domingo, 17 de agosto de 2014

Despreparo armado


GUARACY MINGARDI* - O ESTADO DE S.PAULO
04 Maio 2014 | 02h 07

Incompetência e desleixo fazem do Brasil um dos países em que mais policiais matam e morrem


O médico Ricardo Seiti morreu no domingo passado, após ser baleado num tiroteio dentro do 2º. DP de Santo André. Seiti estava na delegacia para registrar um B.O. de um acidente de trânsito quando foi alvejado numa confusão provocada pela própria polícia paulista.
Robert Peel pode ser considerado um dos fundadores do Estado moderno. Em 1829, quando era secretário do Interior da Inglaterra, introduziu uma série de reformas no direito penal britânico, mas é lembrado até hoje por ter criado a Polícia Metropolitana londrina (Metropolitan Police Act). Num país que prezava a liberdade e tinha medo de uma polícia truculenta ou a serviço do despotismo, Peel modelou uma organização baseada no profissionalismo, eficiência e legalidade. A nova polícia deveria ser regida por alguns princípios básicos, dos quais o sexto pregava o seguinte: "A polícia usa a força física na medida necessária para garantir a observância da lei ou para restaurar a ordem apenas quando o exercício da resolução pacífica, da persuasão e do aviso for insuficiente".
Quase dois séculos depois, ainda não são todos os que aprovam esse modelo. Parte significativa da sociedade brasileira acredita que são ideias ultrapassadas, que bandido bom é bandido morto. Esse ponto de vista não é novidade e independe de classe social ou grau de instrução. Mas o que dizem os apologistas da força quando a polícia mata cidadãos comuns, seja por engano ou simples incompetência?
Muitos se calam, enquanto outros ficam indignados, reclamando do tipo de atuação policial que até o dia anterior aprovavam. A desculpa é que o policial deveria saber distinguir o criminoso do "cidadão de bem". Como se isso fosse possível sem o uso de uma bola de cristal. Outra reação é culpar a instrução, o treinamento dado aos policiais. No dia em que a TV exibiu uma mulher cujo corpo foi arrastado por uma viatura da PM em Madureira, uma repórter televisiva culpou a má formação, como se alguém tivesse de ser ensinado a fechar direito o porta-malas do carro.
Esse caso é apenas um de muitos, ocorridos nos últimos meses, que resultaram em mortes desnecessárias causadas pela incompetência ou desleixo. Os mais recentes foram os homicídios do bailarino no Rio e o do médico em Santo André. O primeiro morreu por causa do desleixo de policiais que acreditam que trocar tiros em uma área densamente povoada é normal - afinal, são só favelados. O segundo, pela incompetência de um policial que começou um tiroteio dentro da delegacia quando viu pessoas correndo, o que seria quase cômico se não tivesse resultado numa tragédia.
Assim como o episódio da mulher arrastada, nenhum dos dois casos ocorreu por falta de instrução. A formação melhorou muito desde os anos 1980, quando frequentei a Academia de Polícia Civil de São Paulo. Naquela época, só para dar um exemplo concreto, os alunos do curso de investigador deram apenas 12 tiros durante os quatro meses do curso. Com certeza o policial civil aprendeu muito mais que isso na Academia, inclusive a não atirar a esmo, sem motivo válido. E os policiais militares cariocas evidentemente aprenderam no Centro de Formação de Soldados do Rio que tiroteio numa área residencial pode ser um desastre.
É evidente que a formação policial não é uma maravilha, mas não é a culpada pelas atitudes que tornam o Brasil um dos locais do mundo onde mais policiais matam e morrem. O principal vilão da história é o sistema de segurança pública brasileiro - ultrapassado, ineficiente e caro, mas que os parlamentares desconhecem e as instituições policiais querem manter a todo custo. Um dos produtos mais nocivos desse modelo é a falta de controle dos chefes sobre seus subordinados e a existência de uma cultura organizacional que faz com que a incompetência não seja punida. Em vários Estados, um oficial da PM ou delegado incompetente tem uma carreira normal, sendo promovido por tempo de serviço durante 30 anos sem ter feito nada de útil para a sociedade.
Outra faceta da cultura institucional é a distância que as polícias têm da sociedade, o que provoca repulsa a qualquer prestação de contas. Muitos policiais expressam a ideia de que, quanto menos a sociedade souber sobre suas atividades, melhor. Um dos motivos desse raciocínio torto e antidemocrático é que, quanto mais secretas forem as ações, menos argumentos terão aqueles que propõem mudanças no sistema. Portanto, as carreiras dos incompetentes não correm risco. E o sucesso dessa postura só foi possível porque eles conseguiram vender para seus colegas eficientes que o silêncio e o distanciamento da sociedade é bom para todos.
Nosso modelo de segurança, porém, não caiu do céu. Foi criado pelos constituintes de 1988 e manteve alguns princípios impostos pela ditadura militar, inclusive a militarização do braço preventivo da polícia. Com isso, afastou a prevenção da investigação, criando duas polícias rivais que passam mais tempo discutindo entre si do que aprimorando o trabalho. Só quem não vê isso são os governadores, que batem na tecla da integração (que não existe) entre as instituições. Enquanto isso os projetos de mudança na segurança hibernam no Congresso, só voltando à baila quando acontece uma desgraça. Como se não bastassem as mortes desnecessárias e a criminalidade crescente.
*Guaracy Mingardi é doutor em Ciência Política pela USP e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Exploração de gás de xisto nos Estados Unidos inicia revolução energética


DENISE CHRISPIM MARIN - ENVIADA ESPECIAL / PITTSBURGH
03 Agosto 2013 | 22h 36

Exportação a preços competitivos deve mudar cenário global de energia

Em apenas quatro anos, a exploração de gás de xisto nos Estados Unidos iniciou uma revolução energética capaz de alterar o cenário econômico do país. A atração de investimentos produtivos, antes vista como impossível, tornou-se inevitável, assim como a autossuficiência em fontes de energia. Com ou sem cota - tema polêmico e ainda não definido -, os EUA estarão em poucos anos exportando gás natural em volume suficiente para mudar o panorama mundial.
A reserva americana de gás de xisto é estimada em 2,7 trilhões de metros cúbicos, nos cálculos da Administração de Informação sobre Energia (EIA) de dezembro de 2010. É suficiente para abastecer o mercado por mais de 100 anos. Mas pode ser maior. A extração começou há poucos anos, está em constante avanço tecnológico e contribuiu para a produção de 27,4 quatrilhões de BTUs (British Thermal Unit, unidade de energia para medir quantidades de gás) no ano passado.
Tamanha oferta de gás de xisto, a custos relativamente baixos de produção, permite a venda do gás natural americano a US$ 4 por milhão de BTUs - o menor preço do mercado mundial. Em 2020, serão 31,3 quatrilhões de BTUs - 14% mais, nas previsões da EIA. Atualmente, essa nova fonte responde por 34% do total de gás natural extraído no país.
O McKinsey Global Institute inclui o gás de xisto entre os cinco setores capazes de mudar a economia americana. Entre 2007 e 2012, essa extração aumentou, em média, 50% ao ano. A consultoria estima que, até 2020, o gás vai adicionar de 2% a 4% ao Produto Interno Bruto (PIB) anual dos EUA - algo entre US$ 380 bilhões e US$ 690 bilhões - e gerar 1,7 milhão de empregos diretos, especialmente para trabalhadores com nível superior de escolaridade.
O setor vai trazer consigo potencial para revitalizar o setor energético, atrair investimento de indústrias intensivas em energia e impulsionar a economia. Entre US$ 55 bilhões e US$ 85 bilhões deverão ser adicionados ao PIB industrial americano até 2020, em investimentos de companhias petroquímicas, de fertilizantes, siderúrgicas, de vidro e outras. Espera-se o renascimento da indústria manufatureira do país.
No PIB do conjunto dos setores de construção, transportes, serviços e comércio, entre US$ 210 bilhões e US$ 380 bilhões serão agregados. Mais US$ 1,4 trilhão deverá ser investido em curto prazo em infraestrutura e gasodutos, com geração de 1,6 milhão de postos temporários de trabalho. Esse boom deverá se estender por quase todo o país, dado o fato de as 48 reservas de gás de xisto estarem em 28 Estados americanos. Desse conjunto, 26 reservas estão em exploração. Somente na formação geológica de Marcellus, que abrange a Pensilvânia, Nova York, Ohio e Virgínia Ocidental, há de 5 mil a 6 mil poços em operação.
"Nos últimos cinco anos de recessão, essa foi a atividade que salvou vários Estados", afirmou Christopher Guith, vice-presidente do Institute for 21st Century Energy, da US Chamber of Commerce. "O gás de xisto vai mudar o panorama mundial, assim como a Apple e a Microsoft estão fazendo nos últimos anos, porque vai tocar em toda a economia e na vida das pessoas", disse. "O que queremos é fazer com que essa mudança se torne ainda mais positiva", completou Guith.
As entidades de empresas produtoras de gás de xisto ambicionam deslocar o carvão como fonte - altamente poluidora - de energia elétrica no país. Hoje, 50% da eletricidade é gerada em térmicas a carvão. Mas o lobby político desse setor no Congresso não permitirá a fácil conquista desse mercado. O gás de xisto já vem substituindo o diesel em ônibus e caminhões, apesar de poucos postos terem o combustível.
O preço atual de venda de gás natural, de US$ 4 por milhão de BTUs, é imbatível. A Rússia escoa gás natural para a Alemanha a US$ 11,36. Na Indonésia, custa US$ 17,72. No Brasil, cerca de US$ 18. Os produtores estimam que, ao atingir um volume substancial, o preço rondará US$ 6 por milhão de BTU em dez anos. A Europa, atual consumidora de carvão americano, está ansiosa por essa fonte limpa e barata. O Japão, especialmente depois da tragédia de Fukujima, está ainda mais desejoso.
Há muito a ser feito antes da corrida aos mercados externos. Cinco projetos de instalação de usinas para transformar o gás em GNL estão em estudos. Dos quatro terminais portuários de gás na Costa Leste, todos voltados à importação, três deles estão fechados. O de Boston opera, mas precisa ser convertido para a exportação. Há apenas um terminal de exportação em funcionamento no país, no Alasca, que escoa volume limitado de gás para o Japão. O gargalo físico é um desafio. Mas não tão difícil de ser superado quanto a resistência do governo Barack Obama.
A Casa Branca é reconhecida como adversária pelos setores de energia fóssil dos EUA. Mesmo assim, os produtores acreditam ser possível dobrá-la com um argumento sensível: o potencial de geração de empregos. Segundo David Wochner, especialista da consultoria K&L Gates, o governo americano está neste momento preocupado em adequar oferta e preço, no mercado interno, antes de facilitar a exportação. Não quer se ver diante do risco de escalada do preço do gás no país. Sem a dimensão mais precisa das reservas, a equação pode demorar a surgir.
Novo mercado preocupa empresas brasileiras
A produção de gás de xisto nos Estados Unidos e seu baixo preço de venda deixou em suspenso projetos de companhias brasileiras. Para a Coalizão das Indústrias Brasileiras (BIC, na sigla em inglês), a possibilidade de fuga de investimentos produtivos do Brasil para os EUA é tão real quanto o risco de o etanol ser substituído pelo gás natural como combustível de transição.
A Odebrecht avalia os riscos na construção de hidrelétricas na América Central. Empresas comercializadoras estudam a lógica desse novo mercado, cientes dos riscos aos negócios em curso, e geradoras de energia temem a repetição, no Brasil, dos erros e da desorganização inicial da produção nos EUA. O País têm reservas estimadas em 6,9 trilhões de metros cúbicos, em especial no Vale do Rio São Francisco, onde mais de 30 poços estão sendo pesquisados.
"O gás de xisto está revolucionando o mercado de energia e a produção nos Estados Unidos, com reflexos sérios para o Brasil", diz Célia Feldpausch, diretora executiva da BIC, e organizadora de duas missões de executivos brasileiros, em Pittsburgh, sobre o gás de xisto.
Khary Cauthen, diretor do Instituto Americano do Petróleo (API), lembra que o etanol era uma "vaca sagrada" nos EUA há dez anos. O setor produtor teve seus créditos tributários facilmente derrubados no ano passado pelo Congresso, antes defensor arraigado desses subsídios. O álcool tende a ser substituído pelo gás natural na mistura obrigatória à gasolina, em longo prazo. 
No Brasil, dois leilões de áreas de gás natural estão programados para outubro e novembro. A Petrobrás monopoliza o transporte e a comercialização. O mercado aberto impera nos EUA desde a exploração - os locais são alugados pelo proprietário da terra - até a venda aos setores usuários do gás natural. A rede de gasodutos tem 38 mil quilômetros.
A REPÓRTER VIAJOU A CONVITE DA COALIZÃO DAS INDÚSTRIAS BRASILEIRAS (BIC), INTEGRANDO A MISSÃO DE EMPRESAS DO BRASIL A WASHINGTON E PITTSBURGH

Os pais e a escola - CONTARDO CALLIGARIS


FOLHA DE SP - 14/08


Quase todo envolvimento dos pais na vida escolar dos filhos não tem efeito --ou tem efeito negativo


Alguém, na burocracia da Educação Nacional francesa, já atribuiu notas boas a meus desenhos, tanto de tema livre (mais "artísticos") como figurativos (uma banana, uma laranja, uma maçã ou, mais difícil, uma alcachofra).

De qualquer jeito, não tenho do que me gabar. As notas foram decididas pensando que o autor dos desenhos fosse meu filho, que na época tinha dez anos.

Não havia outro jeito. A mãe de meu filho, de quem eu tinha me separado, aceitara que ele morasse um ano no Brasil comigo, mas à condição que ele não interrompesse sua escolaridade francesa. Em Porto Alegre, onde eu morava, isso só era possível se ele fosse escolarizado por correspondência.

A cada sexta-feira, chegava da França um temível envelope da Educação Nacional, com todo o necessário para cumprir o programa escolar da semana. A dose de lições de casa era assustadora e inesgotável.

Durante um ano, fiz lição de casa com meu filho. No domingo acontecia a arrancada final, pois o envelope das lições feitas devia imperativamente sair pelo correio na segunda: a gente trabalhava até as primeiras horas da madrugada, quando eu me encarregava dos desenhos de artes, enquanto ele completava o resto.

1) A quantidade de lições era insensata; 2) Estudar por correspondência era insensato, porque a escola deveria servir para estudar, mas também para socializar as crianças; 3) Eu fazer parte das lições dele (não só de artes) era insensato.

Apesar disso, num tributo ao espírito da pedagogia contemporânea, pela qual é bom que os pais se envolvam quanto mais possível na escolaridade dos filhos, eu imaginava que nossa "colaboração" criaria uma grande motivação futura.

Hoje, enfim, dá para afirmar que eu estava errado. Foi publicado em 2013 "The Broken Compass: Parental Involvement with Children Education" (a bússola quebrada: envolvimento dos pais na educação das crianças - Harvard University Press), em que os autores, K. Robinson e A. L. Harris, sociólogos, verificaram a eficácia (ou não) do envolvimento dos pais nos estudos dos filhos.

Eles estabeleceram 63 critérios para medir o envolvimento dos pais na vida escolar dos filhos e procuraram os efeitos desse envolvimento ao longo de três décadas. Pois bem, eles chegaram à conclusão que quase todo envolvimento dos pais na vida escolar dos filhos é sem efeito, quando não tem efeito negativo.

Se você ajuda as crianças a fazer a lição de casa, isso vai melhorar temporariamente as notas, mas, a médio e longo prazo, isso não melhorará a performance escolar dos seus rebentos. Apenas satisfaremos nossa vontade imediata de ver notas melhores nos cadernos de nossos filhos.

Se você sacrifica seu fim de semana para estar na escola, vendendo cupcakes na festa junina porque ouviu dizer que o envolvimento dos pais na vida da escola é um grande motivador para as crianças, saiba que, realmente, não é preciso.

Claro, sou parcial (não gosto de cupcakes e não gosto de festa junina), mas está provado que esse tipo de envolvimento dos pais não tem efeito constatável.

Diga-se o mesmo para as reuniões trimestrais com cada professor de nossas crianças, matéria por matéria: você pode ir, mas quando der, ok?

Robinson e Harris, em suma, sugerem que voltemos à antiga separação de casa e escola, as quais não precisam compartilhar problemas num excesso de fala sobre a criança.

Desde os anos 1970, acreditamos que uma aliança escola-família seja boa para a performance escolar dos nossos filhos. Descobre-se que, às vezes, é bom que a criança possa descansar dos pais quando está na escola --e descansar da escola quando está em casa.

O que se salva da ideologia da aliança casa-escola? Robinson e Harris acham que três coisas, principalmente, têm efeito positivo: 1) o valor que os pais atribuem à educação, 2) sua capacidade de conversar com os filhos sobre o futuro deles, 3) a leitura em voz alta com os pequenos.

O engraçado é que são coisas que os pais fazem em casa, com filhos e filhas --coisas, em suma, que não pedem nenhuma aliança especial entre a casa e a escola.