quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Marcelo Coelho Eleições municipais mostraram que a esquerda tem muito chão pela frente, FSP (definitivo)

  EDIÇÃO IMPRESSA

Claro que, para a esquerda, é frustrante não ter vencido em São Paulo ou Porto Alegre; seria a oportunidade para dar “a volta por cima”, depois do massacre bolsonarista de dois anos atrás.

A torcida era grande, e aqui em São Paulo o desempenho de Guilherme Boulos nos debates contribuiu para a animação.

Apesar da derrota, o quadro está longe de desesperar. Quando um dos principais líderes da oposição à extrema direita atende pelo nome de João Doria, qualquer avanço de PSOL, PC do B e PT já constitui surpresa.

E não foi um avanço pequeno. De partido entre pequeno e nanico, o PSOL conquistou mais de 40% dos votos paulistanos; na mesma situação, o PC do B foi a mais de 45% em Porto Alegre.

O clima político está mudando de novo —mas tudo isso já anda sendo dito.

Queria tocar em outro ponto: o de que eleições não são a coisa mais importante. Todos vimos o que aconteceu com Marina Silva —que depois de obter 22 milhões de votos em 2014 ficou atrás do Cabo Daciolo em 2018.

Vimos, também, o que aconteceu com o PT —que depois de ganhar a Presidência teve de dar corda a corruptos e evangélicos para obter maioria no Congresso e terminou criando gosto pela coisa.

Nada mais errado, na minha opinião, do que concluir a partir disso que a “democracia burguesa” não tem jeito mesmo, e que o melhor seria partir para alguma tática insurrecional-revolucionária. Isso seria ridículo, coisa de gatos-pingados, a menos que desse certo — e aí seria sangrento.

O que falta para a esquerda, acho, não são votos nem armas, mas sim organização. Já devo ter escrito isso mais de uma vez, mas se em cada bairro de periferia você tivesse uma sedezinha de PT, PSOL, PC do B ou coisa parecida, ao lado do templo da Universal e da academia de ginástica, o país teria outra cara.

Nada contra que partidos de direita também fizessem seus minidiretórios ou seja lá que nome tenham, mas em geral não precisam disso.

As igrejas evangélicas não funcionam só pelo que dizem na TV. Funcionam como polos de socialização; grupos de reza e estudos bíblicos, por exemplo, mas não só. Bazares, cursos de bordado, cursos de Libras, que sei eu? Depende, claro, do pastor — e do dinheiro que arrecada.

Em tese, uma organização semelhante está ao alcance de partidos de esquerda também. Iniciativas aparecem, sem dúvida, por meio das ONGs: cursinho grátis na periferia, centros de apoio à cultura negra, grupos de reivindicação feministas e LGBT.

Muito voto da esquerda vem daí, como tradicionalmente ocorria com os sindicatos. Mas uma política geral para a cidade, do tipo das que se apresentam na hora da eleição, depende de mais coisa.

Falo agora do meu ponto de vista pessoal, muito privilegiado. Vejo que querem acabar com uma área verde no bairro, sofro com um apagão, acho que o trânsito melhoraria um pouco se proibissem os carros de estacionar nos dois lados da rua Cardoso de Almeida, qualquer bobagem dessas.

Não sou tolo a ponto de ligar para a administração regional da prefeitura, para a companhia de eletricidade ou qualquer outro órgão que me deixará horas pendurado no telefone.

Nem eu, nem ninguém, no vasto eleitorado brasileiro, se lembraria de procurar o núcleo local de um partido para encaminhar demandas de qualquer natureza. O núcleo não existe, e a instituição do partido político não entra no nosso quadro de referências.

Todo político tem, ou finge ter, propostas para a cracolândia. Não sei de nenhuma salinha de partido político ali por perto.

O MST tem feira de produtos orgânicos; paróquias fazem quermesses de São João; quem quiser um baile para a terceira idade, curso de artesanato com madeira ou aulas de redação, acaba arranjando. É a vida normal, de pobres ou ricos.

Não é preciso ser admirador de Gramsci ou de Foucault para saber que, em tudo isso, pode existir uma dimensão política. É “em tudo isso”, sem dúvida, que se aninha o preconceito conservador, o medo, a desconfiança diante de soluções coletivas e a expectativa de alguma saída puramente individual.

Será que custaria tão caro, para os partidos de esquerda, procurar um enraizamento na "vida normal", isto é, na existência social dos seus possíveis eleitores? Fundamental, eu acho, é uma sala, uma plaquinha, um telefone e um computador. Não sei. Sei que ganhar eleição e depois comprar votos do centrão no Legislativo se revelou um péssimo negócio.

Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.


Elio Gaspari - Bolsonaro ficará no Planalto, sem rumo, o que é perigoso , FSP

 No meio de uma pandemia e de uma recessão o Brasil ficou com um presidente sem partido, sem projeto e sem aliados. Para quem não gosta dele, pode ser motivo de alegria, mas daqui a pouco vai se perceber como é perigosa essa situação.

O capitão Bolsonaro nunca foi um admirador das instituições democráticas. Em dois anos, falando em "minhas Forças Armadas", tentou armar conflitos com o Supremo Tribunal Federal e com o Congresso. Foi dissuadido, mas tentou. Tem um chanceler que se sente bem como "pária". Sempre que pode, arruma confusão com a China. Atravessou a linha do Equador para escorregar na casca de banana da política americana. Falava em "menos Brasília e mais Brasil" e nem a estatal do Trem-Bala conseguiu fechar. Prometia combater a corrupção e até hoje seu governo não explicou a origem do edital que torraria R$ 3 bilhões, mandando computadores para escolas públicas. Uma delas receberia 117 laptops para cada um de seus 255 alunos. Registre-se que a girafa foi denunciada pela Controladoria-Geral de seu o próprio governo.

O que seria uma nova política tornou-se um reaparecimento do centrão. É mais do mesmo. O novo resume-se ao fingimento daqueles que dizem acreditar na sua fidelidade.

A crise sanitária, os números da economia e o resultado da urnas mostraram que o negacionismo de Bolsonaro foi além das derrotas. Ele saiu de moda, mas ficará no Planalto, sem rumo. Presidente desorientado é coisa perigosa. Em julho de 1961 o tresloucado Jânio Quadros cogitava alguma aventura nas Guianas, onde existiria "intenso trabalho autonomista ou de emancipação nacional, com a presença de fortes correntes de esquerda, algumas, reconhecidamente, comunistas".

Nos dias 23 e 24 de agosto voltou à questão, dirigindo-se aos três ministros militares e referiu-se à ameaça do surgimento de uma "estrutura soviética" na Guiana Inglesa. No dia seguinte tentou a maluquice da renúncia.

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Bolsonaro disse que a Covid era "gripezinha"não acredita nas urnas eletrônicas e admitiu que uma empresa americana fosse capaz de desenvolver um projeto de transmissão de energia elétrica sem fios. Lá atrás, ele teve uma ideia que permitiria ao governo arrecadar bilhões. Era a legalização da jogatina e em abril passado o economista Paulo Guedes, com seus currículo de Chicago endossou sugestão. (Eles a ouviram de um bilionário americano numa suíte do Copacabana Palace, à qual chegaram entrando pela cozinha do hotel.)

A onda de 2018 tinha um componente de irracionalismo que foi tolerado diante da soberba do comissariado petista. Em dois anos, Bolsonaro radicalizou a onda, tirou-lhe plumagem e saiu de moda, mas ainda não se produziu uma alternativa sólida. Apareceram sinais esparsos, mas eles só se juntam no respeito às instituições democráticas. É pouco, mas é o suficiente para conter aventuras e crises artificiais, até porque, em matéria do problemas, o Brasil tornou-se uma vitrine.

As crises artificiais podem ser barulhentas, mas destinam-se sempre a esconder os verdadeiros problemas. Como capitão e deputado do baixo clero Jair Bolsonaro foi um mestre na fabricação desse tipo de episódios e graças a isso chegou onde chegou e lá deverá continuar até o final de 2022

Elio Gaspari

Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".