quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Gigantes da pecuária do Brasil compram gado direto de fazendas ilegais, diz investigação de ONG, FSP

 Uma investigação da ONG britânica Global Witness afirma que JBS, Marfrig e Minerva, os maiores frigoríficos brasileiros e entre os principais do mundo, têm comprado gado ao menos nos últimos três anos de fazendas com desmatamento ilegal no Pará. A Folha teve acesso à investigação, que durou cerca de um ano.

Os frigoríficos negaram irregularidades à Global Witness.

Junto à entidade brasileira Imazon, a ONG diz ter tido acesso a todas as guias de trânsito animal das empresas em questão de 2017 a 2019 no estado do Pará. Esse documento é necessário para que o gado seja transportado entre fazendas e delas para o abatedouro. Geralmente, os frigoríficos verificam se há irregularidades ambientais ou sociais na fazenda da qual recebem diretamente o gado.

Com as guias em mãos, foi possível verificar por quais fazendas o gado comprado pelos frigoríficos passou. As entidades, então, cruzaram as informações dos guias de transporte com o desmatamento ilegal registrado pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e com autorizações de derrubada da mata —cada propriedade amazônica pode desmatar até 20% de sua área, se tiver aval para isso.

Após o cruzamento de dados, os investigadores verificaram os desmatamentos ilegais ocorridos nas fazendas que fizeram parte da cadeia dos maiores frigoríficos do país nos últimos anos.

A investigação aponta que a JBS comprou gado diretamente de 327 fazendas nas quais ocorreu desmatamento ilegal no período considerado. A Marfrig comprou de 89 e a Minerva de 16.

Com base nesses dados, a ONG afirma ter detectado mais de 17 mil hectares de desmatamento em fazendas que fornecem diretamente gado para essas empresas. Levando-se em conta os fornecedores indiretos, seriam mais de 116 mil hectares.

Gado passando por porteira na fazenda São José, em São Félix do Xingu, no Pará
Fazenda em São Felix do Xingu que teve desmatamento ilegal e vendeu gado para grandes frigoríficos - Christian Braga/Greenpeace

“Isso é apenas em um estado da Amazônia. Se esse tipo de investigação fosse replicada na Amazônia inteira e no cerrado, seria esperado que as empresas de carne bovina tivessem ligações com o desmatamento muito piores”, afirma Chris Moye, pesquisador-sênior da Amazônia da Global Witness.

Considerando fornecedores diretos e indiretos, a JBS responde pela maior parte do desmatamento detectado, segundo os dados analisados pelo Imazon e pela ONG britânica.

“As empresas de carne bovina concordaram em monitorar os fornecedores indiretos há quase uma década, mas só agora estão começando a fazer algo a respeito disso. Mesmo assim, estão atrasando o cumprimento total por mais quatro ou cinco anos”, diz Moye.

Um dos locais analisados pela investigação foi São Félix do Xingu, lar do maior rebanho bovino do país. Segundo os dados cruzados pelo Imazon, de 2017 a 2019 a JBS comprou gado de 109 fazendas no município nas quais ocorreu desmate ilegal.

Uma delas foi a fazenda El Shadai. A análise mostra que, nos anos considerados, a JBS adquiriu 1.526 bois da fazenda em questão. Enquanto isso, o Imazon detectou 44 hectares de desmate ilegal de 2015 a 2016 e, em 2017, o Ibama embargou a fazenda pelo desmate de 112 hectares.

A Marfrig tem pelo menos um exemplo de compra de gado proveniente de área com desmate ilegal recente em São Félix do Xingu. Trata-se da fazenda MD, na qual houve desmatamento ilegal e embargo do Ibama. Mesmo após o embargo, a empresa voltou a comercializar gado da fazenda em questão, aponta o relatório.

O documento também cita possível contaminação da cadeia produtiva da Marfrig por gado criado na terra indígena Apyterewa, o que é ilegal. Os bois posteriormente seriam levados para a fazenda Serra de Pedra, em uma espécie de lavagem de gado, que fornece para a Marfrig.

Já no caso da Minerva Foods, a relação com o desmatamento ilegal é exemplificada pelas compras diretas da fazenda São Vicente, onde foram registrados 170 hectares de desmatamento não autorizado. Além disso, essa fazenda foi abastecida de 2016 a 2019 por ao menos dez outras propriedades com 264 hectares de desmate —duas das fazendas com embargos do Ibama, segundo a investigação.​

As principais empresas de gado brasileiras têm compromissos de não comprar animais de fazendas envolvidas em crimes ambientais ou com trabalho escravo. No entanto, elas não conseguem garantir que isso é cumprido à risca, porque não mantêm rastreamento de toda a cadeia produtiva, do nascimento do bezerro até a vida adulta do animal. O rastreio se concentra, de forma geral, na última fazenda pela qual o gado passa antes de ir para o abate.

O Ministério Público Federal já afirmou que as empresas da área não têm como garantir que a carne que vendem não esteja “contaminada” com crimes.

Não é a primeira vez que as empresas em questão são relacionadas a desmatamento ilegal na Amazônia. Uma investigação recente da ONG Greenpeace no Pará também encontrou ilegalidades ambientais na cadeia de produção da JBS e da Marfrig.

Com a apresentação dos dados de desmatamento ilegal, a investigação da Global Witness afirma que houve falhas nos processos de auditoria contratados —a ONG cita especificamente a empresa norueguesa DNV-GL e a americana Grant Thornton— para verificar o cumprimento dos compromissos das empresas.

Por fim, o relatório aponta também para a responsabilização de instituições econômicas que financiam as empresas citadas. Algumas instituições financeiras já começaram a agir devido a preocupação da contaminação por desmatamento. Recentemente, a Nordea Asset Management excluiu ações do JBS de seus fundos, e analistas do banco HSBC alertaram seus investidores para a falta de solução da empresa para monitorar a cadeia.

OUTRO LADO

A JBS, em resposta à Global Witness, afirmou que parte das compras de gado de fazendas com desmate ilegal ocorreu em momentos em que as propriedades estavam em vias de se adequar ao Código Florestal de 2012, afirmação que não parece encontrar respaldo nos regramentos da área. Outra parte do desmatamento detectado pela ONG teria sido inferior a 6,25 hectares por fazenda, o que é tido como o passível de detecção pelo Inpe.

A JBS também afirma ter identificado, entre as fazendas apresentadas pela Global Witness, diferenças entre o mapa que monitora e o que foi apresentado pela ONG. Em outros casos, a empresa diz não ter efetuado as compras registradas nas guias de trânsito.

A empresa diz ainda que as compras precederam os ilícitos ambientais ou embargos do Ibama.

À Folha a JBS afirma que "não comprou gado de fazendas embargadas por irregularidades ambientais ou em desacordo com o protocolo" do MPF.

O frigorífico, porém, confirmou à reportagem que a fazenda El Shadai apontada pela investigação fazia parte de seus fornecedores, mas que não constava na lista de embargos do Ibama. A empresa aponta que o embargo só foi detectado após consulta pelo CPF do proprietário.

A empresa diz que a fazenda foi imediatamente bloqueada pela JBS. "Tal caso não é comum, por isso a JBS vai comunicar ao Ibama sobre a ocorrência. A sua identificação colaborou com a evolução do sistema de monitoramento da Companhia", afirma, complementando que a lista de embargos é o documento oficial para verificação de fazendas e que, por isso, "a JBS não desrespeitou as normas do MPF".

Mapas mostram contornos de áreas em que foi detectado desmatamento
Desmatamento detectado na fazenda El Shadai, que fornecia gado diretamente para a JBS - Divulgação/Global Witness

A Marfrig afirmou que cerca de metade das fazendas apontadas como irregulares pela fiscalização tinha desmatamento anterior à data limite dos compromissos da empresa. Disse também que outras parcelas das fazendas tiveram desmatamentos após a compra ou áreas desmatadas inferiores a 6,25 hectares ou mesmo identificações errôneas de desmatamento pelo Inpe. Por fim, em cinco casos a empresa disse não ter encontrado em seu sistema as fazendas apontadas pela Global Witness.

À Folha a Marfrig afirmou que “não foi identificado qualquer abate irregular, o que significa que eles estavam em conformidade com os critérios sociais e ambientais adotados pela Marfrig nas datas desses abates”. A empresa também ressaltou o novo protocolo para compra de gado assinado por ela e outros frigoríficos junto ao MPF neste ano.

Questionada sobre a fazenda MD, a Marfrig afirma que “não abate animais de nenhuma fazenda com embargo pelo Ibama". "Isso aplica-se também a fazenda MD, em São Félix do Xingu, a qual não consta mais na lista de fornecedores da empresa”.

Por fim, a Minerva afirmou que seis fazendas citadas pela ONG tinham desmatamento anterior ao marco temporal previsto no Código Florestal, que quatro foram bloqueadas como fornecedoras e que duas das fazendas tinham tido desmatamento erroneamente identificado pelo Inpe. Outra das fazendas teria desmate inferior a 6,25 hectares. Segundo a empresa, há ainda uma fazenda com limites territoriais sobrepostos, o que dificultaria o monitoramento. Nos dois casos restantes, a empresa diz não ter compras registradas.

À Folha a Minerva afirmou estar confiante "nos resultados de nossa ferramenta de monitoramento geográfico" e que "é pioneira em ações concretas para o monitoramento dos fornecedores indiretos".

Resistir à tentação da política e preservar a estabilidade da Constituição, Fernando Schüler, FSP

 A Constituição é clara ao fixar os mandatos das Mesas do Congresso em dois anos e estabelecer que é “vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”. É sempre possível à criatividade humana desafiar o sentido das palavras. E um risco quando se trata do direito e da Constituição, onde levar a sério as palavras significa levar direitos a sério.

É o tema neste episódio da sucessão de Maia e Alcolumbre no Congresso. Para além de juízos de maioria ou minoria, a Constituição consagrou o valor da alternância de poder. O reconhecimento de que não faz bem ao país a tentação do uso da máquina do próprio Parlamento para a preservação do poder.

Neste episódio, porém, há algo mais em jogo: a própria ideia de que o que está escrito na Constituição não é uma banalidade passível de interpretação a gosto de uma eventual maioria na Câmara ou no Senado.

A tese simples e essencial de que não é a “autonomia dos Poderes” que disciplina o uso da Constituição, mas a Constituição que disciplina o funcionamento dos Poderes. Tese que põe por terra o argumento sem nexo, que se escuta por aí, segundo o qual fixar as próprias regras de sucessão é um problema interna corporis do Congresso.

Não é. A regra já foi dada pela Constituição. A Carta que deve funcionar, como diz meu conterrâneo Lênio Streck, como um “remédio contra as maiorias” e a “voz das ruas”. Neste caso, diria, a voz dos corredores do Congresso. Leio coisas ainda mais estranhas, como a ideia de que ministros do Supremo avaliem como positivo o atual “arranjo político” e a contenção do Executivo feita por Maia e Alcolumbre. E que seria uma boa ideia manter os atuais presidentes.

Não faz sentido que integrantes da Suprema Corte façam este tipo de juízo quando se trata de garantir o que está escrito na Constituição.

É certo que o avanço dos tribunais sobre o Parlamento já vai longe. Em dezembro de 2019, o Supremo promoveu um debate com líderes partidários sobre a possibilidade das candidaturas independentes. O tema continua na pauta do STF. À época, o ministro Barroso dizia que era preciso entender “se o Supremo tem caminhos para decidir sobre o assunto”, ou se isso caberia ao Parlamento.

O dado singelo é que a Constituição diz que a filiação partidária é “condição de elegibilidade” e, ao menos até onde se saiba, cabe ao Congresso (e em alguns casos nem mesmo ao Congresso) mudar a Constituição.

Caso notório foi o tratamento que o Supremo deu a dois elementos centrais do pacote anticrime aprovado em 2019 pelo Congresso. O primeiro foi o devido ajuste feito na exigência de revisão de prisões preventivas a cada 90 dias. Havia um clamor popular, e o STF decidiu que a regra aprovada no Congresso não era bem assim. Quanto ao juiz das garantias, foi simplesmente suspenso em decisão monocrática.

O caso mais banal talvez tenha sido a reintrodução pura e simples da censura prévia na vida brasileira. Dado que feita contra os “indesejáveis”, pouca gente chiou. O tema mereceu o curioso argumento de um ministro do STF segundo o qual se tratava de uma “curadoria”. Proibir alguém de usar o Facebook não significava ferir sua liberdade de expressão, visto que ele poderia seguir falando o que quisesse, imagino que gritando pelas ruas ou via sinais de fumaça.

Sob certo aspecto, trata-se de um tema sem solução. Como bem disse o ministro Fux em seu discurso de posse, o próprio mundo político usa o STF para lidar com seus desacordos. E as pessoas tendem a reclamar do ativismo judicial apenas quando a coisa mexe em seus interesses ou paixões do momento.

A pergunta é se o próprio Supremo não vem criando incentivos para que o mundo político o tome como instância moderadora. A judicialização e a interferência crescentes, para a qual não há outro remédio que a autocontenção. No fundo, a renúncia à tentação da política em nome da guarda e da estabilidade da Constituição em meio ao vaivém das maiorias e urgências cotidianas da democracia.

Este episódio da sucessão no comando do Congresso será um bom teste neste sentido.

Fernando Schüler

Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.