sábado, 15 de fevereiro de 2014

USP corta orçamento de núcleos de pesquisa, novas contratações e obras


Congelamento segue até abril por causa da situação financeira; Orçamento de 2014 será decidido no próximo dia 25

14 de fevereiro de 2014 | 20h 12

Paulo Saldaña - O Estado de S. Paulo
A nova gestão à frente da Universidade de São Paulo (USP) congelou até abril novas contratações e o início de obras na instituição. O orçamento dos Núcleos de Apoio à Pesquisa (NAPs) tiveram corte na liberação de recursos. O motivo é a crise financeira que a universidade enfrenta, tendo fechado o ano passado com 100% de seu orçamento comprometido com pagamento de pessoal.
Por causa desse comprometimento, a USP tem precisado recorrer às suas reservas para manter as contas em dia - conforme o Estado revelou em novembro passsado. O orçamento para este ano ainda será definido no dia 25 deste mês, mas o próprio reitor Marco Antonio Zago já assumiu que a situação deverá ser constantemente avaliada. O congelamento de contratações e novas obras por dois meses foi decidido no último dia 4.
Além desses dois pontos, a crise financeira já atinge uma das iniciativas mais elogiadas da gestão passada, os NAPs - desde 2010 foram criados 43 grupos. Foi a primeira vez que a própria universidade investiu recursos próprios na pesquisa - tradicionalmente, quem financia a ciência na universidade são as agências de fomento, como a Fapesp, CNPq e Finep. Os NAPs estão dentro do Programa de Incentivo à Pesquisa, cujas duas primeiras chamadas (2010-2011 e 2011-2012) envolveram um total de recursos de R$ 146 milhões.
Com o congelamento orçamentário, há coordenadores com receio de não conseguir garantir o pagamento de compromisso assumidos anteriormente. Bolsistas ainda temem perder seus benefícios e ter de abandonar seus estudos.
Em  comunicado encaminhado aos núcleos, obtido pela reportagem, o Departamento de Finanças da universidade indica que "foi autorizada a liberação de 6% dos recursos da economia orçamentária e da receita própria das unidades". Questionada, a reitoria informou que a regra só vale para fevereiro, enquanto o orçamento não é definido. Pesquisadores, no entanto, dão como certo o corte nos orçamentos do NAPs. Fonte ouvida pelo Estado durante a posse do novo reitor, no dia 25 de janeiro, ìndicou que a situação dos NAPs deverá ser analisada "com cautela" diante da situação orçamentária da universidade.
O novo pró-reitor de Pesquisa da USP, josé Eduardo Krieger, já disse que a decisão de a USP investir diretamente em pesquisa foi "fundamental", mas aponta o desafio de lidar com o custo excessivo da administração. "Nós gestores não estamos satisfetios e queremos trazer cada vez mais proifisionalismo para a área", disse Krieger ao Estado na última terça-feira, dia 11, durante o anúncio da nova equipe de gestão da USP.
No ano passado, o orçamento da USP foi de R$ 4,3 bilhões. As universidades estaduais (USP, Unicamp e Unesp) são financiadas com uma parcela fixa do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços (ICMS).

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Gleisi, por Antonio Delfim Netto

Gleisi Hoffmann reassumiu sua cadeira no Senado depois de ter se desincumbido muito bem de suas funções na espinhosa Casa Civil. Testemunhos de importantes interlocutores do setor privado são a prova de que sua inteligência e seu comportamento foram importantes para melhorar suas relações com o governo.
O sucesso dos recentes processos de concessões deve muito à sua ação e à dos ministros Mantega e César Borges, no convencimento dos potenciais concorrentes de que a defesa da "mocidade tarifária", na transferência de monopólios públicos para o setor privado, estava longe de ser o desejo ideológico de construir um "capitalismo sem lucro".
Numa entrevista concedida à competente jornalista Débora Bergamasco, publicada no domingo pelo jornal "O Estado de S. Paulo", Gleisi revela, por um lado, humildade e coragem e, por outro, que captou as dificuldades da administração pública que o PT ainda não entendeu. Por conta da humildade, temos sua réplica à pergunta "por que as respostas do governo são lentas?" Diz ela: "porque dependem da articulação das três esferas da Federação e de vários órgãos".
E acrescenta sem rebuços: "Claro que eu gostaria que tivesse maior celeridade. Claro que se eu tivesse, no início, a experiência e o conhecimento que tenho agora, acho que eu teria conseguido fazer isso".
Mais importante é a sua corajosa reflexão em resposta à pertinente, mas incômoda, pergunta da arguta jornalista: "Qual é a maior dificuldade do governo em fazer o Brasil andar?" Vale a pena transcrever, para iluminar alguns ideólogos das virtudes do estatismo. Ela responde: "Ainda é a falta de cultura da máquina pública de agir por resultado. Temos uma baixa cultura de comprometimento de entregas. O serviço público não está acostumado a isso, então quando nós cobramos resultados muitas vezes tem reação. Quando cobramos metas, organização, não temos o retorno esperado porque é uma questão de cultura e também da própria organização do serviço público, em que a estabilidade está na base e a instabilidade está no comando. Isso faz com que o setor público acabe ficando mais acomodado". A frase é antológica, "a estabilidade está na base e a instabilidade no comando"!
Se há alguma dúvida sobre a verdade essencial dessa ponderação, basta atentar para as dificuldades que estamos vivendo no setor elétrico, além dos problemas climáticos: 40% do volume de energia planejado para estar em operação não foi entregue na data prevista, por dificuldades de toda natureza. Ainda mais lamentável é o descompasso de mais de um ano entre os projetos que estão prontos e as necessárias linhas de tra

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Eu, não, meu senhor'


Menino preso a poste no Rio descende de homens livres, mas a chibata continua lá: dentro da alma

08 de fevereiro de 2014 | 17h 01

José de Souza Martins
Era de noite. Foi no Flamengo. Trinta marmanjos chegaram em 15 motos. Os quatro adolescentes caminhavam para Copacabana, "para tomar um banho de mar". "Era (um) fortão e tinha um magrinho. O magrinho já chegou jogando a moto em cima. Vou matar! Vou matar os quatro!" A moto e a enturmação fizeram o magrinho ficar fortão e valente. O magrinho foi acusando: "Bando de ladrão, fica roubando bicicleta dos outros". Três dos garotos conseguiram fugir. O menino de 15 anos, não. Nenhum deles estava de bicicleta.
Adolescente de 15 anos foi agredido e preso a poste. - Yvonne Bezerra de Mello/Divulgação
Yvonne Bezerra de Mello/Divulgação
Adolescente de 15 anos foi agredido e preso a poste.
Desde quando seus antepassados foram trazidos da África, empilhados em navios negreiros, para serem vendidos no Valongo depois de estirados na praia para destravar o corpo, o menino negro sabe quem manda e quem obedece. O tronco e a chibata no lombo de seus antepassados surraram também sua memória e lhe ensinaram as lições que sobrevivem 125 anos depois da liberdade sem conteúdo da Lei Áurea. A lei que libertou os brancos do fardo da escravidão antieconômica. Mais de um século depois, o menino ainda sabe como é que se fala até mesmo com moleque que herdou os mimos da casa-grande: "Eu não, meu senhor, todo mundo aqui é trabalhador", defendeu-se.
Esse menino descende de homens livres há mais de um século. Mas a chibata ficou lá dentro da alma, ferindo, dobrando, humilhando, criando desconfiança, ensinando artimanhas de quilombo para sobreviver. Esse "meu senhor" diz tudo, fala alto, grita na consciência dos que a tem. Esse "meu senhor" desdiz a liberdade, desmente a Lei Áurea, nos leva de volta aos tempos da senzala, do tronco e do pelourinho. Esse "meu senhor" expressa uma liberdade não emancipadora, que não integrou o negro senão nas funções subalternas de uma escravidão dissimulada, mas não na ressocialização para a liberdade e para a cidadania. Quem acusa o menino não sabe que a sociedade não pode colher o fruto que não semeou.
No dia 13 de maio de 1888 não libertamos ninguém. Continuamos todos escravos da escravidão que não acaba, da moral retorcida que nos legou, da consciência cindida que nos faz crer que somos uma coisa sendo outra. No mundo novo da liberdade abstrata de um contrato fictício não podemos nos encontrar porque não encontramos o outro, não podemos ser livres porque não nos libertamos no outro, não podemos ter direitos de que os outros carecem.
O menino levou uma surra de capacetes. "Bateu, bateu", disse ele a uma repórter. Desmaiou. Foi ferido a faca na orelha. Com uma trava de bicicleta, foi amarrado pelo pescoço num poste. Coisa de gente muito valente, coisa de macho: 30 homens contra um menino franzino. E na Câmara dos Deputados houve quem se orgulhasse disso. Confessou um deputado mais inclinado ao justiçamento do que à Justiça: "Praticou um ato corajoso quem deu uma surra nesse vagabundo, porque os moradores estão cansados de serem roubados e assaltados por essa gentalha". Isto é, gentinha, populacho, ralé. O mesmo tratamento que tinha vigência antes da lei do 13 de Maio, quando o escravo era considerado coisa, semovente, mercadoria, um ser abaixo da condição humana. Mero animal de trabalho, com a diferença de que das azêmolas diferia porque falava, gemia, chorava, sabia.
A Lei Áurea trouxe implícita a igualdade jurídica do negro liberto, coisa que não ficou muito clara na Constituição de 1891, que condicionou a cidadania ao ter propriedade e ao ser alfabetizado, não ser mendigo, não ser mulher, não ser praça de pré. A igualdade do 13 de Maio era, portanto, uma igualdade relativa. Porém, quem não é igual não pode ser livre. O deputado que agora, no próprio Parlamento, se congratula com os agressores do menino negro, revoga a Lei Áurea, restaura a inferioridade social do cativo e dos filhos e herdeiros do cativeiro. Traz de volta o feitor.
O Estado brasileiro, de que o deputado é membro e privilegiado beneficiário, é um Estado omisso, descumpridor das próprias leis que inventa e promulga. A delinquência juvenil é fruto dessa omissão e do desamparo que engendra e alimenta. Mas fruto, também, da pseudocidadania dos atiradores de pedra e dos linchadores, dos que reclamam direitos, omitindo-se quanto aos deveres correspondentes. No próprio caso ocorrido no Flamengo, alguns boyzinhos de 14 que foram presos e já estão soltos declararam que patrulham "o Aterro em busca de potenciais autores de delitos". O caso do menino deixa claro que os "potenciais autores de delitos" têm cor e raça. O vigilantismo reacionário ergue uma muralha de terror para criar um território fechado e excludente, só deles. Uma pátria particular, impatriótica.
O menino foi libertado pelos bombeiros que o socorreram. Tiveram que usar maçarico para cortar o cabo de aço que lhe atava o pescoço ao poste. Foi levado para o hospital. De lá fugiu e foi espontaneamente se apresentar na casa abrigo da prefeitura do Rio. Os agressores louvados pelo deputado não se apresentaram em lugar nenhum. Fugiram. Por aí se vê que ao menos o menino tem recuperação.
JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA USP, ORGANIZADOR E COAUTOR DE O MASSACRE DOS INOCENTES (HUCITEC, 1993)