As taxas de suicídio se incrementam num contexto marcado pela incerteza e perplexidade, e os mais expostos são os jovens que, tendo de construir seu percurso em espaços de alta competitividade, infelizmente sucumbem
14 de setembro de 2013 | 13h 11
Joel Birman - O Estado de S. Paulo
A intenção deste artigo é a de colocar em pauta um conjunto de questões em decorrência do suicídio do músico Champignon, da banda Charlie Brown Jr., em seguida à morte por overdose do seu colega Chorão. A esse cenário trágico deve-se acrescentar o suicídio há alguns meses, por enforcamento, do músico Peu de Souza. A história de suicídio de Champignon se complica, já que esse músico, que substituiu o colega morto, foi seguidamente hostilizado por fãs da banda como traidor por ocupar sua posição em uma nova banda. Nessa medida, a tragédia em questão se situa numa linha tênue entre a dor pela perda do amigo e as múltiplas agressões verbais sofridas da parte de seus fãs. Isso porque tais agressões, nessas circunstâncias, tiveram possivelmente o efeito de incrementar a culpa que se coloca para qualquer sujeito na experiência do luto.
Reprodução
‘Preto e Branco’-Man Ray (1926)
Um primeiro comentário sobre isso é que, paralelamente, no Rio de Janeiro, nos últimos meses alguns jovens de classe média alta se suicidaram de forma violenta e inesperada, causando uma grande comoção entre amigos e familiares. Da mesma forma como Champignon se suicidou abruptamente após um jantar afável com a mulher grávida e amigos, histórias parecidas ocorreram nos suicídios dos cariocas.
Portanto, a primeira questão que se impõe é por que tantos suicídios acontecem com jovens bem-sucedidos na atualidade. Isso não quer dizer, evidentemente, que não ocorram suicídios como esses em faixas etárias outras. Porém, o fato de ocorrerem com jovens tem a potência de nos consternar particularmente, pois se trata de pessoas que tinham uma vida pela frente e muitas possibilidades de resolução dos impasses existenciais que se colocam para todos nós. Por que então esses jovens são lançados abruptamente para o gesto fatal contra si mesmos, sem reconhecerem os horizontes que ainda existiam para eles?
Para responder a isso, é necessário o reconhecimento de que se trata de um fenômeno complexo, que exige uma reflexão que lance mão de um conjunto de saberes, para que não se caia numa banalização psicologista e psicopatológica desse acontecimento limite. Com efeito, é preciso aludir não apenas à teologia e à política, como também ao arsenal das ciências humanas.
Como se sabe, os suicídios não são geralmente divulgados pela mídia. Existe uma interdição em relação a isso, pois se supõe que as narrativas de suicídios possam gerar outros, numa espécie de reação em cadeia. Além disso, essa interdição visa a proteger os familiares dos suicidas, em decorrência do estigma presente nesse tipo de ato fatal.
Contudo, não se pode esquecer que o suicídio é um ato proibido por uma longa tradição religiosa no Ocidente, pois, se Deus nos concedeu a vida, só ele teria o poder de retirá-la. O que implica dizer que, nessa tradição, o indivíduo não teria a liberdade de decidir sobre a própria vida/morte, de forma que se impõe a ele ter que suportar as angústias da existência, inventando formas de lidar com elas.
Esse imperativo religioso foi refundado com a constituição da sociedade moderna, de acordo com Foucault em Vigiar e Punir. Segundo ele, a modernidade se forjou pelo imperativo de promover a vida e afastar a sedução da morte, na medida em que a vida se transformou no campo fundamental para o exercício do poder. Com efeito, se pelo poder disciplinar e pelo biopoder a vida é promovida e a morte apenas acontece quando se torna inevitável, no poder soberano pré-moderno o soberano fazia morrer e deixava viver. Foi em decorrência disso que a modernidade foi marcada por uma intensa e disseminada medicalização do espaço social, na medida em que a saúde foi transformada num dos indicadores fundamentais da qualidade de vida da população e da riqueza do Estado-nação. Daí porque a eutanásia foi proibida em nossa tradição, interdição essa que se mantém ainda hoje, não obstante as múltiplas reações provocadas face a isso na atualidade, em decorrência dos sofrimentos de doentes terminais.
Como se pode reconhecer, a interdição do suicídio conjuga intimamente uma dimensão religiosa com uma dimensão política, de forma que a vida seria regulada pelo poder de Deus e do Estado. Não é, pois, espantoso que o suicídio seja objeto de estigma, provocando horror na população em geral e nos familiares e amigos dos suicidas. No que concerne a isso, é preciso reconhecer que se a perda de alguém que nos é próximo, seja amigo ou familiar, nos é sempre dolorosa, a morte por suicídio é trágica. Com efeito, para esses casos a pergunta que sempre se impõe é se não poderíamos ter impedido o desfecho trágico, se não ficamos cegos e surdos aos múltiplos sinais enviados pelo sujeito. Portanto, a culpa é inevitável entre aqueles que foram próximos dos sujeitos que se mataram, culpa essa que vai marcar suas vidas. Enfim, se os suicidas tiveram que fazer a transgressão limite para realizarem seu ato fatal, pelos interditos religiosos e políticos que delineiam o campo dessa experiência, os familiares e amigos se sentem igualmente responsabilizados por não terem impedido o desfecho.
É inegável que na nossa tradição o ato suicida implica uma situação limite para o sujeito, que se reconhece encontrar num beco sem saída para realizar tal ato. O que implica dizer que, para perpetrar tal transgressão, o sujeito atravessa uma profunda experiência de angústia indizível. Porém, pode-se dizer também que essa experiência se conjuga com o estatuto do individualismo moderno, na medida em que o sujeito aqui em causa não se inscreve numa totalidade social que o subsuma, como ocorria nas sociedades pré-modernas. Nessas, a morte e mesmo o suicídio se inscrevem numa gramática coletiva, ganhando assim foros de heroísmo e grandiosidade, sendo o ato de tais personagens marcados pela coragem e pelos valores éticos superiores. Não é isso que ainda vemos e podemos constatar em diversas culturas asiáticas e árabes, onde os homens-bomba e os camicases se transformam em heróis de suas comunidades, louvados pela coragem e pelos valores fundamentais que os impulsionaram para a morte.
Foi na tradição individualista moderna que o suicídio se transformou num ato maldito. Em decorrência disso, a figura do suicida se transformou na figura do anti-herói e mesmo do covarde, isto é, daquele que não teve coragem para suportar os obstáculos que a vida lhe impôs. Por isso mesmo, nessa configuração antropológica o ato suicida foi transformado num sintoma grave de perturbação psíquica, associado principalmente à experiência da melancolia, mas podendo também ser inserido em outras psicoses.
Em sua leitura do sujeito moderno, Freud procurou pensar a melancolia e o suicídio a partir da experiência do luto. Vale dizer, em face da perda de um objeto amado ou de um ideal, o sujeito vive uma experiência de luto, numa espécie de confrontação ética com a figura do morto, num acerto de contas com suas memórias face ao objeto perdido. Dessa maneira, a melancolia seria uma impossibilidade para o sujeito de aceitar a perda do objeto de amor e dele se separar, de forma a ficar identificado com a figura do morto. Enfim, o ato suicida poderia ser então um ato fatal do sujeito para arrancar de si o objeto que se perdeu, ou então continuar a ele ligado para sempre pela morte.
Contudo, toda essa discussão na atualidade assume novos aspectos cruciais, considerando-se as condições psíquicas do sujeito na contemporaneidade. Assim, face à feroz competição generalizada que existe hoje no contexto social do neoliberalismo, em que a performance se colocou como um imperativo fundamental, a promoção de si mesmo se impôs como uma marca indiscutível da subjetividade contemporânea. Superar os adversários se transformou numa moral disseminada, implicando uma aceleração das formas de viver que são correlatas da aceleração do tempo que se impõe no fluxo das mercadorias e das informações em escala global. Nesse contexto, cada indivíduo se transformou numa microempresa para promoção de si mesmo e da venda de seus produtos, sejam esses materiais ou imateriais, numa multiplicação assintótica de suas performances.
Não é por acaso que o consumo de drogas, sejam essas lícitas ou ilícitas, se transformou numa forma de vida. Com efeito, por esse consumo os indivíduos procuram promover sua performance para estar à altura da competição frenética existente no espaço social. Face a esse excesso intensivo, o sujeito fica turbinado, mas, em contrapartida, nem sempre dispõe de instrumentos simbólicos para lidar com isso. Os efeitos disso são múltiplos, nas tentativas dos sujeitos de lidarem com tais excessos. Se esses forem descarregados sobre o corpo podemos reconhecer a origem das múltiplas doenças psicossomáticas na atualidade, assim como da síndrome do pânico. Contudo, se forem descarregadas para o exterior teremos uma chave para a compreensão da multiplicação da violência e da crueldade na atualidade, assim como para a disseminação das adicções no contemporâneo, que se realizam com diversos objetos, num eixo que se polariza entre a comida e as drogas. Além disso, esse excesso intensivo pode se fazer presente como um corpo estranho para o sujeito, que perde assim suas referências identificatórias, sendo lançado em situações melancólicas.
Assim, pode-se depreender facilmente dessa cartografia como a morte nos assalta como possibilidade, de múltiplas maneiras. Isso porque o excesso como dor não pode ser transformado e metabolizado como sofrimento, pela fragilidade dos operadores simbólicos de que o sujeito dispõe. Com isso, o desamparo que é constitutivo do sujeito, segundo Freud, se transforma em desalento, pois num espaço social permeado pela competição generalizada o sujeito não pode mais contar com o outro como amigo e aliado.
Não é espantoso que as taxas de suicídio se incrementem nesse contexto, marcado pela incerteza e perplexidade. Além disso, não é inesperado que os jovens estejam mais expostos a esses processos, pois tendo que construir seus percursos no espaço de alta competitividade, muitos deles infelizmente sucumbem.
JOEL BIRMAN É PSICANALISTA, PROFESSOR TITULAR DO INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA UFRJ E PROFESSOR ADJUNTO DO INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL DA UERJ