domingo, 5 de janeiro de 2025

Ruy Castro - Duros e morando juntos, FSP

 

RIO DE JANEIRO

Cidades são assim: feitas para as pessoas se encontrarem, mas para morarem longe uma das outras. Quando calha de morarem juntas, é um acontecimento. Na aurora dos 1800, os poetas românticos ingleses Keats e Shelley dividiram um apartamento na Piazza di Spagna, 26, em Roma —hoje é o glorioso museu deles. James Stewart e Henry Fonda, atores iniciantes na Hollywood de 1933, dividiram uma casa em Brentwood, Los Angeles. Nos dois casos, faziam-se rodízios para a entrada e saída das namoradas.

Não era o que acontecia em 1940 na rua do Passeio, 36, na Cinelândia. Não por falta de charme dos inquilinos, mas por fome, mesmo. Ali moraram ao mesmo tempo, recém-chegados ao Rio, sonhadores e desempregados, os jornalistas e compositores Antonio Maria e Fernando Lobo (futuros autores de "Ninguém me Ama"), o pintor Augusto Rodrigues, os radialistas Abelardo Barbosa, depois Chacrinha, e Theophilo de Barros, todos pernambucanos, e, da Bahia, o compositor Dorival Caymmi. Não havia cama para todo mundo —enquanto um dormia, o outro ia procurar emprego. Todos encontraram.

Na rua Otaviano Hudson, uma ladeira em Copacabana, em 1959, racharam uma quitinete os já quase famosos, mas sem tostão, João Gilberto, Miele e Ronaldo Bôscoli. Foi lá que João Gilberto ensaiou "O Pato" com a porta aberta, para saber se Bôscoli o ouvia no fim do corredor. Não só Bôscoli como todos os 11 vizinhos do andar o ouviram muito bem nos dias e noites em que ele ensaiou "O Pato".

No Conjunto dos Jornalistas, um condomínio no Leblon, também moraram, nos anos 60, o craque botafoguense Nilton Santos, o jornalista Sandro Moreyra, o cineasta Alex Viany, os dramaturgos Oduvaldo Viana, o pai e o filho, e, por um breve tempo, no apartamento de sua tia Maria Angélica, Raul Seixas.

E conheci bem um lugar que também ficou famoso: o Solar da Fossa, na rua Lauro Muller, onde é hoje o Shopping Rio-Sul. Entre 1967-72, foi o lar de Caetano VelosoGal CostaPaulinho da ViolaBetty Faria, Zé Kéti, Paulo Coelho, Paulo Leminski, Fernando Pamplona, românticos, boêmios e mal pagos, e muitos mais. Um deles, eu.

Hélio Schwartsman Ética no mundo real, FSP

 Peter Singer é um dos mais estimulantes filósofos da atualidade. Embora ele abrace uma corrente teórica —o consequencialismo—, dedica-se mais a discutir questões práticas. E, ao fazê-lo, não hesita em ir até onde seu pensamento o leva, mesmo que as conclusões sejam controversas.

Em "Ethics in the Real World", uma coletânea de 90 ensaios voltados para o público geral, Singer mostra a que veio. Entre as muitas teses polêmicas que ele defende estão o infanticídio (a eutanásia de bebês gravemente doentes), a liberação do doping para atletas e a criação de um mercado de rins. O interessante é que, apesar de as conclusões poderem ser classificadas como radicais, Singer chega a elas através de argumentos muito ponderados.

Outra característica de seus escritos é que ele sempre deixa espaço para o leitor discordar. Singer foi um dos primeiros proponentes do vegetarianismo ético, que abraça com entusiasmo. Mas ele não nutre a ilusão de que toda a humanidade se tornará vegetariana. Para os carnívoros irredutíveis, ele propõe que pelo menos exijam que animais destinados ao abate não sejam submetidos a uma vida inteira de maus-tratos. Difícil discordar.

A imagem mostra um homem sorridente sentado à mesa com um prato de frango assado à sua frente. Ele segura um garfo e uma faca, enquanto pensa em uma figura humana flutuando em um círculo azul, representando um pensamento ou sonho. O fundo é verde e a mesa tem uma toalha vermelha com padrão quadriculado.
Ilustração de Annette Schwartsman, sobre coletânea de ensaios de Peter Singer, para a coluna de Hélio Schwartsman, esta que será publicada também na versão impressa da Folha neste domingo (5.jan.25) - Annette Schwartsman/Folhapress

O próprio Singer explica por que se dedica a escrever para o público geral. Artigos científicos que saem em periódicos com revisão por pares são lidos em média por dez pessoas. Um texto de opinião num jornal de grande circulação pode ser lido por centenas de milhares ou mesmo milhões. E alguns destes leitores mudarão seu modo de ver as coisas e talvez até suas atitudes.

Um dos problemas da modernidade, como Singer mostra num dos ensaios, é que a maioria de nós tirou a reflexão moral de suas vidas. Apenas 23% dos americanos param com alguma frequência para pensar sobre os aspectos éticos de decisões; 31% o fazem às vezes; e 46%, nunca.

Na maioria das situações, nós apenas nos deixamos levar pelas intuições morais que vêm embutidas em nossas cabeças. O problema é que elas evoluíram para lidar com questões da Idade da Pedra que têm pouca relevância no mundo de hoje.


O QUE A FOLHA PENSA Descobrindo mais moradores de rua

 O Cadastro Único de Programas Sociais detectou, em apenas um ano, um número de pessoas que vivem em situação de rua no país 25% maior que o de 2023 —de 261.653 para 327.925 em 2024, segundo pesquisa desenvolvida na UFMG.

Considerada a série histórica, o saldo atual é 14 vezes o verificado há 11 anos. Boa parte da explicação do incremento dramático decorre da fonte desses dados.

Como o CadÚnico tornou-se o principal programa social para pessoas em vulnerabilidade, não houve necessariamente um aumento real da população de rua na mesma proporção dos novos inscritos. De todo modo, a cifra acende o sinal de alerta para gestores nos três níveis da Federação. Ou deveria acender.

percepção geral dos brasileiros também é um indicativo. No anos passado, pesquisa do Ipec mostrou que 1 em cada 4 vê avanço na população de rua, e 93% dos moradores do centro da capital paulista acreditam que esse é o principal problema da região.

Governantes devem ir além dos números. É preciso compreender, de um lado, as causas que levam ao acréscimo da população de rua e, de outro, o perfil específico desse contingente.

A política conhecida como "moradia primeiro" ("housing first") privilegia a oferta de moradias fixas ou temporárias com vista a fortalecer laços comunitários e facilitar a busca por trabalho. Há uma experiência paulistana nesse sentido, o Programa Reencontro, hoje vetado pela Justiça por falta de consulta popular.

Ao mesmo tempo em que o estado de São Paulo congrega 43% das pessoas em situação de rua, 20% dos imóveis do centro da capital estão sem uso e poderiam ser remodelados para moradia.

É possível que se desenhem, a exemplo de outros países, políticas habitacionais que visem, também, famílias inteiras —é cada vez mais comum encontrá-las ao relento nas grandes cidades.

Além da moradia, devem-se adotar políticas transversais que provejam dignidade e direitos.

O acolhimento a moradores de rua com questões de saúde mental e dependência química segue insuficiente. É imperativo ampliar o atendimento especializado, que leve em consideração as especificidades de cada subgrupo, incluindo o entendimento psicossocial adequado e políticas de redução de danos para usuários.

A população de rua merece atenção integrada de municípios, estados e União. Desde 2009, o Brasil conta com uma política nacional para o setor, que ainda carece de mecanismos efetivos de implantação. Dados e normas são abundantes; faltam resultados.

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