quarta-feira, 3 de março de 2021

Alvaro Costa e Silva - A Copacabana dos velhinhos está de volta, FSP

 Alguém deve se lembrar de "Cocoon". Lançado em 1985, fez sucesso, teve uma continuação, deu um Oscar de ator coadjuvante a Don Ameche, volta e meia reaparece numa vadia sessão da tarde. No streaming, como acontece a qualquer filme com mais de 30 anos, é considerado um "clássico".

Valendo as etiquetas das antigas locadoras de vídeo, é uma comédia dramática, com toques de ficção científica: extraterrestres têm a missão de resgatar casulos que estão na piscina de uma casa abandonada. Sem desconfiar de nada, três aposentados que vivem num asilo da Flórida banham-se nela e descobrem, na água energizada, a fonte da juventude. Da noite para o dia, os velhinhos tornam-se brotinhos, fazendo de novo todas as estripulias de que sentiam saudade.

Um bairro do Rio, hoje, é um cenário real de "Cocoon": Copacabana, com a maior concentração de idosos do país (quase um terço dos moradores tem mais de 60 anos) e que, no ano passado, chegou a liderar na cidade o número de casos de mortes pela Covid-19. À medida que a vacinação avançar, eles deixarão o casulo dos apartamentos. Não só para ir ao posto de saúde como para retomar suas atividades --a maioria usando máscara e respeitando o distanciamento social.

Elegantes, perfumadas, algumas com os cabelos pintados de um azul suave, as mulheres voltarão a trabalhar (sim, muitas ainda trabalham em pequenos negócios no bairro), irão às compras e à missa, visitarão as amigas, os filhos e os netinhos. Menos vistosos, os homens jogarão peteca e irão caminhar no calçadão com o seu uniforme: óculos de sol, tênis, sunga, capanga. Sem camisa, para reaver o bronze perdido. Ao fim do passeio, matarão a sede com chope ou água de coco.

Não vacinar e sabotar a imunização —como o governo Bolsonaro se esforça em fazer— impede que a vida se restabeleça. Pior: permite que ela seja interrompida para sempre.

Zagallo é vacinado contra a Covid-19 no Rio de Janeiro. - TV Globo/Reprodução
Alvaro Costa e Silva

Jornalista, atuou como repórter e editor. É autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro".

Ruy Castro Sem limites morais ou humanos, FSP

 Na sexta-feira última (26), Jair Bolsonaro foi na mosca ao escolher o Ceará para cometer novos crimes contra a vida, induzindo o país a ignorar o isolamento, aglomerar-se nas ruas e não usar máscara. O Ceará é um dos estados em escuro no mapa, em que a taxa de ocupação das UTIs passa de 90%. Significa que muitos de seus apoiadores cearenses —ou os pais ou mães deles—, eventualmente apanhados pela Covid, podem estar morrendo na porta do hospital por falta de leito.

Vindo de um presidente da República, tal atitude só seria natural num irresponsável. Mas Bolsonaro sabe o que faz —o que tem a ganhar com isso é mais importante. Suponha que tal convite à insubordinação, assim como suas mentiras, seu poder corruptor e sua truculência, faça parte de uma estratégia anterior a ele, já provada vitoriosa.

Há mais de 50 anos, outro governante rompeu com seu partido, traiu os aliados e dedicou-se a desmoralizar o Congresso, o Judiciário e até as Forças Armadas. Esvaziou também a ciência, o ensino, a segurança pública e a própria administração e exortou seus seguidores a exercer a chamada democracia direta, através de grupos paramilitares livres para atuar. Esse governante —o "mito" que garantia tamanho caos— se chamava Mao Tsé-tung. E essa política foi a Revolução Cultural, que, enquanto durou, de 1966 a 1976, praticou toda espécie de violência em nome da "verdade".

Bolsonaro está cumprindo à risca esse plano, que não conhece limites morais ou humanos. Seu objetivo é o poder absoluto, e, para isso, corrompe e paga bem os que lhe são úteis --enquanto lhe são úteis. Virada a página, Bolsonaro os abate e abandona na estrada, donde os de farda, terno ou toga que se julgam seus aliados por ideologia preparem-se para surpresas. O poder só é poder se absoluto.

Mao morreu em 1976, aos 82 anos, e a Revolução Cultural acabou. Nem o poder absoluto é eterno.

Mao Tsé-Tung conversa com jovens chineses em 1969 - Reprodução
Ruy Castro

Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Cientistas se esqueceram de combinar com Darwin, FSP

"Já é hora de fechar o livro das doenças infecciosas e declarar ganha a guerra contra a pestilência". A frase, que teria sido cunhada no final dos anos 60, é atribuída a William Stewart, que ocupava então o posto de cirurgião-geral dos EUA. Ele, porém, nunca a proferiu.

Pelo contrário, Stewart tentava combater o excesso de otimismo que os novos antibióticos despertavam na classe médica. Muitos estavam convencidos de que, com as novas classes de antimicrobianos desenvolvidas entre os anos 40 e os 60, o controle das infecções seria questão de tempo.
Esqueceram-se de combinar com Darwin. A resistência de bactérias a antibióticos e os mecanismos usados por vírus para evadir a resposta de sistemas imunes (e de vacinas) são fenômenos previstos pela seleção natural.

A base de tudo é a mutação. Mutações são essencialmente erros de cópia. A esmagadora maioria é letal ou neutra para o organismo. Uma fração delas --e seria tentador chamá-las de erros que deram errado virando um acerto-- lhes confere alguma vantagem competitiva, que tende então a fixar-se na população.

Os números não jogam a nosso favor. Se as gerações humanas se sucedem em pares de décadas, as de vírus e bactérias podem vir em horas. E cada humano doente carrega bilhões de patógenos. No caso da Covid-19, um infectado sintomático traz entre 104 e 107 cópias do vírus por mililitro de sangue. Um adulto tem entre 4,5 e 5,5 litros de sangue, e, obviamente, não é só nesse fluido que o vírus se aloja.

A moral da história é que, com tantas partículas virais se reproduzindo em intervalos tão curtos, se houver a possibilidade matemática de mutação que confira vantagem reprodutiva, ela acabará ocorrendo. E quanto mais gente doente houver na população, mais rápido ela virá.

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Espero que a alta de casos no Brasil já seja resultado das variantes mais infecciosas, porque, se não for, a coisa ainda vai piorar muito.

Hélio Schwartsman

Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".