sábado, 5 de dezembro de 2020

Piketty, Paulo Guedes e os nomes dos bois, João Gabriel de Lima, O Estado de S.Paulo


05 de dezembro de 2020 | 03h00

Talvez não seja o caso de convidar Thomas Piketty, herói da esquerda mundial desde que publicou o livro O Capital no Século XXI, e Paulo Guedes, ministro da Economia do governo Bolsonaro, para a mesma mesa de bar. Se a mesa for de debates é outra coisa. Em 2014, os dois participaram de um evento na Universidade de São Paulo. Piketty viera ao Brasil lançar o livro que o tornou famoso. Paulo Guedes nem sonhava (pensando bem, sonhava sim) em ser ministro da Economia.

Em um momento do debate, Piketty, naquele inglês charmoso (e às vezes incompreensível) de que só os franceses são capazes, defendeu apaixonadamente a cobrança de um imposto sobre heranças. Em sua vez de falar, Paulo Guedes endossou a tese. O esquerdista e o liberal concordaram mais que discordaram, surpreendendo a plateia. 

Lembrei-me do episódio neste momento em que o Brasil discute orçamento e uma reforma tributária. A conversa exclui a maior parte dos cidadãos por causa da linguagem excessivamente técnica, um emaranhado de números e siglas. O debate poderia ser mais inclusivo se os contendores, sem abrir mão da complexidade dos temas, dessem nomes aos bois (o economista Bernard Appy, colunista do Estadão e ex-integrante do governo Lula, é uma exceção por sua clareza. Ele é o personagem do minipodcast da semana).

Os cidadãos de um país entregam parte de seu dinheiro aos governos – o nome disso é imposto. Os políticos decidem onde o dinheiro será utilizado – isso se chama orçamento. Tais políticos são escolhidos pelos cidadãos, de forma a agir de acordo com o pensamento da sociedade – a isso se chama democracia.

Como o dinheiro dos cidadãos não cobre todas as despesas, é necessário fazer escolhas – isso se chama conflito distributivo. Os cidadãos preferem que seu dinheiro seja investido em hospitais ou na JBS de Joesley Batista? Gostariam que os recursos financiassem escolas ou aposentadorias de juízes e desembargadores?   

No Brasil, seria pedagógico se esses conflitos ficassem mais claros para todos. Em Portugal, onde moro, os debates sobre orçamento e tributos são assunto recorrente nos telejornais. A isso se chama cidadania.

Se falta dinheiro, seria o caso de cobrar mais dos cidadãos? Se sim, todos concordam – e aí entra a conversa entre Piketty e Paulo Guedes – que os ricos devem pagar mais. Quanto dinheiro, no entanto, seria possível gerar com impostos sobre heranças ou dividendos? No Brasil, tem-se como certo que tal valor resolveria todos os problemas. Falta aquilo que se chama matemática – um ponto fraco em nosso debate público.

Expurgada das siglas, a discussão tributária pode ser fascinante, além de essencial. Se Piketty e Paulo Guedes conseguem conversar sobre o assunto, por que não nós? Estive algumas vezes com Paulo Guedes como jornalista. Anos depois do debate na USP, entrevistei Piketty no palco, no âmbito do projeto “Fronteiras do Pensamento” – e a conversa, ótima, evoluiu para um jantar com seus editores brasileiros.

A impressão que guardo dos dois: Guedes e Piketty adoram debater com quem pensa diferente (mesmo que alguns no governo chamem impropriamente de “detratores” os que discordam, legitimamente, do ministro da Economia). Na falta do debate inteligente, os fracos de argumentação preferem se recolher em bolhas, esquerdas de um lado, direitas do outro. A isso se chama obtusidade – termo difícil de conciliar, na mesma frase, com a palavra democracia. 


Sérgio Augusto Conteúdo Exclusivo para Assinante Home office, oesp

 Sérgio Augusto, O Estado de S.Paulo

05 de dezembro de 2020 | 03h00

Tenho o hábito de, vez por outra, postar no Twitter a capa da revista The New Yorker da semana. É sucesso garantido. Mas repercussão igual à obtida pela capa de sua primeira edição deste mês nunca tinha visto. Só no meu perfil, quase 250 mil impressões em dois dias. Um fenômeno de identificação. 

Facilmente explicável: a capa é sobre todos nós em situação de quarentena. E, mais especificamente, todos nós em home office. 

O cartunista e quadrinista Adrian Tomine, californiano de 46 anos, sintetizou a presente clausura doméstica numa jovem sentada diante de um notebook, provavelmente num pequeno apartamento de quarto-sala-banheiro de Manhattan ou Brooklyn. Ela veste um short preto (Umbro) e blusa branca, calça chinelos, tem um celular na mão esquerda e um drinque (prosecco rosé?) na direita. O cenário à sua volta é que dá o clima. 

No armário, um CD player guardado. Espalhados pelo chão, livros, uma caixa de compras da Amazon, uma sacola, luvas e máscaras sanitárias descartadas, um frasco de álcool em gel, um tupperware, dois pequenos halteres, dois gatos. Ou seja, o básico de sobrevivência de uma pessoa civilizada no inferno em vida a que fomos condenados em 2020. 

Resisto à tentação de especular sobre a moça além do que as aparências indicam: jovem, bonita e moderna. Grande sacada detalhista do ilustrador: as pernas mal depiladas da isolada senhorita. Isolada em seu novo local de trabalho, o inevitável home office. Tomine deu a seu desenho o irônico título de “Love Life” (Vida amorosa). 

A imensa maioria das pessoas forçadas a trabalhar de casa reagiu com justificável estranheza à nova situação, que muitos, por sinal, invejavam à beça antes da pandemia. Sou home office desde o começo da década de 1970, quando larguei a redação da revista Fatos & Fotos para ser livre como um pássaro, sem no entanto perder a chamada “carteira assinada”, com todos os direitos assegurados pela CLT de saudosa memória – mesmo nos ditos órgãos nanicos, como Pasquim Opinião, a cujas redações, ambas perto de onde então morava, ia duas ou três vezes por semana, para editar algumas páginas e sobretudo fazer chacrinha. 

A princípio, me invejavam e indagavam sobre como conseguia administrar meu tempo, superar a ausência do “calor da redação”, evitar a dispersão, manter distância da geladeira, etc. Disciplina, respondia. Por falar em calor, no verão os free lancers sentem mais a diferença, pois o ar refrigerado fica, como a luz, por nossa conta exclusiva.

Há oito meses, no dorso da pandemia, o trabalho remoto tornou-se a regra, o consuetudinário do presente e, asseguram, do futuro. Era inevitável. Para mim, desde o surgimento da internet e do celular, esses engenhos que nos libertam de um monte de limitações, mas, em contrapartida, nos atrelam, como grilhões, ao batente e outros compromissos que preferíamos evitar. Sempre acessáveis, perdemos a paz, sacrificamos o descanso. Home office é sinônimo de full time. Ou de plantão permanente.

O fato, porém, é que os espaços ocupados por redações e escritórios já podiam ter sido convertidos em apartamentos residenciais antes da covid-19. The Economist desta semana pergunta se, quando os escritórios forem reabertos, os empregados toparão voltar. Com as atuais taxas de desemprego, até quem era freelancer é capaz de pedir para voltar.

Tenho lido bastante sobre o assunto. Na mais recente edição da Columbia Journalism Review, Ruth Margalit publica extensa matéria sobre o que se perde e ganha caso as redações se mantenham fechadas para sempre. Se para mim não faz diferença, muitos colegas de profissão não veem a experiência com bons olhos. Queixa mais frequente: a enfadonha mesmice ambiental e a necessidade de interação física com alguém, ainda mais premente para quem mora sozinho. 

Para a maioria consultada, a sensação é de que o tempo agora anda mais rápido, e de que, mesmo descontado o acúmulo de chatices imposto pelo isolamento (higienizar as compras, limpar a casa, etc.), estamos trabalhando mais do que antes da pandemia. 

Quando o isolamento social for suspenso em definitivo, o trabalho centralizado terá de ser repensado. Ele perdeu sentido e é antieconômico. 

Penso nas empresas que investiram fortunas alugando, comprando e remodelando andares inteiros ou mesmo prédios para concentrar todos os seus empregados e melhor vigiá-los. A pulverização desses espaços em pequenos núcleos espalhados por diversos lugares, integrados por um circuito de comunicação eletrônica – nove fora os serviços do Zoom – e alcançáveis a pé por quase toda a equipe, é a solução com maior número de adeptos. O meio ambiente agradece.

Se bem que um tanto desatualizada pelo “novo normal”, continua leitura enriquecedora a história do que chamamos de “locais de trabalho” contada por Nikil Saval e publicada seis anos atrás, com o título de Cubed – de cubículo (ou baia, no jargão da velha editora Abril). Não é um tratado sociológico comparável ao seminal ensaio de C. Wright Mills, A Nova Classe Social, mas reflexão sofisticada o bastante para saciar a possível curiosidade dos aficionados de Bartleby, Dilbert e da telessérie The Office sobre a origem e a evolução do trabalho em escritório. 

“O ser humano não foi criado para viver num cubículo, mirando uma tela de computador”, critica Sakal, com quem também aprendi que a palavra “office” deriva do italiano “uffizi” e é de origem florentina. Era na Galeria degli Uffizi que se fazia e guardava a contabilidade mercantil dos Médici, no século 16.

É JORNALISTA E ESCRITOR, AUTOR DE ‘ESSE MUNDO É UM PANDEIRO’

Análise: Reeleição no Congresso, pode ou não pode?, OESP

 Joaquim Falcão*, O Estado de S.Paulo

05 de dezembro de 2020 | 04h00

Podem Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre se reelegerem? Esta não é uma pergunta. São duas. A primeira diz respeito ao conteúdo. Reeleição ou não? A segunda, quanto ao processo. Se optarem pela reeleição, como fazer? Aqui mora o problema. Mudar qualquer palavra ou vírgula da Constituição só através de emenda constitucional. Só Constituição muda Constituição. Na ditadura, regimento mudava a Constituição. Agora, não mais. 

E a Constituição diz que é “vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente.” 

Mas será que os partidários da reeleição têm os 308 votos na Câmara e 49 no Senado necessários para tanto? Provavelmente, não. Enquanto a mudança constitucional não ocorrer, não podem ser reeleitos. A não ser que mantenham as palavras da Constituição, mas mudem seu significado. Através da interpretação do Supremo. Eureka! Eis mágica do dia. 

STF
Nuvens carregadas sobre a sede do Supremo Tribunal Federal (STF), na Praça dos Três Poderes, em Brasília Foto: Dida Sampaio/Estadão

Em vez de precisar de 357 votos, precisa-se apenas de seis votos no Supremo. Bem mais palatável. O que está escrito “não” passa a significar sim. Onde a Constituição escreve “é vedada a recondução”, leia-se é permitida a reeleição. Ministros podem tudo? Mesmo dessignificar as palavras? O intérprete se apropria do poder de quem escreveu as palavras, como diz Byung-Chul Han. Interpretar a Constituição é, pois, briga de poder. Interna: entre os ministros. Externa: entre os Poderes. Não faz muito tempo, o presidente Bolsonaro, em frente aos quartéis disse: “Eu sou realmente a Constituição”. Alguns ministros pensam que a Constituição são eles? A briga política dentro do Congresso se traduz como briga política no Supremo. Em vez de espadas ou metralhadoras, brigam doutrinas jurídicas. Tradicionais, neoinventadas ou feitas sob medida. 

Há um mal-estar no ar. O Supremo pautou a decisão no silêncio pós-eleitoral. Pautou no plenário virtual, onde o público e a mídia não veem. E não no plenário comum. O Congresso se faz de omisso. Como se a responsabilidade não fosse sua. É como se não quisesse, querendo, aval prévio para uma inconstitucionalidade clara. 

Não se trata de julgar Maia ou Alcolumbre. São dois congressistas respeitados. Trata-se da mensagem deslegitimizadora para os eleitores. O maior objetivo do poder é continuar do poder. Quem sai ferida é a democracia. Alguns ministros já estão divergindo. Vamos esperar. 

*PROFESSOR DA FGV DIREITO RIO