Apesar dos esforços do relator da reforma da Previdência, deputado Samuel Moreira (PSDB-SP), para retirar medidas que nada tinham a ver com o tema da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da reforma previdenciária aprovada em primeiro turno pela Câmara dos Deputados, alguns dispositivos acabaram sendo aprovados e estão despertando polêmicas que podem tumultuar a votação em segundo turno.
Um desses dispositivos extingue a competência delegada das Justiças estaduais para julgar ações contra o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) - que é uma autarquia da União - nas comarcas onde não há varas da Justiça Federal. Essa competência foi instituída na década de 1960 com o objetivo de não prejudicar os cidadãos, já que a Justiça Federal era, na época, praticamente restrita às capitais. A questão é de caráter processual e foi amplamente discutida há três anos, com a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil. Além disso, ela envolve o direito de acesso aos tribunais, que é cláusula pétrea da Constituição.
Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, a Justiça Federal tem 988 varas e juizados em 279 localidades, o que corresponde a 5% dos municípios brasileiros. Já as Justiças estaduais têm 10.989 varas e juizados especiais em 48,4% dos municípios. Em São Paulo, existem 324 fóruns estaduais e apenas 44 federais.
Os números não deixam margem a dúvidas. A extinção da competência delegada das Justiças estaduais nas ações previdenciárias prejudicará os segurados das cidades pequenas e mais pobres. Quando quiserem abrir um processo de concessão ou revisão de benefícios previdenciários, os segurados dessas cidades serão obrigados a arcar com o custo do deslocamento para comparecer às audiências e às perícias médicas, pois só em varas e juizados federais serão atendidos. O dispositivo “cria uma enorme dificuldade de acesso aos tribunais. Ficará mais caro para o segurado entrar na Justiça, mais difícil para ir às audiências e mais complicado para fazer a produção de provas”, afirma o chefe da Procuradoria-Geral de Justiça de São Paulo, Gianpaolo Smanio.
A proposta de extinção da competência delegada das Justiças estaduais constava do texto-base da PEC enviado pelo governo à Câmara. Como ela nada tem a ver com a questão previdenciária e sua inconstitucionalidade seria arguida pelas Defensorias Públicas e pela Procuradoria-Geral da República, ela foi retirada do texto na votação na Comissão de Constituição e Justiça. Contudo, voltou ao texto no plenário, para compensar a economia que se teria com a mudança negociada pelo governo na regra de cálculo do benefício das mulheres.
O chefe da Casa Civil, Onix Lorenzoni, chegou a estimar que a extinção da competência delegada das Justiças estaduais propiciaria uma economia de R$ 26 bilhões. Assessores do Ministério da Economia reconheceram que a medida foi um artifício para tentar neutralizar o risco de judicialização das novas regras previdenciárias. Também afirmaram que, se a Justiça Federal ampliar sua informatização, as audiências poderão ser feitas por videoconferência. Disseram, ainda, que as perícias médicas podem ser feitas com a nomeação de peritos nas cidades onde moram os segurados.
Esses argumentos, porém, não são convincentes. No Estado de Direito é inaceitável o esvaziamento da efetividade dos direitos dos cidadãos, pondo as necessidades econômicas do governo acima das garantias fundamentais. Como esse entendimento já foi firmado diversas vezes pelo Supremo Tribunal Federal, ao Legislativo não resta outra saída. A Câmara tem de votar em segundo turno o texto já aprovado no primeiro turno. E, para não atrasar a reforma da Previdência, o Senado terá de fazer o mesmo. Mas, assim que a reforma for aprovada em caráter definitivo, o problema da extinção da competência delegada das Justiças estaduais terá de ser imediatamente colocado na lista dos remendos que terão de ser feitos em regime de urgência, para evitar injustiças e garantir a segurança do direito.
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