domingo, 5 de janeiro de 2025

Revisão populista será uma alternativa para a esquerda?, Bruno Boghossian - FSP

 O estrategista James Carville, ligado ao Partido Democrata, estava errado. Dias antes da eleição de 2024, ele publicou no New York Times a previsão de uma vitória de Kamala Harris. Agora, ele voltou para reconhecer a falha e discutir suas razões.

O erro de Carville teve um aspecto particular. Ao fazer a previsão, o estrategista ignorou uma máxima que ele mesmo cunhou, em 1992, ao estabelecer que o fator determinante de qualquer eleição "é a economia, estúpido".

derrota de 2024 levou o Partido Democrata à constatação de que sua plataforma econômica não convence mais o eleitorado e empurrou classes trabalhadoras para Trump. Carville sugere uma alternativa que representa um mergulho profundo (para padrões americanos) no que descreve como um programa populista.

O argumento central é que a esquerda precisa enfrentar a direita na arena econômica recorrendo a uma frustração parecida com aquela que foi instrumentalizada por Trump e obrigando os republicanos a recuarem aos pontos impopulares de sua agenda.

Manifestantes defendem o aumento do salário mínimo para US$ 15 por hora nos EUA, em 2019 - Scott Olson/AFP

Para isso, o establishment de esquerda deveria assumir bandeiras consideradas extravagantes, como o aumento do salário mínimo de US$ 7,25 para US$ 15 por hora, forçando a direita a se opor à ideia. Os republicanos ficariam com o peso de defender o corte de impostos para os mais ricos e o aumento do custo da saúde para os mais pobres.

termo populismo aparece na definição de Carville sem a carga pejorativa das últimas décadas. A palavra se refere principalmente à oposição entre povo e elites que, no ciclo político atual, também vem sendo explorada por líderes de direita pelo mundo.

No caso da esquerda americana, a ideia de uma guinada populista remete à bifurcação que os democratas enfrentaram em 2016, quando seguiram o establishment atrás de Hillary Clinton em vez de abraçar Bernie Sanders, que tinha uma plataforma digna daquele adjetivo.

O caminho aparece, com suas nuances, diante de uma esquerda brasileira que procura se reconectar às classes trabalhadoras. Não à toa, o tópico mais citado como trunfo nesses setores é a proposta de redução expressiva da jornada de trabalho.

Pagando a conta do desequilíbrio do setor público, Ana Paula Vescovi, FSP

 

O ano de 2025 começa com uma inevitável comparação entre o atual estresse dos mercados e o momento anterior à crise fiscal de 2015/2016. Desde então, o setor privado se fortaleceu, mas as condições no setor público justificam a piora recente na percepção de riscos.

Nos últimos dez anos, a economia brasileira mudou bastante, o que deve evitar uma desaceleração tão acentuada quanto houve lá atrás. Houve aumento de eficiência em diversos segmentos, e o setor privado quebrou recordes na balança comercial com o resto do mundo. Apesar dos altos preços de commodities, estamos longe do boom dos anos 2000 e do risco de desaceleração súbita de 2014.

A ilustração de Amarildo, publicada na Folha de São Paulo em 5 de novembro de 2025, no formato horizontal, mostra  uma cena metafórica de superação de obstáculos econômicos. O fundo é dividido em dois tons: uma parte superior em verde-claro e uma inferior em rosa-acinzentado.  Em primeiro plano, há um personagem masculino em tons de azul escuro, estilizado e sem traços faciais definidos, que está no meio de um salto de barreiras. Ele está carregando uma pasta na mão direita. Ele está prestes a ultrapassar o último obstáculo, que é uma barreira preta com o número "2025" escrito em branco.  No chão, atrás do personagem, existem outras barreiras. Cada barreira é rotulada com palavras relacionadas a desafios econômicos: "DÓLAR," "INFLAÇÃO," "JUROS" e "GASTOS." A barreira com a palavra "GASTOS" está visivelmente quebrada, com marcas de impacto indicando que o personagem acabou de derrubá-la ao passar.  O estilo da ilustração é simples e simbólico, destacando as dificuldades econômicas como obstáculos físicos, enquanto o personagem representa alguém enfrentando e tentando superar esses desafios para alcançar o futuro representado pelo ano de 2025.  No canto inferior direito da ilustração, há uma assinatura estilizada do artista: "Amarildo.
A disciplina dos mercados está cobrando a conta. Ainda há tempo para reverter o arrasto da crise de confiança para a economia real. A solução está dentro do setor público, passa por um diagnóstico há muito conhecido e, necessariamente, pela escolha da contenção dos gastos. - Amarildo/Folhapress

O setor produtivo está menos endividado, embora investindo menos e de modo mais seletivo. Preocupa a contínua saída de capitais, tanto de estrangeiros quanto de residentes, que poderia estar se convertendo em mais investimentos produtivos aqui.

O setor privado aumentou a sua presença na infraestrutura. Na energia, o mercado livre avançou sobre o mercado regulado (de um quarto para um terço do total). Há mais investimentos privados em saneamentoportos, rodovias e ferrovias. A construção civil se reestruturou a partir da nova lei do distrato e encontra-se menos dependente do funding subsidiado e de contratos governamentais. Houve vendas de ativos públicos, com os atores privados gerindo contratos de longo prazo, protegidos da inflação, mas com metas de investimentos, universalização e nível de serviços.

A ampliação dos acessos a mercados de capitais e a redução dos custos de refinanciamento contribuíram para a desalavancagem das grandes empresas, que, na média, encontra-se em menos da metade do nível de dez anos atrás.

Com menos subsídios creditícios, o mercado de capitais responde hoje por mais de 60% do crédito corporativo; há dez anos, era apenas metade disso. Os fundos de direitos creditórios quintuplicaram o seu patrimônio líquido, e as debêntures se tornaram o principal ativo dentro da indústria de fundos, superando pela primeira vez alocações em ações; os riscos dos emissores têm sido precificados em mercados mais profundos e diversificados e distribuídos entre um maior número de investidores.

No crédito corporativo bancário, o impulso também tem sido forte, com destaque para as linhas de antecipação de recebíveis de cartões, muito dependentes da demanda. Os fundos garantidores públicos têm sustentado o crédito para micro e pequenas empresas, desde a pandemia, com níveis de inadimplência ainda baixos.

As famílias estão mais endividadas do que há dez anos. Além da facilidade da tecnologia, há mais competidores em um mercado com liquidez mais abundante. O número de cartões de crédito ativos cresceu 2,5 vezes ante 2014.

mercado de trabalho, contudo, encontra-se tão resiliente quanto estava até 2014. A rápida expansão do setor de serviços, menos cíclico, reforçando o atual superaquecimento da economia. Neste momento, a taxa de desemprego está ainda mais baixa, na mínima histórica, e tende a demorar mais para se ajustar à desaceleração da economia.

Mas no setor público a história é bem diferente. O desafio da consolidação das contas públicas ainda não foi superado.

As instituições têm falhado em sustentar as regras fiscais, permitindo que o crescimento dos gastos públicos supere o ritmo de crescimento da economia. O valor dos precatórios judiciais e das emendas parlamentares se aproxima de 1% do PIB, sem avaliação ou proposta de reformulação estrutural. Permanecemos com déficit primário estrutural, agora mais dependente de dividendos das estatais e rendas do petróleo.

Os orçamentos continuam rígidos, com despesas obrigatórias indexadas e vinculadas, sem contrapartida em melhores serviços. O déficit crescente da previdência pública não se estabilizou após a reforma. O esforço recente de aumento permanente de receitas (1% do PIB) parece ter se esgotado, sem mais apoios no Congresso, e não foi suficiente para cobrir o ritmo acelerado das despesas. Os benefícios tributários cresceram de 5,7% para 6,9% do PIB em dez anos.

dívida pública saltou mais de 20 pontos percentuais do PIB nesse período, com tendência de crescimento até a próxima década. Se há dez anos apenas um quarto da dívida era atrelado a taxas de juros flutuantes, agora esse percentual chegou à metade. E ainda restou sem solução a enorme dívida de alguns estados com a União.

Embora as empresas públicas estejam mais protegidas pela Lei das Estatais, o uso de fundos públicos e os créditos subsidiados têm sido reativados. Estes sobrecarregam a dívida pública, embora acreditemos que, desta vez, o impacto a curto prazo não chegue à metade do observado na última crise fiscal.

O aumento do endividamento público voltou a ser um fenômeno global, desde a pandemia, o que induz juros globais mais altos do que experimentávamos há dez anos. Ou seja, a situação externa está ajudando menos e aportando mais riscos.

O ciclo político invertido, com gastos mais fortes no início da gestão, deverá resultar em mais inflação e menos crescimento no ano eleitoral. A grande incerteza é a possibilidade de novos impulsos fiscais. Os desequilíbrios crescentes no setor público e a sobrecarga do seu financiamento sobre o setor privado explicam a pior percepção de risco, as altas taxas de juros e o real depreciado. A disciplina dos mercados está cobrando a conta.

Ainda há tempo para reverter o arrasto da crise de confiança para a economia real. A solução está dentro do setor público, passa por um diagnóstico há muito conhecido e, necessariamente, pela escolha da contenção dos gastos.


Com essa polícia, para que bandidos?, Ruy Castro, FSP

 Confira se essa descrição se aplica a alguma cidade que você conheça. Apesar do luxo de seus quarteirões abastados, ela abriga 2.000 favelas. Nelas, os moradores vivem em casas improvisadas, com puxadinho de tijolo aparente, alugadas do dono do pedaço. As ruas não têm calçamento, o correio não chega, e a luz é fornecida por "gatos". Não há rede de esgotos. Muita gente boa mora ali, mas suas visitas não lhe batem à porta com três dedos —já entram com o pé na porta. Cada favela é controlada por uma facção. Se às vezes a chapa esquenta, com tiros e granadas, é porque esse controle está sendo disputado por outra facção, pela milícia ou pela polícia.

Aos seus jovens habitantes, sem escola, sem emprego e sem qualquer interesse, resta o manejo de armas, a venda de cocaína e o progresso na hierarquia do tráfico. Não leem nada. São individualistas, "empreendedores" e esforçados. Seu vínculo é com a facção a que pertencem, mas, como variação, sustentam-se como motoboys de restaurantes, choferes de mototáxi, segurança dos bacanas locais e, agora, operadores de apostas online. Tudo clandestino —nunca terão carteira assinada nem pagarão impostos. Por serem tidos como atraentes, promoverão uma ou outra prostituição na comunidade, usando as meninas que os admiram.

Se você pensou no Rio, onde essas zonas de conflito estão à mostra, acertou. Se pensou em São Paulo, onde elas não estão, acertou também. Mas os parágrafos acima são do repórter americano John Lee Anderson, num número recente da revista The New Yorker, sobre o presidente argentino Javier Milei. A cidade que ele descreve é Buenos Aires.

As nossas são parecidas, mas, por causa da polícia, talvez mais excitantes. Nelas, os tiras têm uma noção particular de suspeito —é todo aquele que se move na frente deles. Com tão vasto leque de opções, aspergem gás de pimenta em passantes, agridem senhoras de idade, matam pelas costas, jogam suspeitos da ponte ou fuzilam carros na presunção de que pais de família desarmados, jovens bonitas ou bebês a bordo são criminosos.

Com uma polícia dessas para que bandidos?