Não acho que Deus exista, mas admitamos, para fins de argumentação, que ele seja real e interfira no mundo. Existem vários modos de fazê-lo. Há desde o superativismo divino, no qual nem uma pedra rola sem autorização do criador, até o deísmo, pelo qual o demiurgo criou o universo com suas leis naturais e foi descansar num longo "shabbat", que já dura 14 bilhões de anos.
A pandemia de Covid-19 traz dificuldades para os partidários da primeira concepção, já que nos obrigaria a ver Deus como um cara malvado. Se tudo depende de decisão do criador, então ele é o culpado pelos 6 milhões de óbitos até aqui registrados. Não daria nem para condenar Bolsonaro por suas omissões, já que elas seriam parte do plano divino.
A segunda concepção oferece um papel mais bacana para o demiurgo. No deísmo, ele pode ser visto como o melhor professor de biologia de todos os tempos. O universo que ele criou evidentemente já continha as leis da evolução. O que a epidemia fez foi escancará-las, revelando a todos que é Darwin e não interpretações fundamentalistas da Bíblia que está certo.
De fato, o vírus exibe diante de nossos olhos o poder da seleção natural mediante variação. Com pouco mais de dois anos de circulação, ele já produziu um alfabeto grego quase inteiro de variantes que se tornaram cada vez mais infecciosas e substituíram as versões anteriores, como prevê a teoria. Uma sublinhagem da ômicron, a BA.5, teve sua taxa bruta de reprodução, o R0, estimada em 18,6, o que a torna tão transmissível quanto o sarampo, algo que poucos epidemiologistas acreditavam que veriam em vida.
As taxas de hospitalização e óbito das novas variantes não acompanharam a de infecção. Os biólogos discutem se há mesmo uma tendência geral dos vírus de evoluírem para formas menos agressivas, mas o principal responsável por esse fenômeno no caso da Covid foram as vacinas, uma invenção indiscutivelmente humana.