quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Maior legado de Schroder é o resgate da credibilidade do jornalismo da Globo, FSP

 O processo de reestruturação interna do Grupo Globo está em curso desde, pelo menos, 2014. O projeto “Uma Só Globo” fundiu departamentos, eliminou cargos sobrepostos e mexeu em todos os organogramas. A parte mais visível para o público foi o fim dos contratos de longo prazo com grandes estrelas. Só neste ano, deixaram a emissora figurões como Tarcísio Meira, Glória Menezes, Antonio Fagundes, Miguel Falabella, Vera Fischer e Renato Aragão.

As demissões em massa também atingiram a alta cúpula. Em breve, nomes como Silvio de Abreu, que comandava o setor de dramaturgia, e Mônica Albuquerque, uma espécie de super-RH, responsável pelo relacionamento com os muitos talentos da casa, não farão mais parte do quadro de diretores. A razão principal para a saída de todos, comenta-se nos bastidores, não tem a ver com competência profissional ou alterações de rota. Trata-se, simplesmente, do bom e velho controle de custos: os salários em questão eram altíssimos.

De todas as substituições, a de maior impacto será a de Carlos Henrique Schroder, diretor-geral da TV Globo desde 2013. Aparentemente, trata-se de uma transição pacífica. Um comunicado oficial da empresa assegura que já estava acertado há anos que Schroder deixaria o cargo em 2020, e que ele até permanecerá por mais tempo do que o combinado, saindo apenas em meados de 2021. Mas fontes internas afirmam que esse desligamento foi, na verdade, antecipado por causa da pandemia e da queda de receitas publicitárias, que afeta todos os canais abertos.

Schroder sempre foi uma pessoa discreta e pouco frequente nas páginas de jornais, apesar de ter namorado a atriz Patrícia Pillar. Mas sua gestão deixou marcas profundas, reposicionando a Globo de maneira a enfrentar as muitas mudanças por que passa a televisão como negócio.

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Um grande desafio foi manter funcionando a todo vapor o carro-chefe da emissora, as novelas. O declínio do gênero, tantas vezes anunciado, pareceu se concretizar em meados da década passada, com o fiasco de audiência de títulos como “Geração Brasil” (2014) ou “Babilônia” (2015). O segmento mais jovem se mostrava mais interessado nas séries, em detrimento dos folhetins tradicionais. Sob o comando de Schroder, Silvio de Abreu conseguiu lançar dezenas de novos autores, aposentar alguns veteranos e emplacar grandes sucessos.

Tudo isso sem descuidar das séries, que tiveram suas produções aceleradas –também em função de gerar conteúdo exclusivo para a plataforma Globoplay, a maior aposta do grupo. Este ímpeto teve um benefício inesperado: quando a quarentena impediu novas gravações, a Globo tinha bastante material inédito para por no ar, como as séries “Hebe” ou “Aruanas”.

Uma onda progressista permeou todas as faixas horárias. “Amor e Sexo”, um programa que já existia antes da gestão Schroder, tornou-se um libelo pelos direitos das mulheres e das minorias sexuais. Sob Marcius Melhem, o humor se livrou das amarras que o impediam de satirizar a concorrência ou os anunciantes, e adquiriu tons mais intensos de crítica política.

Mas o maior feito de Schroder, na minha opinião, foi a recuperação do jornalismo da emissora. Jornalista de formação –e o primeiro profissional do setor a comandar a TV Globo, que nasceu de um jornal– o futuro ex-diretor-geral deu a Ali Kamel, que o substituiu em 2013 na direção da área de jornalismo e esportes, as condições para produzir noticiários mais equilibrados. Com profundidade e contundência, mas sem deixar de serem acessíveis a todas as faixas do público.

A Globo minou sua própria credibilidade com episódios como a edição do debate do segundo turno das eleições presidenciais de 1989, que claramente beneficiava o então candidato Fernando Collor de Mello. Também demorou a dar visibilidade à campanha pelas Diretas-Já, em 1984, e tentou interferir na apuração da eleição para governador do Rio de Janeiro, em 1982, no chamado escândalo Proconsult.

Nenhum profissional dessas épocas continua na casa, mas o estrago foi imenso. Pavimentou o caminho para que os incomodados com o jornalismo da Globo, tanto à esquerda como à direita, apelidassem a emissora de "Globolixo".

Carlos Henrique Schroder e Ali Kamel conseguiram reverter boa parte desse dano. Isto não quer dizer que a Globo seja absolutamente imparcial –nenhum veículo é. Distorções continuam a acontecer, como uma certa proteção incondicional ao ex-juiz Sérgio Moro e à Operação Lava Jato.

Mas o jornalismo da emissora é hoje, de muito longe, o melhor da TV brasileira. Enquanto isto, SBT, Record e RedeTV! competem para ver quem puxa mais o saco do governo.

Investindo pesadamente no streaming e reformulando suas práticas internas, a Globo também é a mais preparada de todas para se adaptar ao futuro. Que, aliás, como diz a musiquinha, já começou.

Foto de Tony Goes

tony goes

Tony Goes tem 60 anos. Nasceu no Rio de Janeiro, mas vive em São Paulo desde pequeno. Já escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. E atualiza diariamente o blog que leva seu nome: tonygoes.com.br

'Cercados', documentário coloca no espelho noticiário jornalístico na pandemia, FSP

 SÃO PAULO

O quê, quem, quando, como, onde e por quê são as perguntas básicas a serem respondidas por um jornalista no dia a dia da profissão.

Caso o jornalista em questão seja Ricardo Villela, diretor-executivo de jornalismo da TV Globo, e caso o dia em questão seja o da divulgação do vídeo de uma reunião ministerial, adiciona-se uma sétima pergunta: "Ricardo, ‘bosta’ a gente bota pi ou não?".

"Não, 'a bosta da Folha' não", responde Villela, sabendo a qual frase do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) a colega de Redação referia-se.

O diálogo é um exemplo dos registros de bastidor do noticiário presentes no documentário "Cercados - A Imprensa Contra o Negacionismo na Pandemia".

O filme, que estreia no Globoplay nesta quinta-feira (3), oferece ao espectador um ângulo inédito para as cenas que marcaram a cobertura do coronavírus.

O presidente Jair Bolsonaro reclama de manchete da Folha diante de jornalistas no Alvorada
O presidente Jair Bolsonaro reclama de manchete da Folha diante de jornalistas no Alvorada - Pedro Ladeira/Folhapress

Quando uma pane interrompe a transmissão da abertura do Jornal Nacional, por exemplo, uma equipe de filmagem do documentário estava no switcher, a sala de controle das câmeras, e flagrou o espanto dos operadores.

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Em outra ocasião, a câmera registra o momento em que um videorrepórter da TV Ceará, afiliada da TV Cultura e da EBC, recebe áudios de seus familiares sobre o agravamento do quadro clínico do avô, internado com Covid-19.

O documentário acompanha profissionais de diferentes meios e veículos, mas com a TV Globo em papel de destaque.

Em uma reunião de pauta do JN de maio, o espectador observa William Bonner relatar cansaço pela carga de trabalho e criticar o tom que ele mesmo adotara para uma notícia do dia anterior. "Tinha um tom condenatório na minha voz", diz Bonner.

A notícia em questão era sobre a falta de respiradores em hospitais do Amazonas e trazia o caso de médicos que improvisaram um respirador com um saco plástico para um paciente.

"Poderia ser um esforço heroico para salvar uma vida [...] Eu não tive a oportunidade de enxergar isso com clareza", diz o apresentador.

"Cercados" não se restringe ao noticiário da questão sanitária da pandemia, "até porque as coisas se misturaram muito", afirma o diretor Caio Cavechini, que recentemente dirigiu uma série documental sobre Marielle Franco, também para o Globoplay.

Para abarcar a crise política, o filme acompanha repórteres em Brasília, entre eles Ricardo Della Coletta, da Folha, nas entrevistas coletivas de Bolsonaro na portaria do Palácio da Alvorada, a residência oficial da Presidência.

O título do filme, inclusive, faz alusão ao "cercadinho", como é conhecido o espaço destinado aos profissionais da imprensa no local.

No dia 25 de maio, três dias após a divulgação da íntegra dessa reunião ministerial, veículos como TV Globo e Folha suspenderam temporariamente a cobertura no local por falta de segurança, após uma série de hostilidades por parte dos apoiadores do presidente aos jornalistas.

"Foi um dia que eles passaram de todos os limites", diz no documentário Ali Kamel, diretor-geral de jornalismo da Globo.

Kamel conta que, na ocasião, ligou para João Roberto Marinho, presidente do conselho editorial do Grupo Globo, e recebeu o aval para cessar a cobertura no Alvorada.

"Cinco minutos depois de divulgar a matéria [sobre a suspensão], a Folha também divulgou que estava saindo, mas não foi nada combinado."

Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro ofendem profissionais de imprensa diante do Palácio da Alvorada nesta segunda-feira (25)
Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro ofendem profissionais de imprensa diante do Palácio da Alvorada nesta segunda-feira (25) - Pedro Ladeira - 25.mai.20/Folhapress

"Cercados" está longe de ser um documentário de entrevistas, mas traz também depoimentos de diretores e editores-executivos dos principais jornais do país.

Em meio a tomadas das Redações vazias, eles explicam as peculiaridades desta cobertura, da dificuldade de dimensionar uma tragédia com um saldo de óbitos tão grande ao desafio do combate às fake news.

"Em uma pandemia, você se informar com fake news pode custar sua vida", diz no filme Sérgio Dávila, diretor de Redação da Folha.

A narrativa do documentário segue uma ordem cronológica , "com algumas subversões", lembra Cavechini, diretor do longa.

Vai da presença do presidente Bolsonaro em atos antidemocráticos, em março, até a chegada à marca de 100 mil mortes pela Covid-19 no país, em agosto.

O período mais intenso das filmagens próprias, porém, foi de abril a julho, quando a produção do filme chegou a ter equipes acompanhando jornalistas simultaneamente em cinco diferentes cidades pelo Brasil, quase todos os dias.

"Queria um documentário de vivência em tempo real e não uma reflexão a posteriori", diz Cavechini. Somados, os registros de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Manaus e Fortaleza totalizam 400 horas de gravação.

CERCADOS - A IMPRENSA CONTRA O NEGACIONISMO NA PANDEMIA

  • Quando Estreia quinta-feira (3)
  • Onde Globoplay
  • Direção Caio Cavechini
  • Duração 1h54