quinta-feira, 5 de abril de 2018

Capacetada, Luis Fernando Verissimo, O Estado de S. Paulo





Onde estávamos que não pulamos no palco para enfrentar todas as injustiças que nos revoltam, desde Gólgota? 







Luis Fernando Verissimo, O Estado de S. Paulo
05 Abril 2018 | 02h00
A cidade de Nova Hartz fica no interior do Rio Grande do Sul, não muito longe de Porto Alegre. Todos os anos, na Páscoa, a cidade faz uma encenação da Paixão de Cristo que termina com sua crucificação no Monte Gólgota. A parte final é a mais impressionante do espetáculo, com a música, a iluminação e os efeitos de cena contribuindo para a dramaticidade do seu desenlace. Que inclui o detalhe mais cruel do drama: o do centurião romano que espeta o lado do agonizante Jesus com sua lança. 
Este ano, a cena final teve uma participação inesperada. Um espectador não aguentou tanta maldade, pulou no palco e atacou o centurião com um capacete de motoqueiro, interrompendo o martírio de Cristo e o espetáculo e espalhando confusão e perplexidade no Monte Gólgota que não estavam no script. Até o momento em que escrevo, a invasão do palco já tinha saído na imprensa de todo o mundo, mas aqui não se sabia muita coisa sobre o homem que atacou o centurião, se estava bêbado ou apenas indignado, ou as duas coisas. 
Pensando bem, sabia-se tão pouco sobre o invasor quanto sobre o ator que fazia o centurião em Nova Hartz e menos ainda sobre o próprio centurião romano da Bíblia, um daqueles ajudantes que têm seus cinco minutos na História e desaparecem para sempre. Os evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João não se contradizem muito no relato do martírio e da crucificação de Jesus, mas só São João menciona o centurião com sua lança covarde, que ficou como protótipo de sadismo gratuito, além do dever militar. Se há algum personagem histórico, fictício ou não, que merece uma capacetada retroativa, é esse centurião. Né não?
Resta comentar a força do teatro, que consegue impelir um homem para cima de um palco e enfrentar uma guarnição de soldados romanos armados com lanças para vingar Jesus Cristo. E há no ato do nosso herói uma reprimenda implícita. Onde estávamos que não pulamos no palco para enfrentar todas as injustiças que nos revoltam, desde Gólgota? 

https://www.youtube.com/watch?v=t9oqOZwgCiI




quarta-feira, 4 de abril de 2018

Dificuldades, Antonio Delfim Netto, FSP


Foram as mudanças institucionais aprovadas pelo Congresso Nacional que deram ao Ministério Público e à Polícia Federal os instrumentos para realizarem com eficiência as suas missões. Eles são produtos da atividade política. Revelaram-se importantes para a desmontagem do incesto entre “políticos” do Executivo e do Legislativo e gigantescas organizações do setor privado.
Operação Lava Jato é um processo de aprendizado da utilização concreta daqueles instrumentos, o que talvez explique alguns dos seus excessos. Mas não se deve esquecer que foi por obra da política e dos mecanismos que ela criou que a operação pode transformar-se em um ponto de inflexão na história do Brasil. Depois dela, o país nunca mais será o mesmo. 
Causou alguns inconvenientes de curto prazo, mas abriu uma ampla avenida de cooperação legítima e ética entre o Estado e o setor privado em um jogo cuja soma, a experiência histórica mostra, é positiva. Adicionou um elemento permanente à nossa capacidade de construir um desenvolvimento econômico robusto, inclusivo e sustentável. 
É lamentável que na situação em que nos metemos passou-se a condenar o exercício da política, e não os “políticos” que a produziram. Isso é um erro que pode dar lugar a aventureiros e propostas de mudanças radicais que sempre terminam no caos.
É evidente que todas as acusações devem ser tecnicamente analisadas com a presunção de inocência e amplo direito ao contraditório. E, se houver provas objetivas, os malfeitos deverão ser adequadamente apresentados ao juízo. 
Não se discute: na República ninguém é inimputável, nem delatores nem delatados. Nem mesmo os acusadores de ofício, se for provado algum abuso de conduta. 
O momento é grave. Parece plausível, portanto, que o Supremo Tribunal Federal —que sacralizamos na Constituição —, como o “garante” do equilíbrio da independência e harmonia entre os Poderes da República e da paz social da nação, paute a sua ação ponderando cuidadosamente as consequências de longo prazo de suas decisões, pois, como ensinou Tomás de Aquino, “a prudência é mãe de todas as virtudes”.
A teatralização exagerada da judicialização da atividade política e a consequente politização da Justiça das últimas duas semanas aumentaram de tal maneira a pressão sobre o Executivo que nenhum burocrata se dispõe a assinar um papel sem antes submetê-lo a uma consulta ao Ministério Público ou ao Tribunal de Contas da União, uma séria ameaça à democracia. 
Suspeito que esse “imbróglio” pode nos levar à estagnação econômica e tornará o Brasil ainda mais precariamente administrável do que já é hoje.
Antonio Delfim Netto

O STF e a turma dos sem-instância, Elio Gaspari, FSP

O STF e a turma dos sem-instância

No andar de cima a sentença só vale na última instância, no de baixo, fica-se na cadeia sem instância nenhuma

O Supremo Tribunal Federal julgará hoje o habeas corpus de Lula, condenado pelo TRF-4 a 12 anos e um mês de prisão. Por trás e acima desse recurso está a questão do cumprimento de uma sentença depois que ela passou pela segunda instância. O tribunal já decidiu nesse sentido, mas alguns ministros mudaram (ou não mudaram) de opinião, levando a bola de volta ao centro do campo. Os doutores são todos adultos e sábios. Suas decisões são finais, e seus argumentos eruditos às vezes são incompreensíveis.
Na questão da segunda instância trata-se de decidir se um cidadão condenado por um juiz, com a sentença ratificada no primeiro nível superior, deve ir para a cadeia, ou se ele tem direito a continuar solto até que seja apreciado o seu último recurso.
Em juridiquês, o debate é interminável. Na vida real, os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal discutem a essência social da Justiça brasileira. Essa questão só esquentou quando o juiz Sergio Morocomeçou a mandar para a prisão a turma do andar de cima. Isso porque no andar de baixo a história é outra. Quatro em cada dez brasileiros que dormem na cadeia estão lá sem julgamento algum. São os "sem-instância" chamados de "presos provisórios", gente que não tem dinheiro para pagar bons advogados. Há 711 mil detentos no país, 291 mil são "provisórios".
Muita gente torceu o nariz quando o ministro Luís Roberto Barroso disse que há um velho "pacto oligárquico" na raiz das roubalheiras expostas pela Lava Jato. Os pactos oligárquicos são implícitos e impessoais. Ninguém se apresenta como representante da oligarquia das empreiteiras, pedindo audiência a um burocrata nomeado pela oligarquia política. Apesar disso, os pactos do passado são reconhecidos e estudados, sem ofensas aos mortos. Está nas livrarias "Africanos Livres - A Abolição do Tráfico de Escravos no Brasil", da professora Beatriz Mamigonian. Ela contou um aspecto do pacto oligárquico que sustentou a escravidão no século 19 e expôs a boca-livre da elite do Rio no trato dos negros contrabandeados que eram capturados pelos ingleses ou pelo governo.
A coisa funcionava assim: desde 1831, pela lei, seriam livres todos os africanos chegados ao Brasil. Foram capturados algo como 11 mil negros, transformados em "africanos livres" obrigados a prestar 14 anos de serviços à Coroa, que os terceirizava para os maganos da Corte. Os concessionários pagavam uma taxa que equivalia a um mês de trabalho do negro, caso o alugassem para outros serviços.
Mamigonian conta o caso de Felício Mina, que foi trazido para o Rio em 1831. Em 1844, estava preso e esperava que os ingleses viessem protegê-lo. Seu concessionário dizia que ele era um ladrão perigoso, por "altivo", "jamais disposto a humilhar-se".
Entre 1831 e 1835 o concessionário de Felício explorou um plantel de 15 "africanos livres". Ele se chamava José Paulo Figueroa Nabuco de Araújo, nada a ver com o pai de Joaquim Nabuco. Talvez algum dos 11 ministros de hoje lembre dele, pois era titular do Supremo Tribunal de Justiça e escreveu uma "Coleção Cronológica das Leis do Império do Brasil". Talvez o doutor não soubesse, mas fazia parte do pacto oligárquico e usufruía dos seus benefícios. (Jornalistas também tinham acesso ao mimo dos negros.)
Elio Gaspari