domingo, 31 de julho de 2022

Hélio Schwartsman Na Covid, Deus dá lição de biologia, FSP

 


Não acho que Deus exista, mas admitamos, para fins de argumentação, que ele seja real e interfira no mundo. Existem vários modos de fazê-lo. Há desde o superativismo divino, no qual nem uma pedra rola sem autorização do criador, até o deísmo, pelo qual o demiurgo criou o universo com suas leis naturais e foi descansar num longo "shabbat", que já dura 14 bilhões de anos.

A ilustração de Annette Schwartsman, publicada na Folha de São Paulo no dia 31 de julho de 2022, mostra um homem branco de barba e cabelos castanhos longos, usando calção de banho preto, deitado sobre uma espreguiçadeira, com um drink na mão esquerda, tomando sol.
Ilustração de Annette Schwartsman - Annette Schwartsman

pandemia de Covid-19 traz dificuldades para os partidários da primeira concepção, já que nos obrigaria a ver Deus como um cara malvado. Se tudo depende de decisão do criador, então ele é o culpado pelos 6 milhões de óbitos até aqui registrados. Não daria nem para condenar Bolsonaro por suas omissões, já que elas seriam parte do plano divino.

A segunda concepção oferece um papel mais bacana para o demiurgo. No deísmo, ele pode ser visto como o melhor professor de biologia de todos os tempos. O universo que ele criou evidentemente já continha as leis da evolução. O que a epidemia fez foi escancará-las, revelando a todos que é Darwin e não interpretações fundamentalistas da Bíblia que está certo.

De fato, o vírus exibe diante de nossos olhos o poder da seleção natural mediante variação. Com pouco mais de dois anos de circulação, ele já produziu um alfabeto grego quase inteiro de variantes que se tornaram cada vez mais infecciosas e substituíram as versões anteriores, como prevê a teoria. Uma sublinhagem da ômicron, a BA.5, teve sua taxa bruta de reprodução, o R0, estimada em 18,6, o que a torna tão transmissível quanto o sarampo, algo que poucos epidemiologistas acreditavam que veriam em vida.

As taxas de hospitalização e óbito das novas variantes não acompanharam a de infecção. Os biólogos discutem se há mesmo uma tendência geral dos vírus de evoluírem para formas menos agressivas, mas o principal responsável por esse fenômeno no caso da Covid foram as vacinas, uma invenção indiscutivelmente humana.

Big Mac com fritas no leito de morte, Marcos Nogueira, FSP

 Marcos Nogueira

SÃO PAULO

McDonald’s. Esse é o último desejo da maioria dos pacientes do núcleo de cuidados paliativos do hospital da Unicamp, relataram profissionais de saúde à Folha, em reportagem publicada no dia 23.

Pessoas com doenças em estágio avançado, quando já não há mais esperança de cura ou tratamento, buscam conforto no Big Mac, nos nuggets de frango, nas batatas fritas em gordura vegetal hidrogenada. Essa é a comida que lhes traz boas memórias e paz de espírito.

No núcleo de cuidados paliativos do hospital da Unicamp, o hambúrguer do McDonald's é campeão entre os pedidos finais dos pacientes - AFP

A escolha da fast food como refeição no leito de morte é sintoma de uma tragédia gigantesca, de dimensão planetária.

Não se trata de censurar os servidores do hospital, muito menos os desejos dos pacientes. Eu voltaria a fumar, sem titubeio, um maço de Marlboro vermelho por dia se soubesse que vou morrer logo.

A tragédia está na constatação de que a indústria alimentar sequestrou nossos gostos e afetos com açúcar, gordura, sódio, aromatizantes, corantes e uma avalanche de propaganda.

E vai além: de tão consolidado, o sequestro habita o imaginário de quem já não tem nada a perder ou ganhar. Vale para quem está à beira da morte, vale também para quem foi privado de escolhas alimentares por falta de dinheiro.

Na outra coluna que escrevo para a Folha, as Receitas do Marcão, estou com uma série temática de pratos dos países que vão disputar a Copa do Mundo. Óbvio que sei muito pouco de várias dessas culinárias, então preciso pesquisar a respeito delas.

É batata: receitas de países africanos, latino-americanos e do leste europeu quase sempre têm um temperinho pronto industrial, um pozinho mágico que entrou de penetra nas tradições ancestrais. Eu adapto a receita, elimino esses ingredientes e toco a bola para frente.

Há ainda um saudosismo marqueteiro para vender uma certa "cozinha afetiva". Uma construção, fantasiosa ou falaciosa, de um passado recente em que os hábitos alimentares eram incorruptos.

O americano Michael Pollan, autor de livros sobre alimentação, é frequentemente citado por gente que põe a avó no meio para falar da qualidade da comida.

"Não coma nada que sua avó não reconheceria como comida", está impresso na tradução brasileira de "Food Rules" ("Regras da Comida", Intrínseca, 2010).

Aí você vai pesquisar o original e descobre que Pollan escreveu "great-grandmother", bisavó. Porque, a esta altura do campeonato, a tese vale bem pouco se formos falar das avós.

Segue um breve depoimento a respeito dos artigos que frequentavam a cozinha da minha mãe (que, aliás, já é bisavó) nos anos 1970 e 80.

Ela não fazia pudim, fazia flã de caixinha. Assava pizza com massa de caixinha. Comprava cubos de caldo de carne e temperos em pó às toneladas.

Quando inaugurou o primeiro McDonald’s em São Paulo, no distante 1981, meus pais correram sôfregos para lá. Eles buscavam reviver sabores do ano em que, jovens, moraram nos Estados Unidos.

O sequestro do afeto já estava consumado nos tempos da bisavó do meu neto, sinto dizer.