05 Março 2016 | 16h 00 - Atualizado: 05 Março 2016 | 16h
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Para
as autoridades federais, jornalistas não investigam, não pesquisam, não
entrevistam, não raciocinam. Ora, o que é uma notícia senão um segredo
revelado?, questiona professor da USP
No detalhe do detalhe, o espírito da coisa toda. Você pode achar
que a compreensão que as autoridades têm – ou não têm – da palavra “vazamento”
é um mero e insignificante detalhe no meio dessa confusão convulsionada em que
se converteu o País. Você pode achar que, enquanto as paredes da República
despencam sobre cabeças ocas, ninguém vai querer se ocupar dos significados
desse termo, “vazamento”. Qual a relevância disso? De fato, há temas bem mais
urgentes, mais vitais, a merecer a atenção da cidadania. No entanto, os
detalhes...
Este detalhe, por exemplo: o sentido da palavra “vazamento”. Se
olharmos bem para esse mínimo detalhe, veremos que aí repousa, intacto, o
espírito da coisa toda. O que é que o governo federal pensa sobre a imprensa? A
resposta não está nos grandes movimentos, nas solenidades pomposas, nas
performances midiáticas, desde as mais espetaculosas até as mais desastradas.
Quem quer entender o que vai na cabeça dos estrategistas do Planalto sobre
imprensa não deve se iludir com o jogo de cena das gravatas e dos tailleurs –
deve seguir a trilha da palavra “vazamento”.
Vamos atrás dessa trilha. Depois que a revista semanal Isto É foi às bancas na quinta-feira com os termos da
delação premiada do senador petista Delcídio Amaral, ex-líder do governo no
Senado, autoridades federais das mais altas patentes iniciaram sua pregação
contra o “vazamento”. Na visão delas, o que sai na imprensa sobre a corrupção
praticada por réus mais ou menos ligados ao governo não decorrem do trabalho de
reportagem, de esforço de apuração, do talento e da determinação de
profissionais maduros. Tudo resulta daquilo que servidores da Polícia Federal,
do Ministério Público ou do Judiciário “vazam” com as piores intenções deste
mundo.
Na visão dos adeptos desse discurso fanatizante do governo
federal, repórteres apenas recebem passivamente o “vazamento” e depois vão
cuidar de estampá-lo nos jornais, com espalhafato e sensacionalismo, sem pensar
nas consequências. Para as autoridades federais, jornalistas não investigam,
não pesquisam, não entrevistam, não raciocinam, não escolhem, não hierarquizam
as informações que publicam. Na narrativa oficial do Palácio do Planalto, que
agora elegeu a entidade do “vazamento” como a grande culpada pela crise
brasileira, a imprensa não passa de uma central de “office boys” a serviço da
intriga, um bando de moleques de recados, um correio deselegante sem
discernimento crítico e sem responsabilidade social. É assim que, quando falam
em “vazamento”, essas autoridades ofendem o jornalismo.
Um bom exemplo dessa mentalidade pode ser encontrado na nota
oficial da Presidente da República divulgada na quinta-feira. Vamos ao texto:
“Os vazamentos apócrifos, seletivos e ilegais devem ser
repudiados e ter sua origem rigorosamente apurada, já que ferem a lei, a
justiça e a verdade. Se há delação premiada homologada e devidamente
autorizada, é justo e legítimo que seu teor seja do conhecimento da sociedade.
No entanto, repito, é necessária a autorização do poder Judiciário. Repudiamos,
em nome do Estado Democrático de Direito, o uso abusivo de vazamentos como arma
política. Esses expedientes não contribuem para a estabilidade do País.”
Francamente, as recentes declarações presidenciais sobre “mulher
sapiens” e “pernilonga” eram mais inteligentes. Há mais fundamento científico
no conceito de “pernilonga” do que há conhecimento sobre a história da imprensa
na democracia nas considerações que ela assinou sobre os “vazamentos”.
Não há dúvida de que um agente policial que entrega a um
repórter um documento sigiloso da instituição em que trabalha incorre numa
prática irregular ou mesmo criminosa (quando essa conduta corresponde a um tipo
penal devidamente descrito na lei). Um segredo policial deve ser guardado pelos
funcionários públicos que trabalham com ele. Do mesmo modo, um segredo de
Justiça deve ser mantido em sigilo por aqueles que, no poder Judiciário, dele
se ocupam. Segredos de Estado, sob guarda do Executivo, são resguardados por
mecanismos institucionais análogos. Quando um servidor do Estado, em qualquer
esfera estatal, comete o deslize de contrabandear uma informação sigilosa a ele
confiada, seu ato deve ser investigado, julgado e, se condenado, punido. Até
aí, estamos todos de acordo.
O problema começa quando estendemos o mesmo raciocínio para
enquadrar os repórteres. Não dá certo. Essa lógica, que vale para o servidor
público encarregado de tomar conta de segredos legalmente definidos como
segredos, não vale para a imprensa. Ao contrário: se é papel do agente público
zelar pela proteção de um ou outro sigilo, o papel da imprensa é o oposto. Ela
deve – no sentido de ter o dever de – ficar de olho no poder e trabalhar para
descobrir os segredos do poder. Ao descobri-los, deve avaliar a necessidade e a
pertinência de torná-los públicos. Eis aí o núcleo do trabalho mais essencial
da instituição da imprensa livre. O que é uma notícia senão um segredo
revelado?
Até podemos chamar de “vazamento” a informação sigilosa que
desliza, por algum motivo, para fora do âmbito de controle do poder, mas não
podemos chamar de “vazamento” uma reportagem, mesmo que, para a realização
dessa reportagem, possa ter sido usado o conteúdo informativo de um “vazamento”.
O nome de reportagem é reportagem. Chamá-la de vazamento é injuriá-la.
Reportagem é fruto do trabalho de repórteres. “Vazamento” é um conceito
hidráulico que designa também o movimento da informação que escapa
clandestinamente de uma esfera encarregada de mantê-la para um domínio ao qual
ela não estava originalmente destinada. Chamar de “vazamento” uma reportagem
para a qual contribuíram diversas equipes de profissionais é desqualificar e
desrespeitar essas equipes. Quem insiste em chamar o trabalho da imprensa de
colagem de vazamentos está interessado em confundir a opinião pública.
Não é só isso, infelizmente. Olhemos a questão com um pouco mais
de detalhismo. O que é que a presidente quer dizer com “uso abusivo de
vazamentos como arma política”? Ela por acaso acredita que alguma grande
reportagem, grande no melhor sentido da palavra, uma reportagem que tenha
ferido o nervo do poder, não contou com informações cedidas por pessoas ou
grupos que tinham o objetivo de derrotar os interesses de outras pessoas e
outros grupos, usando a informação como “arma política”? Escolha uma grande
cobertura, qualquer uma, e você verá que a resposta é não. É sempre não.
Podemos pensar na sequência de boas reportagens (de vários
órgãos de imprensa) que, em 1992, culminou com o afastamento do então
presidente da República Fernando Collor de Mello. Em 1992, Pedro Collor, irmão
do então chefe de Estado, deu sua famosa entrevista à revista Veja em que acusava o presidente de usar o
tesoureiro de sua campanha como testa de ferro, além de outros abusos. Como
Pedro Collor não provava nada, absolutamente nada do que dizia (e muitos dos
que hoje querem expulsar Delcídio do PT aplaudiam de pé a revista que o
entrevistou), é o caso de perguntar: ele não estava em guerra aberta contra o
irmão? Não estava usando suas declarações como “arma política”?
Mudemos agora de país sem mudar de assunto. Será que o “Garganta
Profunda”, a fonte que abasteceu Bob Woodward, do Washington Post, com
pistas mais que privilegiadas sobre o escândalo de Watergate, no início dos
anos 70, não estava usando e abusando de “vazamentos como arma política”?
Estava, sim senhor. Nixon teve de renunciar em 1974, sem que fosse revelada a
identidade daquela fonte fundamental. Somente três décadas depois é que se soube:
“Garganta Profunda” era William Mark Felt, nada menos que o número 2 do FBI no
governo Nixon. Ele só falou o que falou porque se ressentiu de não ter sido
promovido a número 1.
Existe alguma fonte decisiva, em alguma cobertura decisiva, que
fira o poder de verdade, que não esteja em guerra contra alguém? Existe alguma
fonte só com boas intenções? Claro que não. No entanto, Dilma Rousseff e seus
porta-vozes querem levar o Brasil inteiro a acreditar que sim.
Segundo a narrativa palaciana, os jornalistas só fazem aquilo
que o poder Judiciário autoriza e só escutam fontes que não usam suas
informações como “arma política”. Na vida real das democracias, o ideal do
jornalismo é o contrário. Jornalistas entrevistam gente descontente, gente que
se sentiu ultrajada, gente com sede de vingança. O papel do jornalista é ouvir,
com atenção absoluta, e então separar o que é rancor e ódio do que é de genuíno
interesse público. Esse julgamento – que não é simples de fazer, e que o
Judiciário é incompetente para fazer, em todos os sentidos – é o julgamento que
só a imprensa pode fazer.
A sociedade livre precisa da imprensa porque só ela, só a
imprensa, vai bulir com o que o poder prefere esconder e, depois, vai contar
tudo (o que seja de interesse público) para todo mundo. Sem a profissão de
jornalista, o totalitarismo triunfaria, seja sob Nixon, sob Collor ou sob
Dilma. A sociedade precisa da imprensa porque só a imprensa tem compromisso não
com os segredos do poder, mas com o direito à informação do cidadão. No dia em que
abaixar a cabeça para os critérios editoriais de magistrados ou para as teorias
jornalísticas desse pessoal que anda em Brasília, a imprensa terá morrido.
Você pode dizer que jornalistas erram, e terá razão. Todo tipo
de agressão, desgraçadamente, é perpetrada em nome do direito de informar. Há
páginas de vergonha na imprensa brasileira, e não são poucas. Mas não caiamos
na ilusão de que o caminho para o bom jornalismo está na obediência à
autoridade. Por melhor que esta seja. É graças ao jornalismo livre, por pior
ele tenha sido, que os cidadãos têm conseguido saber sobre os crimes dos
poderosos. É graças aos vazamentos e, ainda mais, graças a alguns jornalistas
excepcionalmente bons, que não se curvam.
EUGÊNIO BUCCI É JORNALISTA, PROFESSOR DA
USP E ARTICULISTA DA PÁGINA 2 DO ESTADO
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