quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Quem dá mais, leva, por Bruno Carazza, Nexo Jornal

 Em 2018, Thais Ferreira concorreu pela primeira vez numa eleição. Mulher, jovem, preta, moradora de uma comunidade do Rio de Janeiro, ela tentou uma vaga na Assembleia Legislativa fluminense. Naquela ocasião, a campanha de Ferreira arrecadou R$ 73.661,75. Desse total, apenas R$ 2.154 (menos de 3%) vieram do seu partido, o PSOL. O restante foi obtido junto a pessoas físicas, inclusive recorrendo a “vaquinhas virtuais”. Mesmo realizando uma campanha relativamente barata, Ferreira obteve 24.759 votos e quase foi eleita, tendo ficado como primeira suplente de sua coligação. Animada com o resultado das eleições anteriores, Ferreira se lançou candidata novamente em 2020, desta vez para o cargo de vereadora na capital fluminense. De acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral, a 12 dias das eleições, a candidata do PSOL não recebeu nenhum centavo de seu partido (https://divulgacandcontas.tse.jus.br/divulga/#/candidato/2020/2030402020/60011/190000684962) , mesmo sendo mulher e negra — os dois grupos sociais que, por determinação do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), deveriam ser especialmente contemplados com recursos públicos distribuídos a cada legenda. Thais Ferreira é só mais um exemplo, entre milhares, das distorções do sistema de financiamento eleitoral no Brasil — um sistema que reproduz desigualdades e erige barreiras à renovação da política desde a redemocratização, a despeito das bem intencionadas tentativas recentes de mudança. Eleições custam caro — especialmente no Brasil. Temos dezenas de partidos e cada um deles lança dezenas ou centenas de candidatos a vereador, a depender do tamanho do município. Nas eleições para deputados estaduais e federais, as dificuldades são ainda maiores, pois a disputa ocorre em todo o estado, ampliando o tamanho do território (e da população) onde é necessário fazer chegar suas propostas. Destacar-se no meio da multidão tem um preço, e ele é bastante alto para quem não é uma celebridade ou não conta com um eleitorado cativo, como líderes religiosos, sindicais ou militares. Para fazer frente aos elevados gastos de campanha, o Brasil adota um modelo misto de financiamento eleitoral. Partidos e candidatos podem angariar recursos junto ao setor privado e também dispõem de um certo volume de dinheiro público. A história do financiamento eleitoral desde a redemocratização pode ser dividida em três fases distintas. Até 1994, valiam as regras herdadas do tempo da ditadura: as legendas tinham direito a um fundo partidário e seus membros podiam coletar doações apenas de pessoas físicas. Durante os escândalos de PC Farias (1992) e dos Anões do Orçamento (1993), surgiram fortes evidências de que  grandes empresas alimentavam as campanhas de seus candidatos preferidos por meio do caixa dois, e então o Congresso Nacional resolveu autorizar as contribuições feitas por pessoas jurídicas para deixar que esse processo pelo menos se desse de forma transparente e passível de fiscalização pelos órgãos de controle: a imprensa e a sociedade em geral. NESTA SÉRIE Assim, entre 1994 e 2014, verificou-se um crescimento exponencial de dinheiro vindo principalmente das maiores empresas brasileiras. Nessa dinâmica, grandes empreiteiras, instituições financeiras, siderúrgicas, mineradoras e empresas de alimentos e bebidas foram responsáveis pela eleição de verdadeiras bancadas empresariais de parlamentares e chefes do Poder Executivo. A atração de grandes corporações pela política cresceu a tal ponto que o financiamento empresarial passou a ultrapassar os limites legais, e parte substancial dos recursos passou a ser transferido de modo ilícito. DESTACAR-SE NO MEIO DA MULTIDÃO TEM UM PREÇO, E ELE É BASTANTE ALTO PARA QUEM NÃO É UMA CELEBRIDADE OU NÃO CONTA COM UM ELEITORADO CATIVO, COMO LÍDERES RELIGIOSOS, SINDICAIS OU MILITARES  Com as entranhas do sistema político brasileiro sendo expostas pela operação Lava Jato, o Supremo Tribunal Federal resolveu intervir no processo e, em 2015, declarou inconstitucionais as doações feitas por empresas. O Brasil então entrou na sua fase atual, em que regredimos aos primeiros anos da nova República, quando as campanhas só poderiam ser bancadas por dinheiro de pessoas físicas e recursos públicos. Mas há uma diferença substancial entre o cenário atual e os tempos pré-PC Farias: o volume de recursos públicos colocados à disposição dos partidos. Em 2018, as campanhas eleitorais para todos os cargos em disputa custaram pouco mais de R$ 3 bilhões, dos quais em torno de 70% vieram dos fundos partidário e eleitoral. Dos 30% restantes, praticamente a metade veio de pessoas físicas e a parcela restante partiu do bolso dos próprios candidatos. E o que esses números revelam é que, mesmo com a proibição de doações de empresas, os poderes político e econômico ainda são determinantes para decidir quem tem mais chances de ser eleito no Brasil. Tome-se o caso das doações de pessoas físicas. As regras atuais de financiamento ainda atrelam o limite do valor da contribuição à renda do doador. Assim, a legislação permite que grandes empresários e executivos continuem aportando valores milionários em alguns poucos candidatos, desequilibrando o jogo em favor daqueles que não têm boas conexões com o mundo corporativo. Já no lado dos fundos eleitoral e partidário, que vão movimentar em torno de R$ 3 bilhões nas eleições municipais de 2020, a chave do cofre fica nas mãos dos dirigentes dos partidos. Mesmo com o TSE determinando que esse dinheiro seja distribuído levando em consideração um mínimo de 30% para mulheres e a proporção racial, cabe aos caciques partidários decidir quem será contemplado. Nas eleições de 2018, por exemplo, observou-se que boa parte da parcela destinada às candidaturas femininas foi aplicada em esposas, filhas e netas de políticos tradicionais, tornando pouco efetiva a tentativa do TSE de nivelar as condições de disputa para as mulheres. Diante das atuais regras de financiamento de campanhas no Brasil, quatro grupos de candidatos levam imensa vantagem sobre os demais: 1) celebridades e donos de eleitorados cativos, pois podem fazer campanha com pouco dinheiro; 2) os muito ricos, que custeiam do próprio bolso a maior parte dos seus gastos; 3) os bem conectados com a elite empresarial, que captam doações volumosas de grandes empresários e 4) aqueles com fortes vínculos de parentesco ou amizade com os líderes dos partidos, que são privilegiados na repartição dos fundos eleitoral e partidário. Ora, se quem não é famoso, rico ou tem laços fortes com nossas elites econômica e partidária não tem as mesmas condições de disputa, que renovação podemos esperar em nossa política?

 Bruno Carazza é professor do Ibmec e da Fundação Dom Cabral e autor do livro “Dinheiro, eleições e poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”. Pesquisador, é doutor em direito econômico pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), mestre em teoria econômica pela UnB (Universidade de Brasília) e bacharel em ciências econômicas e em direito pela UFMG

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