quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Elio Gaspari - A bola está nos pés de Lula, FSP

 

Lula já viu isso. Celso Rocha de Barros conta no seu livro "PT, uma história" que, no primeiro semestre de 1994, ele pediu ao presidente do PT, Rui Falcão, que começasse a sondar nomes para seu governo.

Pudera, em fevereiro ele tinha 30% das intenções de voto e Fernando Henrique Cardoso, com sua promessa de estabilização da moeda, patinava em 7%. Falcão não gostou da ideia. Achava-a prematura. Em julho, Lula caiu de 41% para 38% e FHC foi para 21%. Em outubro, deu no que deu.

Sem levar em conta o debate de domingo, o ponteiro da pesquisa do Ipec não se mexeu. No debate, Lula entrou cavalgando o Bolsonaro da pandemia. Estonteou-o. Nos segmentos seguintes, Bolsonaro trouxe-o para a discussão das malfeitorias praticadas durante seus oito anos de governo.

O ex-presidente Lula e o presidente Jair Bolsonaro durante debate do último domingo (16) - Mariana Greif - 16.out.22/Reuters

Lula repetiu o mantra do comissariado: as roubalheiras foram penalizadas pelos instrumentos que seu governo respeitou. Quebraram empreiteiras desempregando milhares de pessoas e a Lava Jato foi uma operação enviesada. A presença do ex-juiz Sergio Moro na comitiva ilustrava essa acusação. Até aí, cada um acha o que bem entende.

No entanto, o Lula do debate mostrou que não está convencido do que fala. Numa ocasião disse: "Se houve corrupção na Petrobras". Noutra, emendou: "Pode ter havido". Moro foi um juiz parcial, e muitos procuradores agiram como dirigentes de grêmio estudantil, mas a roubalheira estava lá.

O modelito das plataformas estava lá desde o governo de Fernando Henrique Cardoso e ele nomeou Henri Philippe Reichstul para a presidência da empresa para cuidar do caso. Em 2003, com a chegada do PT ao governo, os cuidados acabaram.

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As empreiteiras devolveram R$ 6,17 bilhões como pessoas jurídicas e os malfeitores devolveram mais de R$ 100 milhões como pessoas físicas. Se houve corrupção na Petrobras? Pode ter havido?

Bolsonaro tem nos pés a bola de ferro das centenas de milhares de mortos de um presidente que chamava de "maricas" quem tinha medo da Covid e queria se vacinar. Ele foi além, dizendo numa mensagem de madrugada, que não compraria a vacina chinesa. Orgulha-se de ter comprado o fármaco, mas quem começou a vacinar foi o governador paulista João Doria.

No debate de domingo o capitão mostrou que não tem uma resposta razoável para seu comportamento. Nem Lula para as roubalheiras da Petrobras.

Pouco habituado a debates com adversários, Lula desorientou-se no último bloco do debate, quando Bolsonaro trouxe a Petrobras para a roda, Lula não prestou atenção ao cronômetro. Ambos tinham quinze minutos de crédito. A certa altura o capitão tinha cerca de seis minutos e Lula pouco mais de um minuto. Gastou-o dizendo que em janeiro o capitão iria para casa. Deixou Bolsonaro com cinco minutos e 42 segundos.

Na lógica do futebol, deixou o adversário com o domínio da bola na pequena área. Para seu alívio, Bolsonaro chutou na trave vestindo a camisa da campanha de 2018.

Para quem ainda não decidiu seu voto, um não explicou sua conduta na pandemia e o outro diz que "pode ter havido" corrupção na Petrobras.

Falta a ambos a sabedoria de Juscelino Kubitschek: "Não tenho compromisso com o erro". Isso precisa ser repetido porque eles querem governar o Brasil nos próximos quatro anos.


terça-feira, 18 de outubro de 2022

Da graça no escrever, TEXTOALEXANDRE SOARES CARNEIRO, Jornal da Unicamp

 Harold Bloom perguntava-se: Onde encontrar a sabedoria? Eis outro objeto fugidio: a graça no escrever. Ela está à disposição, naturalmente, dos leitores bem formados; que tenham à mão, por exemplo, uma antologia de textos de Rubem Braga. Mas como capturá-la e colocá-la a nosso serviço? Drummond, outro prosador inigualável, dizia ser possível encontrá-la “mesmo num antigo anúncio de besta perdida”, como expôs em crônica de 1954 (“O anúncio de João Alves). Vendo-a escassa na comunicação corrente (o texto cujas qualidades estilísticas louva é de 1899), ele a surpreende em uma nota de jornal encontrada por acaso. O espírito sopra onde quer.

Autores como Braga e Drummond podem ser fontes de prazer e também de instrução. Ao lado de Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Antônio Maria, Carlinhos Oliveira, Ivan Lessa, eles nos ensinam a valorizar uma ingenuidade virtuosa, a atenção aos efêmeros milagres do cotidiano, que um fraseado acertado pode captar. Seus dons linguísticos podem nos intimidar, mas também nos estimular. Eles vivem, como nós, “ao rés-do-chão”, conforme dizia Antonio Candido.

A leitura admirativa é necessária para quem escreve, mas não é suficiente. Esqueçamos as definições de tipo científico. Uma abordagem puramente analítica é de pouca utilidade. Felizmente, há outros recursos educativos ao nosso alcance. Lembrando que a crônica é herdeira do “ensaio familiar” inglês, como apontou Vinícius de Moraes, notemos que um gênero aparentado, a “carta familiar”, foi bem mapeado por tratadistas clássicos. E de modo particularmente amistoso pelo humanista flamengo Justo Lípsio (1547-1606), em um manual voltado para os iniciantes na arte epistolar.

Ilustração em preto e branco de um homem que aparece da cintura para cima.
Para Justo Lípsio, cartas pedem um estilo coloquial e devem ser orientadas por cinco princípios: “brevidade, clareza, simplicidade, elegância e decoro” (Foto: Google Arts & Culture)

Ali ele caracteriza a carta familiar como aquela cujo tema concerne “às coisas nossas ou em torno de nós, às coisas frequentes na vida”. Elogia sua forma “negligenciada ou inexistente”, como nas conversas, em que apreciamos algo descuidado e desorganizado. Trata-se, claro, de uma “incúria conveniente”, a negligentia diligens sugerida por Cícero, que, como missivista, abunda em hesitações e retomadas, “e de nada parece cuidar mais do que de mostrar que de nada cuidou”. Quanto ao estilo, convém à carta aquele que chama de “coloquial”, orientado por cinco princípios: “brevidade, clareza, simplicidade, elegância e decoro”.

brevidade seria a primeira virtude do estilo, observando-se que, tal como na conversação, “na carta é odiosa a tagarelice”; essa afeta sobretudo os inábeis, sendo os mais loquazes, em geral, os menos eloquentes: “como aqueles mirrados de corpo que o avolumam com as roupas, os destituídos de engenho ou sabedoria derramam-se nas palavras”. Como tornar o estilo breve? Pela observação dos assuntos (“para que nada supérfluo acrescentes, nada repitas”), da composição (evitando os períodos longos) e da linguagem (“que as mais ornadas frases, alegorias, imagens sejam rejeitadas; que tua linguagem seja sóbria e pura”). Quanto à clareza, diz:  “O maior vício do estilo não é ser mal compreendido, mas ser compreendido com dificuldade". Alguns se enganam pela natureza, que lhes produz ideias obscuras; mas há os que o fazem por estudo, e isso afugenta os espíritos comuns. “Estultos! É engenhoso o bastante quem pode ser compreendido por um mero esforço de ingenuidade, especialmente numa carta, que não deve exigir um perito ou um intérprete”.

simplicidade deve prevalecer tanto no pensamento como no estilo. Seguindo o exemplo dos antigos, esse deve ser semelhante ao da conversação diária. Que a carta seja escrita como um diálogo, com palavras cotidianas, e seja ornada sem o parecer. Quanto ao pensamento, deve transparecer no escrito “um certo tipo de simplicidade e delicadeza” que desvende “uma certa candura de espírito livre”; e em nenhum lugar a natureza e a personalidade de alguém transparecem tão bem quanto em uma carta. Assim, “deves salpicar a carta de afável sentimento e boa vontade, como se de açúcar a polvilhasses”.

Com a elegância e o decoro nos aproximamos de nosso ponto principal, os mistérios da escrita graciosa; pois o decoro depende do juízo, a elegância, do talento – e “ambos dispensam os laços das regras”. O estilo é dito elegante quando é, “no geral, leve, vivo e elevado, e revela certa graça cativante e encanto”. Embora seja a elegância “usualmente um dom da natureza”, dois conselhos teriam lugar: primeiro, “deves algumas vezes mesclar provérbios e alusões a antigos ditos ou feitos e trechos de versos ou máximas de sabedoria”; depois, “deves temperá-la oportunamente com gracejos e ditos espirituosos", os quais seriam  “a vida e a alma de uma carta”. Finalmente, o decoro é a adequação à pessoa e ao assunto. Ele é “uma grande mas oculta virtude”. Cícero adverte-nos: "no discurso, como na vida, nada é mais difícil do que ver o que é adequado”. Guia-nos aqui, basicamente, o esprit de finesse.

A abordagem do estilo comporta ainda referências ao léxico e à articulação das palavras. Se essa solicita “elegância e brilho”, no vocabulário o essencial é a correção e a propriedade, qualidades que se extraem da conversação e, sobretudo, da leitura (“as coisas ouvidas não aderem à mente tão bem quanto as lidas”). Mas essa é útil apenas quando suscita a imitação “da adequada forma de nosso estilo, modelada conforme o dos antigos”. Ela então promete “uma crescente colheita de frases e palavras”, convenientemente recolhidas em cadernos de anotações.

O leitor terá percebido as convergências entre a carta familiar e a crônica: coloquialidade,  negligência calculada para produzir o tom ameno, abordagem das coisas “próximas a nós". Não é de se estranhar, visto que o essay britânico está, como a crônica, impregnado do espírito de conversação que anima a arte epistolar.

Drummond elogia, na prosa de João Alves, “a graça no dizer”, mas também a “precisão de termos”, a “moderação”, a “atitude crítica” e finalmente o “amor à tarefa bem feita”: algo que o esforço e o exercício podem favorecer. Não estamos distantes das ponderações de Justo Lípsio. São regras de uma sabedoria prática, orientadas não para a “vida feliz”, mas para a “expressão feliz”, igualmente elusiva e igualmente desejável. E se a graça não nos for dada por acréscimo, que ao menos saibamos evitar a prolixidade, a extravagância vocabular e a arrogância declamatória do textão!

 

Esse texto é um artigo de opinião e não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.