sexta-feira, 23 de julho de 2010

Falta cabeça à conservação

Marcos Sá Corrêa - O Estado de S.Paulo  
23 de julho de 2010 | 0h 00
Parem a motosserras. Vem aí o mapa-múndi das florestas, lembrando que as árvores mais altas da Terra estão espetadas na Costa Oeste dos EUA e no Sudeste Asiático. As da Amazônia mal batem no peito dessas gigantes.
Não é bem esse o planeta que o governo brasileiro desenha quando descreve para a opinião pública o estado da Terra. Nos outros países nem existem mais árvores, não é mesmo? Pena que o mapa seja o tipo da informação que passa de fininho pelo noticiário, enterra-se nos anais acadêmicos e lá desaparece. Aí, ligam-se as motosserras.
O que mais poderia fazer com essa informação quem vive num tempo em que a ciência empurra sem parar a natureza para além do senso comum? Onde havia monstros, prodígios e portentos demarcando os limites do mundo conhecido na cartografia medieval, agora há biomas, efeitos antrópicos e aquecimento global disputando espaço com velhas lendas.
E não será só com notícia ligeira que se pisa em terra incógnita. Falta munição em português para desbravá-la, porque os livros nos quais os naturalistas aprenderam a traduzir para leigos os segredos da realidade saem, geralmente, em inglês. E em inglês permanecem. Só em inglês dá para ler de enfiada e com prazer a história da complicação em que se meteu o biólogo Bernd Heinrich, comprando no Estado do Maine, em 1977, para cultivar uma floresta, terras que fazendas antigas e madeireiras recentes haviam deixado no osso.
Restaurá-la só com salário de professor era, de cara, um projeto falido. Heinrich decidiu reflorestar a propriedade com o dinheiro e a técnica da exploração comercial de madeira. Tiradas num intervalo de três décadas, fotos aéreas do terreno comprovam que ele acertou a mão. Porque essa mão teve cabeça para fazer em cada metro quadrado de suas colinas um considerável investimento de curiosidade e pesquisa. O trabalho lhe rendeu, fora o prazer de morar numa clareira onde hoje alces e ursos vêm comer maçãs, dúzias de livros cotados pela crítica como obras-primas da divulgação científica. E alguns sucessos de livraria.
Como autor, Heinrich pode ser tudo, menos sedentário. Costuma zanzar por suas matas a qualquer hora do dia e da noite, como se estivesse em casa. Controla a cada estação a chegada e a partida dos pássaros, anfíbios e insetos. Sobe em pinheiros com lápis e papel na mão, para rascunhar, lá do último galho, vistas panorâmicas que acompanham a evolução da paisagem. Aponta, pessoalmente, as árvores condenadas às serrarias, para que outras retomem o território que originalmente lhes cabia.
Sua floresta se tornou um modelo vivo de ciência aplicada à conservação. Ele costuma usá-la em aulas de campo. E suas aulas soam convincentes, porque anos atrás um ex-aluno desenganado lhe pediu para deixar seu corpo apodrecer ao relento na mata (o que Heinrich recusou), acreditando que assim chegaria diretamente à única vida após a morte que se pode conferir molécula por molécula.
Não há assunto obscuro e abstrato que Heinrich não torne claro e concreto em duas ou três páginas. A conversa fiada sobre sequestro de carbono, por exemplo. Ela paira no ar há tanto tempo que parece incapaz de pegar na terra. Heinrich a materializa num galho que cresce diante de sua janela, absorvendo por segundo em cada célula 4,6 milhões de moléculas de dióxido de carbono, possivelmente expelidos por "um tronco em decomposição na Amazônia, um carro nas avenidas de Los Angeles, uma usina a carvão no Utah, um pássaro na Indonésia e um babuíno na Tanzânia".
Portanto, "cada célula de madeira em cada árvore" de sua propriedade é um permanente "dá-e-toma com o resto do mundo". Dito assim, parece simples, não? Pois é o mesmo cálculo que o tal mapa-múndi da massa florestal pretende converter à escala planetária. Para que ninguém mais possa dizer que não tem nada a ver com isso. 


Deus é brasileiro (e nasceu em Pernambuco)

2/07/2010 - 01h58

Por Sérgio Malbergier, Folha de S. Paulo


PUBLICIDADE
 
Deus criou o mundo em seis dias, segundo a Bíblia. Lula criou o Brasil em oito anos, segundo ele mesmo.
O que acontecerá ao país agora que seu autoungido criador deixa a cena não parece incomodar muito o ainda mais sensível dos termômetros: o mercado financeiro.
Ninguém parece estar dando muita bola ao que os candidatos à Presidência vêm dizendo ou disseram sobre a economia. Nem mesmo a possibilidade cada vez mais real de o Partido dos Trabalhadores se tornar uma força muito maior no Congresso parece incomodar.
E por que incomodaria? Quem vai tirar o país do seu rumo agora que o encontramos, ufa!, depois de termos tentado todas as outras (im)possibilidades?
O Brasil está em lua de mel com o capitalismo, e se lambuza mesmo quem xinga o mercado.
Por isso esse casamento veio para durar. Não será o próximo nem o outro governo que mudará o tripé de câmbio flutuante, limites fiscais e inflação baixa/BC independente.
As dezenas de milhões de emergentes brasileiros, que só agora ascendem à cidadania do consumo, não vão querer ouvir de socialismo, economia dirigida, mudança do jogo.
O jogo tem que continuar até porque falta muito a jogar, principalmente melhorar o ambiente de negócios, com menos impostos, menos burocracia, menos protecionismo: para que o espírito animal do trabalhador brasileiro realize todo o seu potencial.
Desfrutamos de um bônus demográfico sem precedentes, com taxas de natalidade declinantes, mais adultos em idade produtiva e menos pessoas por lar. Esse conjunto eleva a renda doméstica e a capacidade produtiva do país.
Num mundo que passará dos atuais 6,5 bilhões de habitantes para 9,2 bilhões em 40 anos, nossa enorme e singular capacidade de produzir energia , minérios e alimentos nos torna um gigante pela própria natureza. Nosso mercado interno que desabrocha é outro vetor de prosperidade.
Seria preciso muita cegueira para tirar o Brasil do seu rumo.
A aprovação terrena do Criador, quer dizer, do Lula é mais do que a aprovação à sua figura, apesar da insistência do cada vez mais desinibido culto à sua personalidade.
A aprovação recorde é antes de tudo a aprovação da estabilidade econômica do modelo capitalista, em torno do qual Lula fechou o consenso nacional.
Este é o maior seguro do país contra os aventureiros. Por isso os mercados acordam tranqüilos.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Falta de instrução do eleitorado interfere no aperfeiçoamento da classe política



LEONARDO BARRETO
ESPECIAL PARA A FOLHA 

O Brasil possui 27 milhões de eleitores analfabetos ou que sabem ler e escrever, mas nunca frequentaram uma escola. O dado assusta e lança dúvidas a respeito da qualidade do voto que escolhe parlamentares e governantes. Afinal, como esse eleitor toma sua decisão? Quais são suas características e preferências?
Para responder essas questões, é importante analisar a falta de instrução dentro de um quadro mais amplo. Normalmente, ela está associada a outros problemas como pobreza e falta de oportunidades. A literatura especializada costuma tratar esse tipo de eleitor como sendo mais vulnerável a propostas clientelistas de compra e venda de votos. Faz sentido.
Não é o caso de dizer que essas pessoas são "eticamente inferiores". O problema tem outra natureza. Normalmente, as perspectivas de melhoria de vida delas estão ligadas a algum tipo de ajuda governamental. Políticos se oferecem como intermediários dessas pessoas junto ao poder. Caso ela precise de uma ambulância no meio da noite, por exemplo, saberá para quem ligar. Claro, o elemento de troca do eleitor seria o voto.
Se isolarmos a variável educacional, o analfabetismo incidiria diretamente sobre a (in)capacidade do eleitor de acessar meios de informação ou de construir vários pontos de vista sobre uma questão. Esse eleitorado tende a replicar hábitos que lhes foram passados por costume, como voto por indicação.
A tendência desse grupo é replicar aquilo que o pai ou o avô faziam, sem muita capacidade crítica. Por esse motivo, é muito comum escutar, mesmo nos grandes centros, pessoas dizendo que irão votar "naquele candidato que der uma ajudinha para a família", assim como se fazia no tempo dos coronéis.
Outra consequência é a falta de condições de enxergar diferença entre as alternativas políticas disponíveis. Esse é um problema fatal para a democracia, pois ela é um sistema interminável que funciona na base de "tentativa e erro": punindo os políticos ruins e premiando os bons. Se a capacidade de distinguir quem é quem é comprometida, a democracia perde atratividade.
O dado sobre a falta de instrução do eleitorado mostra que o aperfeiçoamento da classe política passa pela qualificação dos eleitores. Ainda há muito por fazer.

LEONARDO BARRETO é cientista político e pesquisador da UnB