domingo, 8 de abril de 2018

Lula estragou a biografia, FSP

É triste ver Luiz Inácio Lula da Silva prestes a ser preso.
Sua biografia era uma daquelas de contos de fadas. Garoto pobre do Nordeste chega a São Paulo num pau de arara. Devido às dificuldades econômicas da família, estuda pouco, mas torna-se metalúrgico, sindicalista e líder político de esquerda. É perseguido pela ditadura e demonizado pela elite. Perde sucessivos pleitos presidenciais, até que finalmente triunfa. Sob sua gestão, o país cresce como não se via havia décadas e a desigualdade cai. A consagração vem no Brasil e no exterior.
Leitores poderão apontar pequenos exageros e omissões na narrativa, mas ela é essencialmente correta. Conta ao mesmo tempo uma história de autossuperação, que exalta virtudes do indivíduo, e de mobilidade social, que consagra o sistema democrático. O problema é que, em algum momento, Lula fraquejou.
No mínimo, ele se meteu em relacionamentos eticamente inaceitáveis com empreiteiras. Mesmo aceitando a narrativa lulista, é forçoso concluir que construtoras reformaram de graça o sítio que amigos lhe emprestavam para passar os fins de semana e remodelaram, ao gosto da família do petista, um apartamento na praia para o caso de ele desejar comprá-lo.
A Justiça, que é o foro encarregado de decidir se condutas eticamente questionáveis configuram também delitos, analisou o caso do tríplex e concluiu que Lula cometeu os crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, pelos quais o condenou a 12 anos. E é difícil falar em complô quando se sabe que a situação de Lula, entre julgamentos e habeas corpus, foi analisada por todas as instâncias, incluindo o STF, onde 7 dos 11 ministros foram nomeados por petistas.
A triste verdade é que o líder que um dia encantou o país e o mundo se perdeu ao longo do caminho. Foi condenado num processo regular e agora precisa cumprir a pena. A biografia sai estragada, mas o país fica um pouco mais republicano.

A tirania do Facebook, hélio schwartsman, FSP

Mark Zuckerberg fez mal em largar Harvard ainda no segundo ano do “college”. Acho que ele acabou saindo sem ler John Stuart Mill (1806-1873). Se o tivesse feito, provavelmente teria dito menos disparates na entrevista em que defendeu a criação de uma espécie de suprema corte do Facebook, que atuaria como um tribunal recursal definindo o que pode e o que não pode ser publicado na rede.
Em “On Liberty”, pequena obra-prima de 1859, Mill disse quase tudo o que é preciso saber sobre a liberdade de expressão. O filósofo lembra que o Estado não é a única fonte de opressão sobre o indivíduo. A sociedade, por meio das “opiniões e sentimentos prevalecentes”, pode exercer uma força ainda mais perversa, convertendo-se na “tirania da maioria”.
Só isso já deveria bastar para fazer Zuckerberg pensar duas vezes antes de defender que “a comunidade, refletindo as normas sociais e valores de pessoas de todo o mundo” seja o árbitro final do discurso aceitável.
Embora o termo “comunidade” esteja na moda e goze do estatuto de coisa benigna, ele designa justamente a entidade que, deixada sem freios, tende a massacrar as opiniões minoritárias. Para Mill, a única forma de contrapor-se a isso é assegurar que todas as ideias possam circular livremente, em especial aquelas que parecem odiosas à maioria.
Para o autor, precisamos tolerar discursos preconceituosos, racistas, imorais etc. O único limite é evitar danos a terceiros. Mas não podemos interpretar “danos” muito abertamente. Mill tinha em mente perigos físicos concretos e não simples desconfortos subjetivos, hipótese em que toda palavra poderia ser vetada.
 
Zuckerberg tem de decidir se o Facebook será um grande mural, onde cada um posta o que quer, sem limitação, ou se atuará como um órgão de imprensa, zelando pela correção factual do que é publicado. Transferir poderes censórios à comunidade é a solução que não faz sentido.
Hélio Schwartsman
É bacharel em filosofia e jornalista. Na Folha, ocupou diferentes funções. É articulista e colunista.

    sábado, 7 de abril de 2018

    É preciso privatizar a Eletrobras? NÃO

    Joaquim Francisco de Carvalho
    Canadá, Noruega, Suécia, Brasil e Venezuela são os únicos países em que a energia hidráulica é a principal fonte primária para a geração de energia elétrica. Em todos, as hidrelétricas são estatais. Exceto a Venezuela, nenhum é socialista.

    A China é a maior produtora de hidroeletricidade do mundo, os EUA estão em quarto lugar. Em ambos, as principais fontes primárias são o carvão e o gás natural, mas, nos dois, as hidrelétricas também são estatais. Se a Eletrobras for privatizada, o Brasil será o único país a vender suas hidrelétricas.

    Para formar uma opinião responsável sobre a importância da Eletrobras —em vez de ouvir os ex-agentes públicos responsáveis pelas privatizações já realizadas—, basta constatar o que aconteceu com a qualidade dos serviços de eletricidade e com as tarifas.

    As privatizações começaram em 1995. No segmento de geração, cuja capacidade total é de 145 GW, apenas 29% ficaram com o Estado, representado pela Eletrobras, com as subsidiárias Furnas, Chesf, Eletronorte e pela metade de Itaipu.

    No segmento de transmissão, o grupo Eletrobras controla 57 mil quilômetros de linhas, enquanto 584.000 quilômetros estão sob controle privado.

    No segmento de distribuição, as principais empresas também foram privatizadas. No tocante à qualidade dos serviços, os consumidores têm enfrentado brutais aumentos na frequência e na duração dos cortes de energia.

    Entre 1995 e 2017, as tarifas subiram mais de 130% acima da inflação. Antes de 1995, eram das mais baratas do mundo. Hoje, estão entre as mais caras. Por isso, inúmeras indústrias eletrointensivas estão saindo do Brasil e lançando ao desemprego milhares de operários e técnicos qualificados.

    Pode-se mesmo dizer que a privatização do sistema elétrico agrava o processo de desindustrialização do Brasil, que volta a ser um simples exportador de commodities, como era antes dos anos 1950.

    Aqui vale lembrar a diferença entre os conceitos de espaço público e privado, tema que os políticos brasileiros parecem ignorar.

    O espaço privado é ocupado por empresas industriais, estabelecimentos comerciais, instituições financeiras e outras, que têm entre os seus objetivos o de gerar lucros.

    No espaço público ficam atividades não lucrativas, como diplomacia, a segurança nacional, o policiamento, o ensino básico, o saneamento, a saúde pública, etc., além de certas "utilities", vitais para as demais atividades e que são monopolizáveis. Ora, a energia elétrica é um monopólio natural, do qual dependem a produção industrial, as comunicações, a saúde pública, a conservação dos alimentos, ou seja, praticamente tudo.

    Portanto, tarifas elétricas não devem ser formadas no espaço privado, pois influenciam todos os custos da economia e constituem um privilegiado instrumento de arrecadação de parte da renda dos demais setores, função que cabe ao erário.

    No caso do Brasil, deve-se ainda ter em conta que a energia hidráulica é a principal fonte primária para a geração elétrica.

    Ocorre que esta é apenas uma das utilidades dos reservatórios hidrelétricos, ao lado de outras, importantes, como o abastecimento de água, a irrigação, o controle de enchentes, etc.

    Tudo isso implica pesadas despesas permanentes em preservação ambiental. A experiência mostra que investidores privados não fazem tais despesas.

    O grupo Eletrobras está em crise. Privatizá-lo não resolve o problema. Mais inteligente seria despolitizá-lo e submetê-lo a administradores profissionais, supervisionados por um conselho eleito por confederações da indústria e do comércio, os maiores interessados na qualidade dos serviços e na modicidade tarifária.

    Se isso for feito de forma competente e honesta, calcula-se que os lucros da Eletrobras (com Itaipu) poderão superar, em apenas um ano, o valor que o governo espera arrecadar com a venda desse tão estratégico ativo.
    Joaquim Francisco de Carvalho
    Professor aposentado, é mestre em engenharia nuclear e doutor em energia pela USP; foi engenheiro da Companhia Energética de São Paulo, chefe do setor industrial do Ministério do Planejamento e diretor industrial da Nuclen (atual Eletronuclear)