Fica difícil juntar lé com cré ante a notícia de que Jair Bolsonaro venceu a eleição em Manaus. Mas o desnorteio não para por aí. Nos 20 municípios de maior mortalidade pela Covid, Bolsonaro ganhou em 15. Levantamento do Valor Data mostra que se a eleição tivesse se restringido aos 194 municípios com mortalidade por Covid acima da média, o presidente estaria reeleito no primeiro turno. Neste colégio eleitoral, ele alcançou 66% dos votos, enquanto Lula, 44%.
Que país é esse? A frente ampla que, finalmente, começa a se formar em torno de Lula neste 2ª turno não deveria adiar as respostas. É um país que já não aguentava as máscaras, diz um, e já esqueceu a mortandade, diz outro. Certamente não é aquele previsto até por governistas onde cada morto produziria 100 enlutados de oposição, entre amigos e parentes. Fosse assim, Lula teria tido 68,6 milhões de votos e estaria eleito, com folga, no 1º turno.
O recado da vitória de Bolsonaro onde a pandemia mais matou
Se foi CPI da pandemia que pavimentou a candidatura da senadora Simone Tebet à Presidência, o espaço conquistado deveu-se mais ao desempenho esclarecido e destemido na campanha, confirmado ontem na recusa à neutralidade no 2º turno.
O reprise das cenas em que Bolsonaro imita um paciente terminal, zomba da vacina e dos coveiros da Covid certamente elevaram sua rejeição. Mas o tema não reverberou como se apostava. Há muitos recados no 1º turno, mas um deles parece ter sido o de que há uma parcela expressiva da população que rejeita o Estado-cerceador.
Não é apenas o “fique em casa que a economia a gente vê depois” que tem aderência, mas a percepção de que o Estado, ao regulamentar, fiscalizar e multar restringe a capacidade de as pessoas batalhar pela sobrevivência. Isso não é fascismo, mas uma visão libertária derivada de fracassos na mediação do bem comum.
Não é preciso fazer concessões à extrema direita para entender isso. Ignorar as motivações de 51 milhões de eleitores não dificulta apenas a obtenção de seu voto, mas também transforma a tarefa de governá-los e bem informá-los numa pedreira.
Bolsonaro abriu a maçaneta que tirou essas motivações do armário e não vai ser fácil encontrar a chave para recolocar cada coisa em seu lugar. Muitos dos motociclistas multados por dirigir sem capacete passaram a alegar, em seus recursos, que o presidente da República tampouco o faz.
Nos grupos qualitativos que acompanhou ao longo da campanha, Esther Solano testemunhou a reprise do discurso de Bolsonaro em pessoas que se viram cerceadas em seu direito de sair de casa para trabalhar com liberdade pelo ganha-pão da família.
A mesma intransigência pelo direito de sair de casa parece se aplicar a quem nela pode entrar. Entre as agruras enfrentadas pelos recenseadores do IBGE está a recusa da população a recebê-los e a responder a um questionário que inclui até o CPF.
O mote “da minha vida cuido eu”, que, na pandemia, abreviou a carreira política de João Doria e, por tabela, tirou seu sucessor do 2º turno em São Paulo, ainda invadiu a percepção sobre outra política pública civilizatória, as câmeras nos uniformes policiais.
A posição de Tarcísio Freitas, frontalmente contrária às câmeras, não o impediu de passar à liderança na disputa. Os 9,8 milhões de votos obtidos pelo candidato bolsonarista em São Paulo demonstram que não se trata de uma cultura restrita aos clubes de caçadores, atiradores e colecionadores.
Se as câmeras, comprovadamente, reduzem a letalidade policial e, por isso, precisam ser mantidas, lideranças comunitárias nas redes sociais se manifestaram contrariamente à iniciativa durante a campanha por desconfiarem de seu uso contra a população negra e periférica.
Essa cultura do empreendedorismo anti-Estado se manifestou no arrastão bolsonarista dos palanques estaduais e proporcionais. E ainda em estados como Minas, governado pelo mesmo espírito, vide a reeleição de Romeu Zema, o comerciante-governador que encarna o Estado e sua negação, do confinamento à revogação da reforma trabalhista.
Essa validação de uma coisa e de seu contrário invadiu a composição da Câmara, onde tanto aumentou a bancada dos sem-terra quanto a da bala. Entre os dois extremos, proliferou o pântano dos sócios do bolsonarismo, de olho na estatização dos seus prejuízos.
Se em Minas esse espírito não impediu que Lula ganhasse, é em São Paulo que se levanta um paredão contra o PT, sobretudo no interior, cujos votos se sobrepuseram aos da capital e selaram a derrota tanto de Lula quanto de Fernando Haddad.
O repúdio vai do grande empresário que resiste a abrir mão de bilionárias renúncias fiscais a pequenos e médios empreendedores que veem no petismo a tríade regulamentar, fiscalizar e multar.
O empréstimo consignado aos beneficiários do Auxílio Brasil, regulamentado às vésperas do 2º turno, quis incutir o espírito do empreendedorismo em quem só tem a miséria como caução.
Na adesão a Lula, com um discurso que há muito não se via na política, uma das cinco propostas de Simone foi a da bolsa-empreendedorismo para alunos do ensino médio. É pouco, mas sinaliza uma reinvenção de quem entrou no jogo a partir da pandemia. A consolidação da vantagem lulista neste segundo turno passa mais por encontrar sua pegada no tema do que pela cilada dos costumes.
Maria Cristina Fernandes é jornalista do Valor. Escreve às quintas-feiras
E-mail: mcristina.fernandes@valor.com.br