdessem suas casas nas inúmeras crises. Daí a existência dos famosos "feirões" de renegociação, que ajudaram milhares a repactuarem suas dívidas. Ressalvadas algumas especificidades, essa era também a lógica das outras instituições financeiras que financiam imóveis. A retomada dos imóveis não era interesse de ninguém —até agora. Será que os fundos que investem nos direitos creditórios dos bancos terão a mesma boa vontade?

Os problemas não acabam por aí. Os grandes bancos passaram a anunciar empréstimo pessoal com o imóvel financiado como garantia. A crise dos EUA de 2008 nasceu assim. As famílias faziam empréstimos para manter o padrão de vida americano. Rolavam suas dívidas de cartão de crédito, financiamento estudantil e gastos com saúde nas hipotecas das casas. O preço dos imóveis subiu artificialmente, aumentando a capacidade de endividamento das famílias. Os contratos de securitização misturavam garantias boas e garantias podres. Enquanto a pirâmide crescia, todos ganharam. Até que um dia... blup! A bolha imobiliária estourou.

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Temos tudo para reproduzir essa crise. Piorada, claro. Nossas instabilidades são mais constantes e mais profundas, nosso povo é mais pobre, nosso sistema financeiro é mais voraz e concentrado. Esse é um futuro sem volta. A financeirização avança a passos largos no Brasil. De onde os agentes regulatórios, a elite financeira e os securitizadores observarão esse fenômeno? Da varanda gourmet ou da piscina de borda infinita dos imóveis retomados?

Maria Paula Bertran é professora associada da Faculdade de Direito da USP em Ribeirão Preto e ex-professora da Stanford Law School 

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