domingo, 16 de outubro de 2016

Herança imbecil - THIAGO MOURÃO


O GLOBO - 16/10

Achamos lucro pecaminoso e a estabilidade de um emprego público ideal porque, afinal, o Estado é responsável por nossos sucessos e fracassos, pessoais e sociais


A pior herança que o lulopetismo deixou para a minha geração foi a personificação da democracia em um líder popular criado por uma engenhosa e bilionária máquina de comunicação.

A geração de meados dos anos 80 começou a ter alguma consciência política em torno dos 15 anos de idade, quando aconteceu uma guinada histórica na vida política do Brasil: Lula chegava à Presidência da República, depois de três duras eleições, com notoriedade mundial e credencial de ser o grande porta-voz das necessidades dos brasileiros necessitados.

Crescemos vendo “programas sociais” serem ampliados, ouvindo que o Brasil era a grande promessa mundial, que fazíamos parte de uma geração testemunha de uma transformação inédita em terras tupiniquins.

Fizeram-nos acreditar que sem Estado somos incapazes de criar arte, que qualquer coisa que carregue o nome “social” é bom, ignorando os mais de sete milhões de famintos, os mais de 12 milhões de desempregados e que apenas 8% da faixa etária trabalhadora compreendem e se expressam plenamente através das letras e dos números.

Achamos lucro pecaminoso e a estabilidade de um emprego público ideal e atraente porque, afinal, o Estado, essa entidade grandiosa e onipresente e potente, é responsável por todos os nossos sucessos e fracassos — pessoais e sociais.

Nos injetaram altas de doses de propagandas que o Fies era maravilhoso e nos blindaram do fato de que, sem qualidade de ensino e de emprego, o diploma torna-se enfeite na parede e o financiamento, um fardo que gruda nas costas de quase 47% dos estudantes que não conseguem pagar.

Fizeram-nos acreditar que Fies e cotas eram suficientes e nos esconderam que os orçamentos das universidades federais têm tido contingenciamento desde 2014, resultando em um déficit (2015) de R$ 400 mi apenas em nove das 15 maiores do país. Também esconderam que as bolsas dos que insistiam em fazer ciência sempre atrasavam e que a burocracia para o avanço científico e tecnológico era monstruoso.

Os que foram contra a eleição de Tancredo Neves contra os generais no Colégio Eleitoral, a Constituição de 88, o Plano Real, que pediram o impeachment para todos os presidentes desde a abertura democrática, que acharam que um presidente deveria cair porque privatizava demais querem nos convencer de que nunca estiveram no poder durante 13 anos e que crise é culpa de um governo tampão que assumiu por conta de crimes fiscais. Não assumem que Temer no poder é escolha do PT e seus eleitores desde 2010.

Ganham força na retórica de que as contas públicas não têm problema, que corte orçamentário é maldade da elite golpista. Não assumem os golpes bilionários contra o Brasil, para mover essa máquina comunicativa.

O lulopetismo deixou uma geração acreditar que a democracia só vale se jogada pelo jogo do nós contra eles e que qualquer pessoa ou fato que atinja as almas vivas mais caridosas do país, cujo roubo é filantrópico e altruísta, é um golpe contra a democracia.

Thiago Mourão é escritor

Quinta-coluna. Ou, quem protege bandidos? - PERCIVAL PUGGINA


ZERO HORA - RS - 15 E 16/10

Importado da Guerra Civil Espanhola e largamente usado durante a Segunda Guerra Mundial, o termo quinta-coluna designa quem, no desenrolar de um conflito, serve à causa do inimigo nacional comum. Não é outra coisa a zelosa proteção de malfeitores conduzida por proselitismo ideológico, estratégia política e administração da justiça. Assumida com motivações de esfumaçada nobreza, implica ações e omissões que colidem com a segurança e a defesa da sociedade, com elevados atributos do bem comum e com finalidades essenciais ao Estado.

Num tempo em que nossas sirenes mentais disparam ao colocarmos o pé na soleira da porta, ou pararmos num semáforo, ou escrutinarmos cada passageiro que embarca no coletivo em que nos aventuramos, a palavra paranoia tende a cair do vocabulário, substituída por duro e puro realismo. Há uma guerra declarada pelo crime contra a sociedade. E nós não somos militares ou policiais. Somos os desarmados objetivos de forças inimigas, que evitam se confrontar com o Estado pois este tem armas e tropas, reduzidas, mas treinadas. É conosco, é contra os civis, que tal guerra foi estabelecida.

Por isso, decidi alinhar nesta coluna, para adequada identificação, diversas posições e atitudes de colaboração com as forças inimigas. Podem, por isso, ser qualificadas como quintas-colunas. Você verá, leitor, sem surpresa alguma, que todas essas atitudes procedem do mesmo arraial ideológico onde se articulam ações revolucionárias.

São protetores de bandidos os adversários à posse e ao porte de armas. Eu mesmo me alinhei entre estes, até aprender de minhas sirenes mentais o quanto a prudente prevenção serve à nossa segurança e à de nossos familiares. Uma população civil desarmada vira pombinha branca para as armadilhas do banditismo, tão alva e tão ingênua quanto as dessas revoadas lançadas por manifestantes em favor de uma paz unilateralmente declarada. É bem assim que as forças inimigas querem ser recebidas. Elas desejam ser, sempre, o único lado com o dedo no gatilho.

São protetores de bandidos todos os que emitem a cantilena do "só isso não resolve" ante qualquer demanda racional por rigor contra o crime, a saber, entre outras: mais presídios, penas de reclusão mais longas, severas exigências para a progressão de regime e uso mais intenso do Regime Disciplinar Diferenciado nas execuções penais.

São protetores de bandidos os que proclamam, como se argumento fosse, o fato de já termos "presos em excesso". E tudo se passa como se miragens e alucinações, não bandidos reais, andassem por aí todo ano, armas na mão, matando 60 mil brasileiros, roubando meio milhão de carros, praticando número muito maior de furtos diversos não notificados e algo como 520 mil estupros (estimativa feita pelo Ipea, levando em conta a subnotificação, a partir de 41 mil ocorrências registradas).

São protetores de bandidos os políticos, formadores de opinião, juristas e ideólogos cujas vozes, em pleno estado de guerra, mas longe do tiroteio cotidiano, só se fazem ouvir para recriminar ações policiais, promovendo a associação ideológica dessas corporações à repressão, autoritarismo, brutalidade, ditaduras e assemelhados. São protetores de bandidos os militantes de ideologias instalados nas carreiras jurídicas e ganhando acesso aos parlamentos. Para estes, os criminosos são agentes ativos da revolução social com que sonham sem terem a coragem de acionar com mão e gatilho próprios.

São defensores de bandidos todos que espalham as sementes do mal por plantio direto, lançando-as ao léu, com a afirmação de que os criminosos são seres humanos esplêndidos aos quais foi negada a realização de sua bondade natural por essa sociedade perversa (eu, você que me lê e os executados de ontem em atos de extrema frialdade). Veem-nos — a nós, nunca a si próprios — como potenciais cenas do crime, corpos de delito com culpabilidade constatada e contas a ajustar.

A lista é extensa e não há como condensá-la nestas linhas. Não tenho como pedir a qualquer desses grupos que mude de conduta. Só peço que, ao menos, respeitem nossa inteligência, já que não respeitam nossos direitos naturais.


O juiz na seara alheia - GAUDÊNCIO TORQUATO

O juiz na seara alheia - GAUDÊNCIO TORQUATO

O GLOBO 
BLOG DO NOBLAT - 16/10

Pode um juiz usar o poder da toga para escrever um despacho sem se ater ao objeto do processo que lhe chega às mãos, usando o espaço para se engajar na ação corporativa da Associação de Magistrados a que pertence?

E mais: tem o direito de fazer nesse mesmo recurso prejulgamento sobre matérias que fogem à sua competência, como projetos de lei e PECs?

É evidente que não. Porém isso é o que se lê num despacho exarado em 3 de outubro passado por um juiz de uma Vara de Trabalho do TRT da 2ª Região. O reclamante, que deve ter atravessado um calvário para marcar uma audiência no dia 5 de outubro, ficou a ver navios ao ver o adiamento para o final de junho de 2017. A razão: o juiz aderiu ao movimento nacional de paralisação de atividades deliberado por uma Assembleia de Magistrados.

Cumpriu Sua Excelência o dever de fazer Justiça? Tinha direito de parar o múnus judiciário para atender ao movimento corporativista?

Entre as considerações descritas no despacho, o juiz alega “fragilização de ações institucionais de combate à corrupção”, posicionando-se, ainda, contrário à PEC 241, “que afronta direitos sociais e ataca garantias constitucionais” e assim por diante. Distribuiu juízos de valor no despacho, mas nada disse sobre o processo do reclamante.

Ora, juiz não pode fazer prejulgamento. Por mais que se aceite a tese de que juiz é também cidadão – podendo nessa condição expressar livre pensamento – ao magistrado, no exercício da função, impõe-se rigor ético, não podendo antecipar seu ponto de vista sob pena de causar suspeição.

O ativismo judicial
O juiz, ensina Francis Bacon, filósofo inglês, deve ser reverendo e sutil. Ater-se à missão de administrar a justiça. Não é o que vemos. Daí a recorrente observação: há muitos juízes que driblam os princípios que regem a magistratura.

Multiplicam-se as ações de cunho corporativista empreendidas por associações de magistrados e outros operadores do Direito que entram na arena política brandindo armas flamejantes.

A radiografia mostra um amplo aparato judiciário imbricando-se no território da política. Ou seja, o campo da política passa a dividir espaço com a seara da justiça. A imbricação é tão patente que já ganhou conceitos muito conhecidos: judicialização da política e politização da justiça.

O chamado “ativismo judicial” tem algumas explicações: o despertar da sociedade, por meio de seus núcleos organizados; a emergência de novos polos de poder; a promoção da cidadania, na esteira das bandeiras dos direitos humanos e da igualdade, responsável por movimentos como os de defesa das mulheres, de etnias e dos homossexuais; e o vácuo proporcionado pela ausência de legislação infraconstitucional (muitos dispositivos da CF de 88 não foram regulamentados).

Nesse ambiente de múltiplas interações, dentro do qual convivem instituições em processo de consolidação e uma cultura patrimonialista que subjuga a res publica ao crivo (e à ambição) do interesse privado, é difícil ao sistema judiciário tornar-se imune às pressões políticas.

A partir de 88, a Carta Magna abriu o leque de relações mais intensas. A composição das Cortes, por sua vez, tem proporcionado íntima conexão entre justiça e política. Veja-se o processo de seleção de nomes para compor listas dos tribunais superiores, encaminhadas ao chefe do Executivo, a quem cabe a palavra final.

No torneio de trancas e retrancas, pressões e contrapressões, há jogadores dos partidos, de arenas corporativas (associações de classe) e de grupos. Registre-se, ainda, que o território dos negócios adentrou os domínios do Estado. Portanto, a politização da justiça sob o prisma de indicação de nomes para as Cortes incorpora esse componente.

Em nações desenvolvidas, como a França e a Alemanha, isso é até natural. Parcela da Corte Constitucional passa pelo crivo do Parlamento. Há, ali, intenso atrelamento partidário. Nos Estados Unidos, a nomeação de magistrados também passa pela régua partidária, seja privilegiando democratas ou republicanos (liberais ou conservadores), dependendo do presidente do momento.

Por aqui, é comum se ouvir: “o juiz fulano é ligado ao político beltrano e vice-versa, o mandatário tem afinidade com o juiz tal”. O desenho ganha matiz mais forte quando a aproximação gera suspeita, quando se escancara a influência de atores (políticos/empresariais) nas decisões judiciárias.

As curvas acabam batendo às portas do Conselho Nacional de Justiça. Emerge a velha questão:Quis custodiet custodes? Quem vigia o vigilante? Norberto Bobbio sugere resposta ao pressupor que a indagação, per si, aponta para um vigilante superior. Portanto, aquele Conselho precisa ser um atento vigilante para evitar juízes caminhando por linhas tortas.

A prevalência da coisa acordada
Atente-se, ainda, para o exagero cometido por certas instâncias do Judiciário. Examinemos a questão da prevalência da autonomia coletiva (negociação entre patrões e empregados) sobre a legislação.

O STF, por meio de alguns de seus ministros, se pronunciou sobre a força da coisa acordada sobre a coisa legislada. Mas o Tribunal Superior do Trabalho entende que o princípio da autonomia deve ser “relativizado”, não podendo ser aplicado a todos os direitos que os trabalhadores detêm.

Alguns membros do TST questionam a natureza jurídica do “negociado”, alegando que os precedentes do STF sobre a matéria (negociado X legislado) têm sido pontuais, não podendo se estender indiscriminadamente a toda a pletora de direitos e tipos de negociação.

O TST fecha a questão: a Justiça do Trabalho é quem deve avaliar o que pode ou não ser negociado. E levanta a dúvida: ministros do TST podem julgar em contrário ao entendimento da Suprema Corte?

O fato é a Corte do Trabalho parece defender a manutenção de um estado cada vez mais conflituoso na sociedade. A lógica: quanto mais conflito mais poder deterá. A recíproca é verdadeira. Não por acaso, os altos juízes do trabalho dão a impressão de que também apreciam legislar, extrapolando a função que lhe compete, a de distribuir justiça.