RODRIGO RUSSO
20/12/2015 02h01
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RESUMO Cientista
social e jornalista francês defende em livro, após visitar mais de 50 países,
14 deles do mundo árabe, que a internet é uma revolução tecnológica da
fragmentação. Ele considera suspeita qualquer visão moral da rede, que vê como
uma ferramenta. Em passagem pelo Brasil, criticou a qualidade da internet no país.
Aline Massuca - 14.ago.14/Valor/Folhapress
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O cientista social e jornalista Frédéric Martel no Rio de Janeiro em
2014
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Frédéric Martel,
cientista social e jornalista francês, visitou mais de 50 países na tentativa
de compreender os efeitos de uma revolução tecnológica que, na superfície,
parece global e comum a todos, mas que em sua avaliação contraintuitiva é
essencialmente fragmentada. O que viu está agora registrado em "Smart - O
Que Você Não Sabe sobre a Internet" [trad. Clóvis Marques, Civilização
Brasileira, 462 págs., R$ 65].
Nessa narrativa
contemporânea, o Brasil tem lugar de destaque. Aparece em capítulos sobre
cidades inteligentes, "social TV", regulamentação da internet e
mobilidade de classes médias. No prefácio à edição nacional, Martel diz que
gostaria de ser brasileiro; como não é, deseja dar continuidade à tradição de
pensadores de expressão francesa, como Claude Lévi-Strauss e Blaise Cendrars,
que dedicaram grande atenção ao país.
Durante passagem por
São Paulo no mês passado, período em que se dedicou a apurar seu próximo livro
e promover o mais recente, Martel conversou com a Folha no café do hotel em que
estava hospedado, sem poupar críticas à falta de regulação no setor nacional de
telecomunicações. Após os ataques terroristas em Paris, Martel respondeu a
novas perguntas por e-mail sobre o papel das redes para o islamismo radical.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
Folha
- Como os grupos islâmicos radicais usam a rede em benefício de suas
atividades?
Frédéric
Martel - Estive em 14 países árabes para escrever
"Smart". Segui o Hizbullah no sul de Beirute e no sul do Líbano,
visitei o Hamas e o Jihad Islâmica em Gaza, passei algum tempo com a Irmandade
Muçulmana no Egito –mas não trabalhei com o Estado Islâmico na Síria ou no
Iraque.
Fiquei surpreso de
constatar que todos esses grupos radicais (considerados terroristas pelos
Estados Unidos) estão usando a internet basicamente como nós. Algumas de suas
contas às vezes são banidas do Facebook, do YouTube ou do Twitter. Presumo que
sejam monitoradas pelos EUA ou por Israel. Mas, fora isso, estão postando
mensagens e conteúdo como nós, publicando alguns artigos e assim por diante.
A maior diferença é
que elas são organizações muito verticais. Não estão realmente interessadas em
criar uma "conversa". Aceitam estar nas redes sociais, mas não
socializar. Ainda são organizações muito boas "de cima para baixo",
mas fazem propaganda, e não comunicação em ambas as direções.
O
senhor diria que a internet tem um papel fundamental na estratégia dessas
organizações? Como lidar com esse cenário, a partir de uma perspectiva
ocidental?
Sem dúvida. A
internet é um componente-chave da estratégia deles, tal como dos
narcotraficantes no México, por exemplo. Mas ela frequentemente falha, como no
Egito, onde a Irmandade Muçulmana foi incapaz de se manter no poder –a internet
é muito eficiente quando se trata de oposição, de ser contra algo, mas parece
ser mais difícil usá-la habilmente quando você está no poder.
Basicamente, o que os
grupos radicais islâmicos mostram é que a internet não é boa ou ruim em si –e
tenho suspeitas quanto a qualquer visão moral da rede. Ela é uma ferramenta,
como água ou eletricidade, e pode auxiliar no bem ou no mal. Com eletricidade,
você pode salvar uma vida no hospital e você pode eletrocutar um condenado à
morte. Nos países ocidentais, precisamos entender essa lição: a internet
depende do que nós –eu, você, todos– faremos com ela.
Como
o senhor vê, de modo geral, as mudanças que foram introduzidas pela rede?
Nós, como
jornalistas, frequentemente pensamos que a revolução da internet tem a ver com
livros, músicas, cultura, conteúdo. É isso. Mas ela diz respeito a todos os
setores. Carros e táxis, com o Uber, hotéis, com Airbnb, educação, saúde,
aviões, agricultura. Na Amazônia, vi como trabalham com apps e satélites para
fazer de tudo. Essa é uma questão central para nossa vida, nosso futuro. Afeta
nossa personalidade, nossas relações sociais –não só nas mídias sociais mas
também na vida real–, afeta nosso tempo, o modo como trabalhamos e nos
divertimos.
Gostaria de lembrar
Alexis de Tocqueville [1805-59], um grande pensador social –você sabe que ele
era monarquista, aristocrata, católico, então a revolução para ele não era
positiva, mas ele observava os fatos. Em seu livro sobre o Antigo Regime na
França ["O Antigo Regime e a Revolução"], ele dizia que os muros
estavam caindo por todos os lados, estávamos andando sobre cinzas. Nós sabemos
que o mundo em que vivíamos está morto, não podemos voltar atrás, mas ainda
temos que construir o novo. Levou quase um século para a Revolução Francesa
terminar. Agora, não sabemos o que será daqui a cinco anos, mas sabemos que
será diferente.
Por
falar em Tocqueville, o senhor reconhece alguma influência do trabalho dele em
seu livro, já que também destaca a importância das organizações locais?
Sim. Todo mundo diz
que a internet é um fenômeno global, e nós dizemos que é local. Mas é muito
mais complexo, obviamente, caso contrário eu seria ingênuo.
O que eu digo é que
quando você ouve os CEOs do Facebook, do Google, do Twitter, eles dizem que
estamos entrando em uma conversa global: fronteiras não são mais eficientes,
línguas são uniformizadas, culturas são uniformizadas, todo mundo estará na
mesma rede em diálogo. Eu digo que não é isso que vi em minha pesquisa, de
forma alguma. O que vi é algo muito diferente: em todo lugar, fronteiras ainda
existem, não no sentido físico, mas há fronteiras simbólicas, em particular as
línguas.
O que não significa
necessariamente local. Brasileiros nos EUA estão conectados ao país, apesar de
estarem lá. Você vai a Miami, eles falam espanhol e são cubanos, mas estão nos
EUA, então não é o mesmo local. Em Los Angeles, há um bairro onde a população
iraniana vive e que tem o apelido de Teerangeles. Falam farsi, estão conectados
ao Irã.Embora distantes, estão ligados pela língua. É por essas razões que, na
minha opinião, a palavra-chave da internet não é globalização, é fragmentação.
E, de certa forma, a internet é geolocalizada. É muito mais complexo que a
oposição global-local.
O
senhor não usa internet no singular e com letra maiúscula, sempre preferindo o
plural, "internets". Por qual razão?
É importante transformar
internet em um nome comum. O plural diz algo sobre diferenças e fragmentação.
Apesar de, claro, redes sociais poderem ser iguais em todo lugar, e termos
alguns conteúdos globais, não nego isso –o último vídeo da Beyoncé, o fenômeno
Psy, o discurso de Obama sobre terrorismo. Mas são parte pequena daquilo que
consumimos.
No
seu entendimento, haveria então camadas de conteúdo?
Vou além disso. Acho
que todo mundo tem sua própria internet. Você cria seu mundo e, apesar de
sermos amigos e próximos, somos muito diferentes. Um bom argumento, que
menciono na conclusão, é que identidade é um problema quando você resume uma
pessoa à sua identidade. Você é brasileiro, eu sou francês. Mas não sou só
francês. Um muçulmano talvez seja xiita. Mas também pode ser gay, professor.
Um ponto positivo da
internet é como você pode abrir suas diferentes identidades, mais do que na
vida real. Conheço muitos jovens do mundo árabe que de alguma forma são
prisioneiros de suas identidades porque são xiitas. Estive no Líbano com pessoas
xiitas e, por causa de suas famílias, eles eram apenas xiitas, e tudo em suas
vidas estava ligado a isso.
Conheci alguns jovens
que participaram da chamada revolução em Beirute, que participaram dos
protestos recentes, e eles eram xiitas, mas queriam se tornar seculares. Na
internet, você pode ser tudo isso muito facilmente, você pode conectar suas
diferentes identidades.
O
senhor tem quatro mestrados e um doutorado, além de escrever com frequência
para a revista "Slate" e de apresentar um programa de rádio. Seria
correto dizer que faz ciência social contemporânea aliada a um olhar
jornalístico?
Acho que sim. Faço
não ficção narrativa, esse é meu jeito de escrever –o que significa bom
jornalismo, boas histórias, com ampla contextualização.
Se você for ao meu
site, verá que tenho um arquivo de quase cem páginas, com bibliografias,
citações, entrevistados. Não está no livro porque acho que ninguém gostaria de
ler isso, mas está na rede. Já fiz livros acadêmicos, meu doutorado foi
publicado, mas não faço de conta que "Smart" seja um livro acadêmico:
você não faz pesquisa em 50 países sem falar as línguas locais. É um livro de
não ficção, mas por mim tudo bem.
Como
o senhor vê o conflito entre a proteção da privacidade dos usuários e o poder
das grandes empresas e Estados?
Frequentemente, temos
uma batalha entre os EUA e nós ["us and the US", jogo de palavras na
língua inglesa], e não concordo com isso. De algum modo, esse foi um dos
problemas do Marco Civil da Internet aqui no Brasil, uma consequência direta do
caso Snowden e da espionagem das comunicações de Dilma Rousseff.
Mas o inimigo passou
a ser os Estados Unidos. Concordo que cometeram uma série de equívocos. Pode-se
dizer que Snowden também cometeu ilegalidades, mas aquelas do governo foram
ainda maiores, e é por isso que no fim apoiamos sua causa –eu apoio Snowden,
acho que há uma história da internet pré-Snowden e outra depois dele. Mudou
tudo. Estávamos numa era dourada da inocência e de repente vimos o fim dessa
inocência, em um mundo mais perigoso e complexo.
Que
avaliação o senhor faz das discussões do Marco Civil?
Foi interessante ver
que o governo e Dilma, àquela época, queriam ser contra os Estados Unidos em
temas como regulação, internet. Mas olhe para a situação deste país: a banda
larga é extremamente ruim, extremamente cara, mensagens de texto SMS são
incrivelmente custosas, muito mais do que na França, por exemplo, apesar de as
pessoas lá terem muito mais dinheiro do que aqui.
Além disso, internet
3G –apesar de estarmos em uma cidade com tecnologia 4G– continua sendo difícil
de acessar, ao menos a um preço aceitável. São questões de regulação, e os EUA
não têm nada a ver com isso. Cabe ao governo brasileiro a decisão nesse campo,
e é muito fácil tomá-la.
O governo francês
decidiu criar uma licença para uma quarta empresa telefônica operar no país, e
por essa razão a internet e os serviços telefônicos ficaram muito mais baratos.
Telecomunicações são nacionais no mundo todo. Na União Europeia, decidiu-se que
mensagens de texto devem ser grátis entre países, e o roaming está sendo
destruído. Roaming é muito caro no Brasil, é preciso regular isso. O Marco
Civil foi uma boa ideia, mas é preciso que sejam feitas coisas aqui, para seu
povo, em vez de ficar pensando que todos os erros e problemas vêm dos
americanos.
RODRIGO RUSSO, 29, é jornalista da Folha.
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