sexta-feira, 12 de outubro de 2018
Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (excerto )Como as democracias morrem
A democracia norte-americana está em perigo? Essa é uma pergunta
que nós nunca pensamos que faríamos. Somos colegas há quinze anos,
refletindo, escrevendo, ensinando aos alunos sobre fracassos da democracia
em outros lugares e tempos – os sombrios anos 930 na Europa,
os repressivos anos 970 na América Latina. Passamos anos pesquisando
novas formas de autoritarismo que surgiam em todo o mundo. Para nós,
tem sido uma obsessão estudar como e por que morrem as democracias.
Agora, contudo, voltamos a atenção para o nosso próprio país. Ao
longo dos últimos dois anos, vimos políticos dizendo e fazendo coisas
sem precedentes nos Estados Unidos – mas que reconhecemos como precursoras
de crises democráticas em outros países. Sentimos medo, como
muitos de nossos compatriotas, mesmo quando tentamos nos tranquilizar,
repetindo a nós mesmos que as coisas aqui não podem estar tão ruins
assim. Afinal de contas, embora saibamos que as democracias são sempre
frágeis, a democracia em que vivemos de certo modo conseguiu desafiar
a gravidade. Nossa Constituição, nosso credo nacional de liberdade e
igualdade, nossa classe média historicamente robusta, nossos altos níveis
de saúde e educação, nosso setor privado diversificado – tudo isso deveria
nos imunizar contra o tipo de colapso democrático que aconteceu em
outras partes do mundo.
No entanto, estamos preocupados. Os políticos norte-americanos agora
tratam seus rivais como inimigos, intimidam a imprensa livre e ameaçam
rejeitar o resultado de eleições. Eles tentam enfraquecer as salvaguardas
institucionais de nossa democracia, incluindo tribunais, serviços de inteligência,
escritórios e comissões de ética. Os estados norte-americanos,
6 Como as democracias morrem
outrora louvados pelo grande jurista Louis Brandeis como “laboratórios
de democracia”, correm o risco de se tornar laboratórios de autoritarismo,
à medida que os que estão no poder reescrevem regras eleitorais, redesenham
distritos eleitorais e até mesmo rescindem direitos eleitorais para
garantir que não perderão. E em 206, pela primeira vez na história dos
Estados Unidos, um homem sem nenhuma experiência em cargos públicos,
com aparente pouco compromisso no que diz respeito a direitos constitucionais
e dono de claras tendências autoritárias foi eleito presidente.
O que significa tudo isso? Estamos vivendo o declínio e queda de uma
das mais velhas e mais bem-sucedidas democracias do mundo?
Ao meio-dia de de setembro de 973, depois de meses de tensão crescente
nas ruas de Santiago, no Chile, jatos Hawker Hunter de fabricação
britânica mergulharam em rasantes, lançando bombas sobre La Moneda, o
palácio presidencial neoclássico no centro da cidade. Enquanto as bombas
continuavam a cair, o edifício ardeu em chamas. O presidente Allende,
eleito três anos antes como líder de uma coalizão de esquerda, estava
entrincheirado no palácio. Ao longo do seu mandato, o Chile estivera
tomado pela inquietação social, a crise econômica e a paralisia política.
Allende dissera que não abandonaria o posto até ter cumprido seu dever
– mas agora chegara o momento da verdade. Sob o comando do general
Augusto Pinochet, as forças armadas chilenas estavam tomando o controle
do país. De manhã cedo naquele dia fatídico, Allende propôs palavras de
desafio num pronunciamento em cadeia nacional de rádio, esperando que
seus muitos apoiadores fossem às ruas em defesa da democracia. Mas a
resistência nunca se materializou. A polícia militar que guardava o palácio
o abandonara; seu pronunciamento foi recebido com silêncio. Em poucas
horas, Allende estava morto. E, desse modo, também a democracia chilena.
É assim que tendemos a pensar na morte de democracias: nas mãos
de homens armados. Durante a Guerra Fria, golpes de Estado foram
responsáveis por quase três em cada quatro colapsos democráticos. As
democracias em países como Argentina, Brasil, Gana, Grécia, Guatemala,
Introdução 7
Nigéria, Paquistão, Peru, República Dominicana, Tailândia, Turquia e
Uruguai morreram dessa maneira. Mais recentemente, golpes militares
derrubaram o presidente egípcio Mohamed Morsi em 203 e a primeiraministra
tailandesa Yingluck Shinawatra em 204. Em todos esses casos,
a democracia se desfez de maneira espetacular, através do poder e da
coerção militares.
Porém, há outra maneira de arruinar uma democracia. É menos dramática,
mas igualmente destrutiva. Democracias podem morrer não nas
mãos de generais, mas de líderes eleitos – presidentes ou primeiros-ministros
que subvertem o próprio processo que os levou ao poder. Alguns
desses líderes desmantelam a democracia rapidamente, como fez Hitler
na sequência do incêndio do Reichstag em 933 na Alemanha. Com mais
frequência, porém, as democracias decaem aos poucos, em etapas que mal
chegam a ser visíveis.1
Na Venezuela, por exemplo, Hugo Chávez era um outsider político
que atacava o que ele caracterizava como uma elite governante corrupta,
prometendo construir uma democracia mais “autêntica”, que usasse a
imensa riqueza em petróleo do país para melhorar a vida dos pobres. Com
habilidade, e tirando proveito da ira dos venezuelanos comuns, muitos dos
quais se sentiam ignorados ou maltratados pelos partidos políticos estabelecidos,
Chávez foi eleito em 998. Como disse uma mulher em Barinas, o
estado natal de Chávez, na noite da eleição: “A democracia está infectada.
E Chávez é o único antibiótico que temos.”2
Quando Chávez lançou a sua prometida revolução, ele o fez democraticamente.
Em 999, realizou eleições para uma nova Assembleia Constituinte,
na qual seus aliados conquistaram uma maioria esmagadora. Isso
permitiu que os chavistas escrevessem sozinhos uma nova Constituição.
Foi uma Constituição democrática, contudo, e, para fortalecer sua legitimidade,
novas eleições presidenciais e legislativas foram realizadas no
ano 2000. Chávez e seus aliados também as ganharam. O populismo de
Chávez desencadeou uma intensa oposição, e, em abril de 2003, ele foi
brevemente derrubado pelos militares. Mas o golpe falhou, permitindo
que reivindicasse para si uma legitimidade ainda maior.
8 Como as democracias morrem
Foi somente em 2003 que Chávez deu seus primeiros passos claros rumo
ao autoritarismo. Com o apoio público enfraquecendo, ele postergou um
referendo liderado pela oposição que o teria destituído – adiando-o para o
ano seguinte, quando os preços do petróleo, em forte alta, impulsionaram
sua posição o bastante para que ele ganhasse. Em 2004, o governo fez uma
lista negra dos que tinham assinado a petição para o referendo e aparelhou
a Suprema Corte, alterando sua composição, mas a reeleição esmagadora
de Chávez em 2006 permitiu que ele mantivesse um verniz democrático. O
regime chavista se tornou mais repressivo depois de 2006, fechando uma
importante emissora de televisão, prendendo ou exilando políticos, juízes e
figuras da mídia oposicionistas com acusações dúbias e eliminando limites
aos mandatos presidenciais para que Chávez pudesse permanecer indefinidamente
no poder. Quando Chávez, então morrendo de câncer, foi reeleito
em 202, a disputa foi livre, mas não justa: o chavismo controlava grande
parte da mídia e desdobrou a vasta máquina do governo em seu favor. Após
a morte de Chávez um ano depois, seu sucessor, Nicolás Maduro, ganhou
outra reeleição questionável, e, em 204, seu governo prendeu um dos principais
líderes da oposição. Ainda assim, a vitória acachapante da oposição
nas eleições legislativas de 205 pareceu desmentir a afirmação dos críticos
de que a Venezuela não era mais democrática. Só quando uma Assembleia
Constituinte unipartidária usurpou o poder do Congresso em 207, quase
duas décadas depois de Chávez ter sido eleito presidente pela primeira vez,
a Venezuela foi amplamente reconhecida como uma autocracia.
É assim que as democracias morrem agora. A ditadura ostensiva – sob
a forma de fascismo, comunismo ou domínio militar – desapareceu em
grande parte do mundo.3 Golpes militares e outras tomadas violentas do
poder são raros. A maioria dos países realiza eleições regulares. Democracias
ainda morrem, mas por meios diferentes. Desde o final da Guerra Fria,
a maior parte dos colapsos democráticos não foi causada por generais e soldados,
mas pelos próprios governos eleitos.4 Como Chávez na Venezuela,
líderes eleitos subverteram as instituições democráticas em países como
Geórgia, Hungria, Nicarágua, Peru, Filipinas, Polônia, Rússia, Sri Lanka,
Turquia e Ucrânia. O retrocesso democrático hoje começa nas urnas.
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