quarta-feira, 24 de julho de 2019

Frente a desigualdade crescente, Estados devem ter papel mais ativo, diz cientista político, FSP

Para David Soskice, líderes populistas aproveitam ansiedade da classe média para avançar sem resolver questões de fundo

Fernando Canzian
LONDRES
Para o cientista político David Soskice, 77, diretor do International Inequality Institute na London School of Economics, a desigualdade de renda no mundo cresce por uma combinação de mudanças tecnológicas e nas estruturas produtivas com a ascensão de uma elite intelectual mais bem educada nas grandes cidades.
Em sua opinião, esses movimentos deveriam levar os Estados a terem um papel mais atuante na economia, de coordenação, para que a desigualdade não se aprofunde ainda mais.
Soskice é diretor do International Inequality Institute na London School of Economics. É formado em Oxforde lecionou em Harvard, Yale, Stanford e Berkeley. Foi conselheiro do Partido Trabalhista britânico e da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
Suas ideas são apresentadas no livro "Democracy and Prosperity: Reinventing Capitalism Through a Turbulent Century" (Democracia e prosperidade: reinventando o capitalismo através de um século turbulento), lançado neste ano em inglês e ainda sem edição no Brasil. 
 
retrato de David Soskice
David Soskice é diretor do International Inequality Institute na London School of Economics - London School of Economics
A desigualdade cresce no mundo, com os ricos concentrando renda e riqueza enquanto a classe média encolhe. Quais as principais causas e possíveis soluções? 
Vou dizer algo que me fará parecer mais radical do que realmente sou. 
Consenso de Washington [cardápio de medidas liberais adotadas a partir de 1989 em vários países ocidentais] nos levou a uma visão muito diferente do mercado a partir da década de 1990. Isso, combinado à enorme revolução tecnológica pela qual passamos nos últimos 25 anos, conduziu o mundo a um estágio diferente de desenvolvimento e de distribuição da renda.
Creio que estamos hoje em um mundo onde é realmente difícil fazer as coisas bem, economicamente, a menos que o Estado desempenhe um papel mais ativo de coordenação do que tem exercido. Nesse novo mundo tecnológico, globalizado, é muito difícil gerir as coisas só pelos mercados.
Eles são imprescindíveis e a base do funcionamento da economia. Mas o Estado tem que ter, ou deveria ter, um papel maior. Podemos falar da China, do leste da Ásia, de Singapura e da Europa do norte nesse sentido.
Mas aqui no Reino Unido, nos EUA e em boa parte dos países em desenvolvimento agora confia-se puramente nos mercados. Esse é o pano de fundo de muitas coisas.
Mas vejo a mudança fundamental que levou ao grande aumento na desigualdade no que os historiadores chamam de novos regimes tecnológicos.
Tivemos no passado o fordismo, baseado em uma larga parcela da classe média empregada na indústria e nas fábricas. Esse sistema desapareceu em grande parte dos países e foi substituído por esse mundo da tecnologia da informação em que vivemos hoje. É uma grande mudança de rumo, das indústrias para o setor de serviços.
Isso requer outro tipo de conhecimento, de aperfeiçoamento analítico. Quem vai à universidade hoje recebe salários melhores do que os que não a frequentam. Isso gera uma sociedade extremamente segregada, entre formados e não formados. Muitos dos não graduados são membros dessa classe média espremida. Seus empregos se tornaram pouco valorizados ou inexistentes.
Como o sr. vê as respostas que movimentos como Donald Trump, brexit e a escalada da extrema direita oferecem para a desigualdade?
[ x ]
Está claro que tanto Trump como o brexit serão mal-sucedidos em fornecer uma resposta econômica a essas pessoas. 
Mas as pessoas estão ansiosas em relação ao futuro, e o que sabemos pelos parâmetros da psicologia é que elas, quando ansiosas, olham para o mundo exterior em busca de culpados. Ao propor o fechamento das fronteiras, isso acalma a ansiedade das pessoas. Mas não é uma resposta para o problema que as aflige.
Há também um outro fenômeno a alimentar o populismo relacionado à questão de gênero. Há cada vez mais mulheres bem-sucedidas e nas universidades, o que torna os homens mais inseguros. 
Especialmente os menos instruídos, que formam a base de lideranças populistas.
Há ainda diferenças internas nos países, pois a desigualdade também vem tomando contornos geográficos. Vivemos em um mundo em que muitos grupos em grandes aglomerados urbanos como Londres, Nova York ou Paris obtêm resultados muito bons. 
São cidades onde moram os graduados. Eles são bem pagos e conseguem pagar por casas com preços elevados. Mas as pessoas da classe média tradicional que viviam ali estão sendo expulsas para áreas periféricas por conta dessa tendência.
A reação rumo ao populismo tem sido associada principalmente à classe média. Mas há também os mais pobres. Como o sr. avalia isso?
As classes médias menos instruídas estão convergindo na direção dos pobres. Não porque os pobres e a classe média estão se unindo. Longe disso. As classes médias que perdem terreno veem os pobres —os pobres “não merecedores”— como um problema para elas.
Quanto mais se fala em redistribuição de renda para menos favorecidos, mais raivosa fica a classe média, porque teme que seus impostos subam para bancar os mais pobres, o que a leva a ser profundamente hostil em relação a eles.
É preciso ter em mente também que, quando falamos de desigualdade, não é só a classe média preocupada com os ricos ficando mais ricos. Ela está profundamente preocupada com o fato de estar ficando mais pobre, e em não cair no poço da pobreza. E que seus filhos não caiam nele também.

ACOMPANHE A SÉRIE DESIGUALDADE GLOBAL

Folha publica uma série de reportagens e documentários em vídeo sobre as disparidades de renda no mundo e seus efeitos sobre os eleitores e o crescimento dos países. Veja mais aqui

Nenhum comentário: