domingo, 17 de abril de 2016

O homem que não sabia morrer


GILBERTO AMENDOLA - O ESTADO DE S.PAULO
19 Dezembro 2015 | 16h 00 - Atualizado: 19 Dezembro 2015 | 16h 00

Execução na floresta, casamento arranjado, passeata de mulheres nuas, fuga para o Brasil e outras histórias do professor Omana Ngandu


O professor Omana vai morrer. Ele será executado em uma floresta, quase na fronteira da República Democrática do Congo com Uganda. Com ele, outros 20 homens também vão morrer. A maioria já não se aguenta em pé, apanhou demais e apenas aguarda o desfecho inevitável daquela última viagem.
O professor Omana, que vai morrer, pensa na filha de cinco dias, na filha que acabou de nascer. Talvez ela seja poupada. Talvez. Pelo menos ela. O resto da família, não. Eles já devem ter sido encontrados. Encontrados e mortos.
O professor Omana, que já sente a alma escorregando para fora do corpo, ouve dois soldados discutirem. A briga tem a ver com dinheiro e com a possibilidade de deixá-los vivos em troca de alguma quantia. O soldado mais velho se sente insultado pelo parceiro mais jovem. “Como assim? Deixá-los viver?” Os dois sobem o tom. O soldado mais velho acerta um tiro na testa do companheiro de farda. Silêncio. Omana, instintivamente, dá um passo para trás.
Sem dizer mais nada, o soldado se vira para o grupo de homens perfilados. Berra qualquer coisa indecifrável. Sádico, ensaia um sorriso e pronto. Dispara. Disparos aleatórios. Os alvejados vão caindo em uma cova que já havia sido aberta antes mesmo de o grupo chegar, vão caindo uns sobre os outros, formando uma montanha irregular. Omana foi um dos primeiros a tombar. Um tiro ou dois na barriga. Agora, está soterrado, afogado pelos outros corpos.
Já é madrugada na floresta e o professor deve estar morto.
Cerveja. Estamos nos anos 70, na província de Kisangani, no leste da região hoje conhecida como República Democrática do Congo (na época, chamava-se Zaire). Omana acaba de perder o pai em um acidente de carro. Sua mãe, Omoy Edjo, se vê abandonada pela família do marido – tendo que se virar sozinha em uma sociedade machista.
Omoy encontra na produção de uma cerveja caseira a forma de pagar os estudos dos dois filhos. Sim, o curso de Letras, Ciências e Cultura Africana na Universite Nationale Pedagogique, em Kinshasa, é custeado por uma bem-sucedida produção de cerveja caseira.
Antes de terminar o mestrado, Omana se casa com Tiba Hamadi Bibigue. Não houve namoro, primeiro encontro ou idas e vindas. Tiba foi uma escolha da mãe de Omana. Ela simplesmente sentenciou que os dois deveriam ficar juntos.
Casado, vai morar na província de Nord-Kivu – região que se torna o epicentro da guerra civil que se espalhava pelo país. Entre 1993 e 2003, a disputa entre rebeldes, o exército da vizinha Ruanda e o próprio governo deixa cerca de 6 milhões de mortos – principalmente mulheres e crianças.
E o “principalmente mulheres e crianças” não sai da cabeça de Omana. Mesmo depois do fim “oficial” do conflito, a região continua uma zona de guerra. O país é então considerado o pior lugar do mundo para se nascer mulher, segundo estudo da ONU. Fala-se em 1.152 mulheres estupradas por dia. Ou 48 estupros por hora.
Em 2008, Omana funda a ONG Actions Urgentes D ‘Utilité Publique. No início, a ONG promove debates sobre a condição da mulher na África. Embora inofensivas, as reuniões causam desconforto no governo, que começa a prender, sistematicamente, o responsável por elas.
Nuas. Foram mais de 20 prisões, todas para averiguação, todas calcadas no terror psicológico e no que poderia acontecer caso Omana continuasse “colocando coisas na cabeça das mulheres”. Em 2010, ele chega a promover três dias de greve geral de mulheres. Nesses três dias, quase nenhuma moradora de Nord-Kivu foi trabalhar.
Em janeiro de 2013, grupos rebeldes vindos de Uganda invadem regiões próximas à fronteira. Estima-se que mais de 30 mulheres de Nord-Kivu tenham sido violentadas e mortas. O governo da República Democrática do Congo pouco faz para evitar o feminicídio. Contra os invasores e o imobilismo do governo, Omana organiza uma espécie de levante popular.
Omana é preso outra vez. Ele, que tinha acabado de ser pai pela sexta vez, toma tapas na cara de um brutamontes na delegacia da cidade. A ameaça agora é que ele seria transferido para uma prisão da capital: “Lá, a conversa é diferente...”
Mas, de dentro da pequena delegacia, é possível ouvir o barulho das ruas. Um som incomum, que vem ganhando corpo, que parece cada vez mais forte e definitivo. Os covardes, como de praxe, espiam pela janela. E o que acontece lá fora, do ponto de vista deles, da polícia, tem o poder de uma maldição: são centenas de mulheres nuas dançando ao redor da delegacia. Mulheres nuas que cercam um prédio do governo e exigem a liberação de Omana.
A ordem veio de cima. Da temida capital. Aquele desfile de mulheres nuas tinha que acabar. O delegado engole o orgulho e pede para um policial comprar uma camiseta nova para Omana – aquela estava empapada de sangue. Ele seria solto uma hora depois do início da manifestação.
Floresta. Ao chegar em casa, reúne a mulher e os seis... cinco filhos. Cinco. A filha mais velha, Omoy Edjo Julibunê (batizada com o mesmo nome da avó) está na igreja. Não é seguro buscá-la agora. Se a polícia ou o exército tentar alguma coisa, a mulher e as crianças devem fugir pelos fundos, em uma saída secreta que já tinha sido preparada havia alguns meses.
Perto das 23h, o exército chegou. Batidas na porta. Gritos. Como ensaiado, a família escapa pelos fundos – e a imagem da filha de cinco dias, Steevana Omana, enrolada em um paninho branco foi a última coisa que ficou daqueles segundos que antecederam a entrada dos soldados.
Os homens invadem a sala de Omana. O professor é detido por dois soldados. Um terceiro acerta um soco no rosto dele; um quarto, chuta o peito dele; um quinto, derruba o professor no chão. Um círculo se fecha ao redor do seu corpo indefeso. Ele poderia morrer ali. Mas o plano é outro. Omana é posto de pé e levado para um caminhão já carregado de outros condenados.
São 90 quilômetros até a floresta, localizada quase na fronteira com Uganda. Os soldados dividem os condenados em dois grupos de vinte. Cada grupo segue uma trilha. São caminhos paralelos – mas distantes um do outro. No trajeto, o professor é surpreendido por um soldado, um jovem de 23 anos, chamado Bandu, que quase sussurrando diz que vai ajudá-lo. “Eu sei quem é o senhor. Você já deu aula para a minha irmã mais velha. Vou dar um jeito de o senhor escapar.”
O grupo de Omana é levado para uma área com poucas árvores, local em que uma cova coletiva já havia sido aberta, uma cova que já esperava, com sua boca escancarada, receber os homens que seriam mortos dentro de instantes.
Para facilitar o trabalho dos soldados, os homens são perfilados quase que na beirada da cova. Assim, ao serem alvejados, o impacto da bala faria com que caíssem dentro do buraco.
Mas, quando a morte já tinha cheiro, uma coisa aconteceu. O outro grupo de condenados tinha se rebelado. Gritos e tiros foram ouvidos do lado em que eles estavam. De pronto, seis soldados do grupo de Omana foram descolados para o lugar da balbúrdia. Bandu, o soldado que queria ajudar, precisou acompanhar os outros homens.
Com o grupo de Omana, ficaram dois soldados. A diferença de idade entre eles era escandalosa. Omana sente a alma deslizando para fora do corpo. Pensa na filha de cinco dias. Talvez ela seja poupada. O resto da família, sem chance. Os soldados começam uma discussão sobre dinheiro. “Como assim? Deixá-los vivos?”. O soldado mais velho acerta um tiro na testa do seu companheiro de farda. Omana, instintivamente, dá um passo para trás. O soldado mais velho berra qualquer coisa. Ele dispara. Omana é alvejado na barriga. Cai na cova. Outros corpos caem por cima dele.
Céu. Omana não soube morrer. Primeiro foi um líquido quente escorrendo pelo rosto. Um líquido que era sangue e que fez o professor acordar. E o professor acorda sem distinguir quem era ele, acorda soterrado por braços e pernas que pareciam peças soltas de manequins descartados, defeituosos. Ele ouve gemidos, pedidos de socorro, tenta responder, mas a voz não sai.
Afundado naquele espetáculo bizarro de vísceras e sangue, Omana pensa salvar uma vida, empurrando o intestino de um homem para dentro de uma barriga. O que o professor não sabe, por enquanto, é que aquele intestino era dele.
“Professor, professor”, grita o soldado Bandu.
“Aqui, aqui, eu ainda estou na vida, eu estou na vida”, repete o professor Omana.
Bandu, o bom soldado, ajuda-o a sair do meio dos corpos, de dentro da cova. “Não estamos longe da fronteira. Vamos escapar por Uganda”, diz Bandu. Os dois homens caminham por algum tempo até que Bandu pergunta sobre o ferimento na barriga de Omana. “Que ferimento?”, responde. Quando se dá conta do que fez com o próprio intestino, apaga. Desmaia.
Omana só vai acordar em um hospital de Uganda. Diz que sua primeira percepção foi sonora – como se saísse do silêncio absoluto para o meio de uma orquestra. Depois, hesitou em abrir os olhos. Tinha medo de acordar no inferno. Mas, ao abrir as pálpebras e se deparar com o branco do uniforme médico, repete: “É o céu. É o céu.”
Fuga. A estada no hospital de Uganda dura pouco. Ali, ele ainda corria sério risco de ser morto por algum agente do governo do Congo ou mesmo por rebeldes locais. Por isso, é levado para um hospital no Quênia.
Lá, teve a ajuda de médicos que atuavam na região, inclusive um casal de brasileiros, para organizar a logística da fuga, arrumar dinheiro e documentos falsos. “Quando eles me perguntaram para onde eu queria fugir, respondi Brasil. Sempre senti uma ligação com esse País...”
Então, ele voou para a Argentina; na sequência, seguiu de carro para o Paraguai. Depois, alcançou a fronteira com o Brasil. Pronto. Era julho de 2013 e ele estava vivo. Em São Paulo, foi instruído a procurar ajuda da Cáritas, ONG associada ao Adus (Instituto de Reintegração do Refugiado).
Reencontro. Faz calor em São Paulo, o professor Omana Ngandu conta sua história em uma pequena sala de um prédio de dois andares no centro da cidade. No local, dá aula de francês e swahiri (dialeto africano). Lá, também funciona a ONG criada por ele, a LFCAB ( Langue Française Et La Culture Africaine au Bresil), que tem como objetivo disseminar a cultura africana.
Enquanto fala, o professor vai reagindo à sua própria história com expressões de dor ou alegria. Parece reviver cada segundo daquilo que conta. Tem algo enérgico ali, uma autoridade adormecida, algo que tem mais a ver com aquilo que ele já foi do que com aquilo que ele é.
Omana não tem muitas provas materiais da história que acaba de contar. Impossível saber se o que aconteceu na floresta foi exatamente como relata, se ele realmente foi ajudado por um soldado chamado Bandu ou se, por exemplo, médicos brasileiros de fato ajudaram-no com a logística da fuga. Mas Omana transmite convicção, tem as marcas no próprio corpo para mostrar e a história recente da República Democrática do Congo como factível pano de fundo. Mais que isso: Omana tem sua família como testemunha.
Neste ano, por meio de amigos na África, conseguiu localizar sua esposa e cinco filhos. Cinco. A filha mais velha, aquela que não fugiu com a família porque estava na igreja, teria sido violentada e morta na mesma noite em que o pai foi levado para morrer na floresta.
Tiba e o filho Kevin confirmam a história de Omana. “Nós achamos que o nosso pai estava morto. Para nós ele é um herói. Não vejo a hora de reencontrá-lo”, diz Kevin. Desejo também da menorzinha, Steevana, a menina que só tinha cinco dias quando o pai desapareceu.
  
Omana está tratando dos trâmites e autorizações legais para que a família seja aceita no País. Tem separado o dinheiro das aulas de francês para pagar as seis passagens aéreas da família. Para ajudar, amigos também fizeram um crowdfunding (uma espécie de vaquinha virtual) para ajudar no montante.

O professor não sabe morrer. Ainda sente a alma deslizando para fora do próprio corpo, ainda acha que chegou no céu. Só que agora, acredita ser o céu algo muito parecido com essa expectativa doce de reencontrar Tiba e as crianças.

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