segunda-feira, 2 de abril de 2018

Antonia Pellegrino: José Padilha não entendeu o mecanismo

Antonia Pellegrino: José Padilha não entendeu o mecanismo

Não creio que ele tenha a intenção de defender algum candidato ou mesmo uma ditadura, mas é isso que a lógica da série acaba sugerindo

 
O cineasta José Padilha tem uma missão: desvendar o mecanismo que não cessa em oferecer um imenso passado pela frente ao país do futuro. Seu método? "Uma obra de ficção inspirada livremente em eventos reais, onde personagens, situações e outros elementos foram adaptados para efeito dramático".

Sua dissertação abre a série, na boca do personagem Ruffo: "O que fode o nosso país não é falta de educação, não é o sistema de saúde falido, não é o déficit público, nem a taxa de juros. O que fode nosso país é a causa de tudo isso. Descobri o que fode a vida de todos os brasileiros: um câncer. Se a gente não matar essa porra na raiz, vai espalhar".

Cabe a Ruffo, vivido por Selton Mello, enfrentar o mecanismo por dentro. Mas graças a um surto diante do "erro" cometido pelo Ministério Público no engavetamento do Banestado —que na série acontece no governo Lula—, Ruffo é expelido do mecanismo. Mas não desiste.

Uma década depois, por fora do mecanismo, o personagem bipolar vai usar qualquer método para combatê-lo. Inclusive a violência, a intimidação e o microterrorismo. Mas a metodologia não interessa. Se for preciso misturar fatos, distorcer e caluniar para caber na tese do diretor, não tem problema. Afinal, a desonestidade é sempre dos outros.

Os métodos de Padilha, assim como os de Ruffo, não importam: são em nome de um bem maior (não escrevo contra ou em defesa de nenhum grupo; quem cometeu crime, que seja investigado e, se provado, que se puna).

No oitavo episódio, o câncer é identificado. O mecanismo se dá pela articulação entre empresas públicas, empreiteiras, operadores e agentes públicos. E a solução para a política está fora dela. Na Polícia Federal, no MP e no ex-policial outsider bipolar disposto a tudo para quebrar a engrenagem.

Tendo tido a chance de criar a grande e inovadora narrativa sobre corrupção no país, o cineasta acabou fazendo um clichê binário, digno dos padrões mentais dos milicianos da narrativa "contra tudo isso que está aí". Mas com um agravante: manejando com excelência as ferramentas de Hollywood.

No esquema do diretor, MP e PF estão fora da política. Não faz diferença a mudança de posição desses órgãos em governos distintos. Toda política é demonizada, desde dom João. Qualquer político, agente público ou empresário honesto será inócuo ante a força autotélica do mecanismo. O que se desenrola na tela, ao som da canção "Juízo Final", é a condenação da democracia representativa.

O "efeito dramático" que Padilha deixa de presente ao país onde não vive mais é o caminho aberto ao fascismo "livremente inspirado" na figura psicopata do ex-capitão do Exército que finge ser de fora da política e promete pôr a casa em ordem no grito e na arma.

Se a eleição fosse hoje e Bolsonaro se elegesse, pelo sistema de Padilha estaria tudo ótimo. O mecanismo poderia ser quebrado. Que outros métodos extrapolíticos valem para romper o mecanismo? Uma ditadura militar? Não creio que a intenção de José Padilha seja a defesa de candidato algum ou mesmo de uma ditadura, mas é isso que seu mecanismo acaba sugerindo.

Nas últimas semanas, o Brasil cruzou decisivamente a fronteira da democracia e adentrou a várzea da barbárie. É grave que, neste momento, quando todos estão convocados para a defesa da democracia, o iceberg conceitual por baixo do que aparece na série de José Padilha resulte em um panfleto fascista.

Enquanto Padilha faz sua pirotecnia, o real mecanismo, das oligarquias e do rentismo —que capturam o Estado e orçamento público para seus interesses—, agradece.
Antonia Pellegrino
É ativista e fundadora do blog #AgoraÉQueSãoElas, hospedado pela Folha

    José Padilha: O mecanismo agradece (tendências e debates) FSP

    José Padilha: O mecanismo agradece

    Esperava que formadores de opinião da esquerda fossem sair do estupor ideológico e combater o mecanismo de corrupção 

    Homem tira foto de stand da Netflix no desembarque do aeroporto de Brasília faz divulgação da série "O Mecanismo", sobre a operação Lava Jato
    Stand da Netflix no desembarque do aeroporto de Brasília faz divulgação da série "O Mecanismo", sobre a operação Lava Jato - Pedro Ladeira - 27.mar.18/Folhapress
    A série "O Mecanismo" é uma dramatização inspirada em um conjunto de acontecimentos reais, apresentada de forma a ilustrar uma tese. Eis a tese, em cinco enunciados:

    a) No Brasil, a corrupção não ocorre esporadicamente; ela é o mecanismo estruturante da política e da administração pública, um mecanismo que opera nos municípios, nos estados e no governo federal; no Executivo e no Legislativo, e também nas cortes judiciais constituídas por indicações políticas. 

    b) As campanhas de todos os grandes partidos do Brasil são financiadas por empresas que trabalham para o Estado. Uma vez eleitos, políticos desses partidos montam coalizões com base na distribuição de cargos que auferem controle sobre o orçamento público. Quanto mais poderoso for um político, maior o quinhão que lhe cabe.

    c) O Estado, assim loteado, contrata as mesmas empresas que financiam as campanhas políticas dos grandes partidos, superfaturando orçamentos.
     
    d) Parte da fatura se transforma em financiamento de campanha para o próximo ciclo eleitoral, e parte vira caixa dois e propina. 

    e) O mecanismo não tem ideologia; ele opera nos governos de esquerda e de direita.

    Na série "O Mecanismo", assumimos que esses enunciados são verdadeiros. Isso é fato ou ficção? O que aconteceria em um país onde o mecanismo operasse de fato? 

    No mínimo, três coisas: 

    1) A polícia e a Procuradoria se deparariam constantemente com casos de corrupção sistêmica. 

    2) A classe política criaria legislação específica para impedir que as investigações desses casos gerassem punições para seus membros, pois, na ausência de legislação assim, o mecanismo não sobreviveria.

    3) Se alguma contingência histórica permitisse que uma investigação de corrupção fosse levada a cabo nesse país, em uma área de orçamento público significativo, a política como um todo seria implicada na investigação.

    O Brasil satisfaz essas condições? 

    Não vou perder tempo analisando as duas primeiras. Sabemos que sim. No que tange à terceira, olhemos para a Lava Jato e a Petrobras. 

    Que contingencia histórica permitiu que a Lava Jato acontecesse? Claramente, foi o fato de uma pessoa sem nenhuma experiência política ter chegado à Presidência. Só pode ter sido por falta de traquejo que Dilma Rousseff sancionou, em 2013, uma emenda à lei de delações premiadas que permitiu que acordos de delação fossem celebrados com doleiros, empreiteiros e administradores públicos.

    Foram acordos desse tipo que revelaram um extenso esquema de corrupção na Petrobras, envolvendo as maiores lideranças políticas do país, inclusive o patrono político de Dilma, Lula da Silva.

    Hoje, a Lava Jato tem US$ 11,5 bilhões em recuperação judicial, sendo R$ 3,2 bilhões já bloqueados. Se não há corrupção sistêmica, de onde veio esse volume de dinheiro?

    Ora, é inegável que o mecanismo opera no Brasil, e é inegável que os grupos políticos de Temer e de Lula se beneficiaram dele. Sendo esse o caso, qual o motivo para os violentos e desonestos posts que alguns formadores de opinião de esquerda dispararam contra os atores e autores da série "O Mecanismo"?

    Para entender sua natureza, precisamos olhar o que ocorreu com a opinião pública pós-Lava Jato. 

    Sabendo que O Mecanismo existe, podemos afirmar que:

    a) Se a nova lei de delações premiadas tivesse sido sancionada com o PSDB no poder, os políticos denunciados teriam sido Aécio, Serra e FHC. Mas, como a lei foi sancionada com PT e PMDB no poder, os políticos denunciados foram Palocci, Lula, Cunha, Cabral e Temer.

    b) A mídia de direita usou essa contingência histórica para atacar a esquerda, como se a direita não fosse corrupta.

    c) O PT usou essa contingência para acusar a Lava Jato de partidarismo, como se não fosse inevitável que petistas fossem pegos primeiro, dado que estavam no poder.

    Criou-se, assim, um ambiente irracional e polarizado, em que o dogmatismo ideológico da esquerda radical e o cinismo pragmático da direita fisiológica passaram a trabalhar juntos para negar o inegável, o fato de que todas as lideranças políticas dos grandes partidos brasileiros são corruptas.

    Hoje, vemos os formadores de opinião de esquerda e os membros da direita fisiológica de mãos dadas, pressionando o STF para cancelar a prisão após condenação em segunda instância. Afinal, para a esquerda isso garantiria a impunidade de Lula; para a direita, a de Aécio, de Temer, de Jucá... O mecanismo, é claro, agradece.

    Confesso que esperava mais dos formadores de opinião da esquerda. Pensei que em algum momento da história fossem acordar do estupor ideológico e ajudar pessoas de bem na luta contra o mecanismo que opera no mundo real, em vez de se associar a ele para lutar contra o mecanismo exposto na Netflix
    José Padilha
    Cineasta, 50, dirigiu os filmes "Tropa de Elite" (2007), "Tropa de Elite 2" (2010) e "RoboCop" (2014)