domingo, 8 de outubro de 2023

Demétrio Magnoli- Negacionista silencioso, FSP

 


No outubro de 1998, o então ex-ditador Pinochet foi preso em Londres por solicitação do juiz Baltasar Garzón. A prisão no Reino Unido de um chileno indiciado por um espanhol representou uma aplicação inédita do princípio da universalidade dos direitos humanos. Meses antes, o Estatuto de Roma estabelecera o Tribunal Penal Internacional (TPI), que entrou em vigor em 2002. Nos 50 anos do golpe de Pinochet, quando Lula investiu contra o TPI, o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, alinhou-se ao presidente por meio de um silêncio cúmplice.

Lula e Almeida são negacionistas dos direitos humanos, mas o primeiro os despreza por motivos geopolíticos enquanto o segundo os renega por motivos ideológicos. As razões do presidente, embora abjetas, inscrevem-se na esfera superficial do oportunismo. Já as razões do ministro têm raízes profundas e, por isso, ferem o núcleo da cultura dos direitos humanos.

O presidente Lula (PT) cumprimenta o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, no dia de posse no Palácio do Planalto, em Brasília
O presidente Lula (PT) cumprimenta o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, no dia de posse no Palácio do Planalto, em Brasília - Sérgio Lima - 1º.jan.23/AFP

Meses antes de assumir o ministério, Almeida publicou um artigo esclarecedor. Consagrado à invasão da Ucrânia, o texto conseguiu a proeza de, ao longo de 613 palavras, evitar a responsabilização de Putin. Nele, invoca-se a "complexidade do evento" para, afastando "reflexões maniqueístas", atribuir o "conflito" ao "expansionismo capitalista" e à "lógica destrutiva da mercadoria" (leia-se: EUA). Culpa coletiva, difusa, espalhada: "todos os governos estão cientes do horror que estão promovendo".

O substrato ideológico do artigo encontra-se, contudo, em outro lugar: uma citação de 1950 do martinicano Aimé Cesaire, que ainda militava no Partido Comunista Francês e admirava Stalin. Segundo Cesaire, a indignação diante do nazismo, fonte da Declaração Universal de 1948, não decorria do "crime contra o homem, mas contra o homem branco" pois inexistiria diferença fundamental entre a máquina de extermínio hitlerista e os "processos colonialistas" europeus.

Cesaire escreveu durante 66 anos. Almeida escolheu o voo mais baixo do martinicano. A passagem pertence à extensa tradição do antissemitismo soft contemporâneo que, no lugar da negação factual do Holocausto, opera pela sua relativização. Mas a cuidadosa seleção faz sentido: o objetivo do ministro é exibir a cultura dos direitos humanos como pura hipocrisia de brancos ocidentais.

A narrativa identitária de Cesaire e Almeida tem mil e uma utilidades, inclusive a proteção de Stalin, no caso do primeiro, e a de Putin, no do segundo. Sobretudo, porém, trata-se de contestar a natureza universal dos direitos humanos para sustentar uma doutrina assentada na cisão "brancos/não-brancos". Daí, a hostilidade tanto à Declaração Universal quanto ao TPI, seu principal fruto.

"Todos os seres humanos podem invocar os direitos e liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião...". O artigo 2º da Declaração Universal, aprovada antes da queda dos impérios coloniais, indica o alcance da reação civilizatória ao Holocausto.

O Estatuto de Roma nasceu do repúdio ao genocídio de Ruanda (1994) e ao massacre de Srebrenica (1995), eventos incompreensíveis nos termos da doutrina identitária. A "purificação racial" foi a mola propulsora de ambos. Na antiga Iugoslávia, militares sérvios eliminaram milhares de civis muçulmanos bósnios. No país africano, a ditadura hutu comandou o extermínio de mais de meio milhão de tutsis. "Brancos contra brancos" e "negros contra negros"? O exterminismo racista não precisa de diferenças de cor de pele.

O crime de Putin que provocou a ordem de prisão do TPI é do mesmo tipo. A deportação de dezenas de milhares de crianças ucranianas para a Rússia destina-se a russificá-las, um passo no projeto de eliminar a Ucrânia como nação. O negacionista Almeida não vê escândalo nisso: "brancos contra brancos", tudo bem.

Marcos de Vasconcellos -Legislativo aperta o cerco contra pirâmides e 'alienígenas', FSP

 Altos ganhos garantidos, sem risco, disponível apenas para você e algumas poucas pessoas. Se você ouviu essas palavras —e não foi após esfregar uma lâmpada mágica no deserto— é hora de mudar a conversa ou a companhia. Em breve, pode ser caso de chamar a polícia.

No último dia 3, a Comissão de Segurança Pública (CSP) do Senado aprovou um projeto de lei que prevê pena de até oito anos de prisão para o crime de pirâmide financeira. E o ponto que julgo mais interessante: a punição atinge também investidores que, conhecendo a fraude, recrutam novos participantes.

O projeto ainda precisa passar por outras comissões antes de ir para a Câmara dos Deputados e, depois, para sanção presidencial, mas mostra um Legislativo mais atento a um problema sério, que emporcalha a discussão sobre investimentos.

Imagem mostra mão falsa de madeira segurando moeda dourada (criptomoeda). Em volta, há várias outras moedas sobre uma superfície cinza.
Criptomoeda - Gabriel Cabral - 27.fev.23/Folhapress

Os esquemas são coisa antiga e a explicação simples é: são negócios em que a geração de dinheiro depende mais da entrada de novas pessoas no bolo do que da real aplicação do dinheiro arrecadado. Há formas mais complexas de fazê-lo, mas essa é a base da pirâmide (com perdão do trocadilho).

Tradicionalmente, o que vemos é a tentativa de punir as cabeças do esquema, como o famoso Bernie Madoff, nos Estados Unidos, ou do "Faraó dos Bitcoins", Glaidson Acácio dos Santos, no Brasil. Mas a verdade é que as cabeças dependem do marketing dos seus investidores para o golpe. E, até agora, tratamos como vítimas quem, muitas vezes, foi também algoz.

Veja bem: imagino que a grande maioria das pessoas que caem em golpes de pirâmide são mesmo vítimas. Mas conheço de perto casos de gente que sabia estar num esquema, mas continuava recrutando "amigos" para não sair no prejuízo. Amigos entre aspas, claro.

O Projeto de Lei 3.706 tramita desde 2021, mas a aprovação do projeto pela comissão vem justamente às vésperas do encerramento da Comissão Parlamentar de Inquérito das Pirâmides Financeiras, prevista para o próximo dia 11.

O foco do grupo, instaurado em junho, mudou ao longo do tempo. Tentaram pendurar nele a fraude nas contas da Americanas e o caos instaurado com a 123milhas. Mas a promessa é que seu relatório final facilite a apuração de crimes envolvendo criptomoedas, milhas aéreas e outros ativos digitais. Que assim seja.

Recentemente, a Polícia Civil do Tocantins divulgou ter prendido um pastor acusado de montar um esquema de pirâmide para tirar dinheiro de fiéis. A estimativa feita é de que tenham sido mais de 50 mil vítimas em cinco anos.

O caso envolvia religião, dinheiro e teoria da conspiração. Alguns líderes diziam que ETs haviam invadido o Vaticano e palácios da Inglaterra para pegar ouro, que seria distribuído a quem ajudasse no projeto chamado "Nesara Gesara", de acordo com a polícia.

O absurdo pode parecer óbvio para quem lê, mas a ganância fala alto, enquanto a educação sussurra. E o bom senso acaba sendo varrido para baixo do tapete quando a oferta parte de pessoas próximas.

Uma ajudinha do Legislativo na faxina seria bem-vinda, para que histórias de golpes disfarçados de investimentos, como Fazenda Boi Gordo, Telexfree, Unick Forex, Avestruz Master e tantos outros virem apenas lembranças de uma época.

Marcus André Melo - A morte da "morte da democracia", FSP

 


Em artigo recém-publicado em parceria com Lucan A. Way, o cientista político Steven Levitsky contesta a tese de que está em curso uma recessão democrática ou processo de autocratização. "Os dados não confirmam os argumentos", afirma o coautor de "Como as Democracias Morrem", que divulgou a ideia de que as democracias estavam sob forte ameaça e que o provável desfecho seriam autogolpes de incumbentes em vez de intervenções militares.

Os presidentes Xi Jinping e Vladimir Putin no Kremlin, sede do governo russo, durante visita do líder chinês a Moscou - Maxim Shipenkov - 5.jun.19/Reuters

Antes tarde do que nunca. Para os autores, os índices existentes sugerem que "a erosão democrática no presente século tem sido modesta". A percepção equivocada quanto ao suposto declínio abrupto se deveria à eleição de líderes com tendências autocráticas, que "aumenta os riscos de erosão, mas não equivale a evidência de erosão", e aos casos de erosão que têm vida breve em sua vasta maioria e eclipsam os numerosos casos de avanços.

É relativamente fácil chegar ao poder; muito mais difícil é consolidar um regime autoritário. Nos países de renda média, os problemas fiscais, a pobreza e o déficit de serviços são fontes de instabilidade para as autocracias, o que impediria que estas se consolidem. Os autores reconhecem que a renda (não associada à riqueza mineral) é o principal preditor da resiliência democrática.

Eles argumentam que, em muitos casos, os líderes autoritários não contam com partidos orgânicos. Mas mencionam as instituições políticas apenas de passagem. Quando o fazem, é em chave negativa: enfatizam a incapacidade ou fraqueza do autocrata, não o papel do legado institucional dos países e a experiência anterior com a democracia. "Como governos com tendências autoritárias são incapazes de criar redes de patronagem duradouras ou de estabelecer controle firme sobre instituições como o Judiciário, os militares ou autoridades eleitorais, as forças democráticas podem resistir aos esforços de imposição de uma autocracia plena". As fontes institucionais da resiliência são ignoradas.

O caso-limite seriam os países muito pobres em que os autocratas acabam por não se impor porque nem sequer dispõem de capacidade coercitiva ou administrativa, gerando um paradoxal "pluralismo por default".

O artigo é informativo, mas os problemas do argumento sobre "a morte da democracia" já haviam sido apontados por vários analistas (resenhados aqui e aqui) e também discutidos neste espaço (aqui e aqui).

Um ponto enfatizado no texto nos interessa na atual conjuntura: o ambiente global se alterou radicalmente. O consenso hegemônico anterior em torno da democracia desmoronou. A aliança liderada por uma autocracia, a China, com participação ativa de outra, a Rússia, desafia as instituições liberais ocidentais. Estarrecedor que o Brasil esteja no lado errado da história.r