terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Vício, Francisco Daudt


11/12/2012 - 04h32


Afinal, quando é que os cientistas vão inventar a pílula da moderação? Incentivo é o que não lhes falta, pois quem descobrir sua fórmula vai se tornar multibilionário instantaneamente. Até lá, o único remédio que dispomos para combater o vício é a medieval abstinência.
Buscando uma definição para vício, pesquisadores de Harvard acompanharam um grupo aleatório de quatrocentos alunos, e, ao fim de SESSENTA ANOS, publicaram suas conclusões: é vício a atividade compulsiva que resulta em fazer merda repetitivamente, sobretudo para si, envolva ou não terceiros (eles que me desculpem pela concisão).
A base do vício é algo que produza algum barato instantâneo. Não é exclusividade da nossa espécie. Vários mamíferos africanos se embriagam com o fruto fermentado da marula, enquanto os haja (divirta-se no Youtube vendo "drunk from marula"). Mas a nossa é uma espécie desmesurada e excessiva por natureza, particularmente propensa a se viciar. Principalmente com:
1. entorpecentes/excitantes (álcool, tabaco, cafeína, cocaína, maconha etc.);
2. causadores de intensidade/adrenalina (paixão, sedução, sexo, jogo, riscos diversos, sadomasoquismo etc.);
3. engordativos (carboidratos com gordura).
Estes últimos são uma praga de tão bons. Pão com manteiga deve estar entre as dez maiores invenções da humanidade. Mas entendê-lo é fácil. Nossos genes são herdeiros dos que tiveram prazer com essa combinação na savana africana. Acumulavam reservas para os tempos de vacas magras (é uma metáfora, não um insulto). Nunca imaginaram que ela seria tão disponível, seja nas padarias, seja nos fast-foods, daí a epidemia de obesidade.
Já o sadomasoquismo me fascina pela complexidade. E não estou falando de tons de cinza, mas das formas viciantes e sutis do s&m, a mais comum delas aquilo que chamei, num livro, de "jogo fodão-merda", que chega a ser um estilo de vida apreciado nos Estados Unidos (lá chamado de winner-loser). Consiste em se estar obsessivamente preocupado em ser fodão/winner, e apavorado de virar merda/loser. Como subproduto desta preocupação, vem a atividade s&m em si: o merda se sente fodão se humilhar alguém, se conseguir fazer alguém mais por perto se sentir merda. Olhe em torno. Quantos casais conhecidos seus vêm jogando esta droga há anos? O pior é que o s&m produz mais bodas de ouro do que o amor, e não se cura com separação. Quantos chefes inseguros se valem deste expediente para afastar o fantasma da merda? Quantos alunos imbecis o usam (como bullying) para momentaneamente se sentirem superiores aos nerds?
Não conheço vício mais comum. É um fenômeno sociológico de larga escala, tornando-se epidêmico, sem respeitar etnia (!), religião (!), classe social ou gênero.
É verdade que ele é mais encontradiço em quem não está "na sua" e vive preocupado com a opinião alheia. Momentos frágeis da vida (adolescência, afirmação profissional) nos deixam vulneráveis ao jogo.
Há quem ache que "isso é a vida". Mas no Japão, adolescentes se suicidam por ele. Eu o considero um problema de saúde pública.
Francisco Daudt
Francisco Daudt, psicanalista e médico, é autor de "Onde Foi Que Eu Acertei?", entre outros livros. Escreve às terças, a cada duas semanas, na versão impressa do caderno "Cotidiano".

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