quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Conrado Hübner Mendes -A Constituição manda polarizar, FSP


Palavras nunca foram só palavras, mas também ação concreta. Proferidas por autoridades, ainda mais. Palavras ditas por presidentes da República geram efeitos em corpos e mentes individuais e no patrimônio coletivo: fazem subir ou descer desmatamento, violência doméstica, ataque homofóbico, armamento ilegal, invasão de terra indígena, uso de máscara e vacina, sufocamento por Covid, indicador econômico.

Quando Bolsonaro presidente falava, periferias simbólicas e territoriais do país sentiam na pele. Seus cânticos do porão, entoados por quatro anos, acentuaram sofrimento, adoecimento e morte nessas periferias e nas UTIs. O assédio, a violência e a bala perdida com alvo certo, também. Não foi coincidência, nem mero discurso.

Lula, quando fala, não faz os pilotos da Faria Lima ou comentaristas de jornal temerem pela vida. Eles não levam tiro nem fatiam a merenda. Mas estrilam verbosamente. Cada vírgula lulista se sujeita a escrutínio crítico, psicográfico, ético e estético. A delinquência verbal bolsonarista passa como indelicadeza na sala de jantar.

Lula sobe a rampa do Planalto durante cerimônia de posse - Eduardo Anizelli-1.jan.22/Folhapress

Perdão pela generalização. Difícil, porém, haver outra tão eficaz quanto esta. O mundo é mais complexo e tal, mas a epiderme do mercado e seus porta-vozes, não. Reagem como um algoritmo. Exceções mais arejadas confirmam a regra.

Em seus dois discursos de posse, Lula usou palavras tão elementares quanto necessárias. Qualificou o governo anterior como "negacionista, obscurantista e insensível à vida", "projeto autoritário de poder". A "grande vitoriosa" foi a democracia.

Defendeu a política como "melhor caminho para o diálogo", "para a construção pacífica de consensos", para "promover o crescimento sustentável e em benefício de todos". "Vou governar não apenas para quem votou em mim", "olhando para o nosso luminoso futuro em comum", pois "não existem dois brasis", assegurou. Palavras nunca escutadas no repertório do ex-presidente.

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Augusto Aras, maior agente da irresponsabilização pelo moriticídio bolsonarista, debaixo de vaia e com cara de paisagem geral da república, teve de ouvir que "não podemos admitir terra sem lei" e "responsabilidades hão de ser apuradas."

Lula garantiu: "Não carregamos ânimo de revanche, mas vamos garantir o primado da lei. Quem errou responderá por seus erros, com direito amplo de defesa, dentro do devido processo legal".

Houve quem escutou "revanchismo" e gritou "caça às bruxas". Ou quem concluiu que "Lula optou pela polarização". Duas coisas iniciais a dizer: defender apuração e responsabilização é dever constitucional, seu contrário é corrupção; a tarefa cabe, sobretudo, ao sistema de Justiça.

Contudo, o discurso suscitou, sim, polarização. Lembrou do contraste entre a "parcela da população que tudo tem" e a "multidão a quem tudo falta"; a "fila na porta dos açougues em busca de ossos" e "filas para a compra de jatinhos"; os "5% mais ricos" com mesma fatia de renda que "os demais 95%"; ou os "seis bilionários brasileiros" com patrimônio equivalente aos "100 milhões mais pobres".

Assumiu "compromisso de cuidar de todos" e pediu uma "frente ampla contra a desigualdade", um "grande mutirão". Não há possibilidade de "união e reconstrução" do país sem essa polarização, que está em nosso código genético colonial.

Antes de, na ânsia pelo clichê, dizer que a fala induz o mesmo "nós contra eles", note a diferença. Não é teórica ou retórica, é muito prática.

O "eles" de Bolsonaro mira sujeitos concretos e individualizáveis: o negro pesado em arrobas, a mulher que deve "ganhar menos porque engravida", o gay "por falta de porrada", o indígena que está vivo por falha da cavalaria brasileira, a torturada que "se vitimiza", a jornalista que "dá um furo", o petista que merece ser fuzilado e ir "pra ponta da praia".

O "eles" antagonizado pela fala de Lula evoca sujeito abstrato, irredutível a identidade fixa. São os que querem "oprimir o vulnerável, massacrar o oponente e impor a lei do mais forte". Pertencer ao "nós", nesse caso, é opção moral e política, não cor de pele.

De um lado, há polarização pela exclusão e eliminação do diferente. De outro, pela via da inclusão e do respeito. Chame isso de populismo, se quiser, mas são populismos opostos. Apagamento do outro não se confunde com contestação legítima da exclusão. Esta tem lastro moral e jurídico, aquele é só força bruta.

Lula pode vir a trair seu compromisso, mas não se leia nas suas palavras o que elas não dizem. A polarização que elas incitam, por dever jurídico, também estava presente no discurso do ministro Silvio Almeida: "vocês existem e são pessoas valiosas para nós". Todos os tratados de direitos humanos e declarações de direitos constitucionais cabem nesse refrão.

 

Direita tende a se pulverizar após Bolsonaro, FSP

 

SÃO PAULO

A saída de Jair Bolsonaro (PL) do poder abre espaço para o surgimento de novas lideranças à direita, apesar de aliados aguardarem sinalizações do agora ex-presidente acerca do rumo político que deve tomar após a derrota para Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

A candidatura de Bolsonaro conseguiu reunir politicamente um setor amplo e difuso que vinha se formando desde 2013, agregando desde eleitores antipetistas e conservadores a extremistas que pedem golpe militar.

Agora oposição, esse arranjo tende a se fragmentar, segundo especialistas e parlamentares ouvidos pela reportagem.

Jair Bolsonaro (PL) em uma das raras aparições no Alvorada após a derrota eleitoral
Jair Bolsonaro (PL) em uma das poucas aparições no Alvorada após a derrota eleitoral - Adriano Machado-12.dez.22/Reuters

Bolsonaro é reconhecido como uma liderança mobilizadora, mas não conseguiu comandar um partido, fracassou em criar o próprio e deixa no vácuo seu eleitorado mais fiel –que tenta traduzir possíveis códigos a partir das poucas publicações que ele faz em redes sociais.

Em seu penúltimo dia de mandato, ele deixou o Brasil e viajou para os Estados Unidos, sendo alvo de críticas de aliados que pediam golpe em frente a quartéis. Rompendo uma tradição democrática, também deixou de passar a faixa para Lula no dia 1º.

No dia 31, o então vice-presidente e senador eleito pelo Rio Grande do Sul, Hamilton Mourão (Republicanos), fez pronunciamento em rede nacional com crítica velada a Bolsonaro ao dizer que "lideranças que deveriam tranquilizar e unir a nação em torno de um projeto de país deixaram com que o silêncio ou o protagonismo inoportuno e deletério criassem um clima de caos e de desagregação social". A fala também foi interpretada como uma tentativa de disputar a liderança da oposição.

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Presidente da bancada evangélica na Câmara dos Deputados, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) diz que vê dois principais caminhos para Bolsonaro no jogo político: liderar a oposição ou se tornar um mentor.

Ele atribui ao ex-presidente a onda de políticos jovens que ganharam projeção no último pleito, como os deputados federais Nikolas Ferreira (PL-MG), André Fernandes (PL-CE) e Carol de Toni (PL-SC).

Destaca que o campo da direita conservadora cresceu com Bolsonaro –que ajudou a eleger a maior bancada do Congresso–, mas reconhece que não há partidos que abracem integralmente suas pautas.

O deputado diz ter a missão de conversar com algumas legendas da direita para encontrar interessados em apoiar a bandeira do conservadorismo –destacando posições sobre família, aborto e drogas– em estatutos partidários. Vê possibilidade no PL, que abriga o ex-presidente, e no Republicanos.

Bolsonaro ajudou a fomentar um campo eleitoral que, de acordo com Sóstenes, é um misto de "nacionalismo com iniciativa privada, agronegócio e grandes empresários, com segmento religioso e militar".

"Precisamos identificar um, dois ou três partidos que se autointitulem de direita conservadora. Hoje, não há. E sabemos que não se faz política no Brasil com candidaturas avulsas, só com partidos", afirma.

O líder evangélico não arrisca sugerir nomes que podem eventualmente suceder Bolsonaro porque diz ser preciso esperar por sua decisão, mas pondera que "amanhã pode ser Tarcísio de Freitas, um Jorginho Mello [governador de Santa Catarina], Ronaldo Caiado [governador reeleito de Goiás], Romeu Zema [governador reeleito de Minas Gerais], ou a própria Michelle Bolsonaro, que se tornou muito carismática".

Para o cientista social Jorge Chaloub, que estuda a direita brasileira do pós-guerra, Bolsonaro deu cara e sentido à extrema direita no Brasil.

"Só que esse campo ficou centralizado na figura dele e de sua família. Ele não criou um partido nem conseguiu dominar completamente um partido. Qual é a tendência agora, com a derrota? A tendência é que esse campo se pulverize."

A leitura dele e de outros analistas é que, desde a derrota, Bolsonaro teve respaldo somente no seu núcleo fiel, que eles estimam ser uma parte pequena do total que o elegeu.

"É um eleitorado disposto a abraçar novas lideranças. Até porque Bolsonaro já tem dado notas de perder o controle do seu eleitorado, mesmo o núcleo mais radical, com os últimos acontecimentos de Brasília, com ataques que bolsonaristas têm trocado entre si. Há um vácuo de liderança e o próprio silêncio dele evidencia isso", diz o deputado federal Kim Kataguiri (União Brasil-SP).

A forma de outros partidos captarem esses eleitores, segundo o membro do MBL (Movimento Brasil Livre), é com "competência na oposição".

"A votação da Lei das Estatais, por exemplo, mostrou com clareza que a maior parte dos bolsonaristas votou com o PT a favor de um texto porque não acompanha e não vai ao plenário, não participa das discussões, não lê os projetos e não faz acordos", diz.

A Câmara dos Deputados aprovou em 13 de dezembro um projeto que muda a Lei das Estatais para reduzir para 30 dias a quarentena de indicados a ocupar cargos de presidente e diretor das empresas públicas. A alteração pode beneficiar o ex-ministro Aloizio Mercadante, agora no BNDES sob Lula.

A parcela de eleitores bolsonarista raiz, aquela que abraçou a desconfiança das urnas e a anticiência durante a pandemia, por exemplo, é considerada a mais difícil de se reconectar. São, por exemplo, os manifestantes que pedem golpe militar em frente aos quartéis desde a derrota na eleição.

deputada estadual Janaína Paschoal (PRTB-SP) diz achar injusto chamá-los de extremistas e que lhes falta compreender que Bolsonaro foi parte do processo de destruição da Lava Jato.

"Muitos estão em manifestações por entenderem, com razão, que Lula sequer poderia ter concorrido, uma vez que não é possível, depois de cinco anos, anular quatro condenações em embargos de declarações", afirma.

Janaína considera difícil o surgimento de uma nova liderança tão cedo porque entende que o bolsonarismo cometeu "excessos retóricos" que estigmatizaram a direita como um todo.

Bolsonaristas já queimaram carros e vandalizaram áreas de Brasília, mas alguns políticos e influenciadores dizem que seriam infiltrados, mesmo que não faça sentido a esquerda tumultuar a posse de Lula.

Para o sociólogo Michel Gherman, bolsonarismo e eleitores de Bolsonaro não são sinônimos. Segundo ele, "Bolsonaro representa o seu militante mais radical".

"Esses grupos sempre existiram, mas não eram colonizados, não tinham uma gramática. Bolsonaro produziu uma prática gramatical que fez com que eles encarassem adversários como inimigos, progressistas como ameaça", afirma ele, que é autor do livro "O Não Judeu Judeu: A Tentativa de Colonização do Judaísmo pelo Bolsonarismo".

O pesquisador diz que a direita liberal agora conviverá com um desafio que ela própria ajudou a criar e que a "energia política da extrema direita está na sociedade brasileira".