sábado, 31 de agosto de 2024

Candidato surpresinha, Marçal vive glória ainda incerta, Marcos Augusto Gonçalves, FSP

 A rápida ascensão de Pablo Marçal nas pesquisas de intenção de voto interferiu no mapa político paulistano e nacional de maneira que não se previa. A trollagem do autodenominado ex-coach seria, sim, para dar algum resultado. Esperava-se que pudesse levá-lo a ganhar alguns pontos nas sondagens, mas que acabaria ficando por ali, como terceiro colocado sem aspirações à vitória. Acumularia cacife para tentar negociar alguma coisa no segundo turno.

Agora, já é outra história. Depois de o Datafolha flagar, em duas semanas, o salto de 14% das intenções para 22%, foi a vez da pesquisa Quaest reafirmar o empate técnico entre o deputado Guilherme Boulos, o prefeito Ricardo Nunes e Pablo Marçal.

O candidato Pablo Marçal, durante convenção do PRTB, em São Paulo - Rafaela Araújo - 4.ago.24/Folhapress

Espécie de bolsonarista sem Bolsonaro, o candidato surpresinha da eleição paulistana vive um momento de glória, mas não tem garantia de prazo de validade. Muito forte na internet, não terá espaço algum na propaganda de TV que começa nesta sexta (30). Mesmo nas redes, perdeu terreno, com a suspensão de seus perfis determinada pela Justiça. Seu passado nebuloso, com uma condenação criminal, e as conversas sobre supostas ligações com o PCC podem se voltar contra ele.

Por ora, Marçal causa turbulências no campo da extrema direita populista e desafia, com certa ambiguidade e dentro de certos limites, o reinado de Jair Bolsonaro. Pesquisas são retratos de um momento, e neste momento Nunes seria, segundo a Quaest, o grande vitorioso nas simulações de segundo turno. Bateria Boulos e Marçal com certa folga.

Na disputa contra o influenciador, o prefeito teria 47% contra 26%. Já num confronto com Boulos, o emedebista marcaria 46% a 33%. Caso o candidato do PSOL e Marçal passem, a Quaest indica, hoje, um empate em 38% das intenções do eleitorado.

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É fato que a experiência da vitória de Bolsonaro em 2018, em sintonia com a ascensão de líderes de perfil autoritário em outros países, trouxe uma dose extra de cautela nas avaliações sobre o que pode acontecer em eleições neste admirável mundo novo em que vivemos.

Como poucas vezes se viu, nos últimos anos pesquisas foram questionadas por movimentos de última hora ou por correntes mais profundas e não muito captadas. Apostas na predominância das opções institucionais, como partidos com história, postulantes com máquina ou nomes conhecidos do eleitorado tornaram-se mais incertas.

Diferentemente de outras grandes capitais, como o Rio, onde o quadro se mostra menos sujeito a chuvas e trovoadas, a eleição paulistana terá de ser acompanhada passo a passo pelos serviços de medição do clima eleitoral —sem dispensar frequentes olhadelas pela janela para conferir se não há raios caindo do céu azul.

Estive em Buenos Aires alguns meses antes da eleição de Milei. Conversei com amigos, intelectuais, jornalistas, gente informada. Estavam todos assustados com o ultraneoliberal antissistema, mas, talvez um pouco por desejo, céticos quanto a uma vitória. Sim, Bolsonaro era uma referência, mas do Brasil, não da Argentina, um país mais politizado, educado etc

Pois bem, deu no que deu.

PS - Estreia nesta sexta (30) o podcast Bocas de Urna, no qual terei a satisfação de conversar com Mônica Bergamo e Patrícia Campos Mello, duas craques do jornalismo, sobre eleições municipais no Brasil e eleição presidencial nos EUA. Toda semana nas principais plataformas.

Joseph Brodsky cantou num poema sua vida do berço ao túmulo, Mario Sergio Conti, FSP

 Canção de Boas-Vindas (Joseph Brodsky)

Eis sua família, mãe, pai e avós.

Bem-vindo a seu baú de ossos.

Por que perdeu a voz?

Eis aí seu corpo e aqui comida.

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Umas ideias, até bebida.

Bem-vindo à vida.

Eis sua história nova em folha.

Vá em frente, não há escolha.

Bem-vindo à sua bolha.

Eis seu salário e a inadimplência.

O dinheiro é a quinta-essência.

Bem-vindo à sua ausência.

Eis a colmeia, o enxame, multidões.

Bem-vindo a tantas aglomerações.

Você é um em cinco bilhões.

Bem-vindo à tela onde você some.

A democracia deletou seu nome.

Bem-vindo à falta renome.

Bem-vindo ao casamento que cometeu.

E agora a seu divórcio no apogeu.

Bem-vindo, você se fodeu.

Eis você com a lâmina junto à jugular.

Bem-vindo, autoterrorista singular,

A seu Oriente Médio particular.

Apesar do polvo no sonho recorrente,

Eis você no espelho, sorridente.

É seu esse grito de demente?

Eis na TV o debate sobre a crise.

Seu candidato diz uma tolice.

Bem-vindo seja à chatice.

Eis seu cachorro passando apressado

Para fazer xixi na sala, que folgado.

Bem-vindo à sua cara de coitado.

Eis o sabiá que gorjeia de má vontade.

Sua lágrima cai no chá pela metade.

Bem-vindo à vida que se evade.

Eis o raio-X com o nódulo no pulmão.

Bem-vindo o remédio para pressão.

Eis o seu detonado coração.

Bem-vindo à cova que o veste bem,

No cemitério que lhe convém.

É o fim para você também.

Eis seu testamento e ninguém o lê.

No seu enterro, rezar quem há de?

Bem-vinda a vida sem você.

Eis as estrelas que não estão nem aí

Para você ter ou não estado aqui.

Meu velho, é isso aí.

Da sua vida não restou nem o bagaço.

Não se vê pegadas de seus passos.

Bem-vindo, digamos, ao espaço.

Bem-vinda sua morte bem-sucedida.

Se nem Saturno lamenta a sua ida,

Eis uma canção de despedida.

Ao centro, um pássaro cinza de peito laranja lacrimeja. O pássaro está agarrado em uma xícara e suas lágrimas se misturam ao líquido que há nela. O fundo da ilustração é preto com estrelas cinzas.
Bruna Barros/Folhapress

Poesia numa hora dessas? Não tem cabimento fazer massagem cardiorrespiratória numa arte morta e enterrada. Poesia é coisa de quem não tem o que fazer.

Veja-se o autor de "Canção de Boas-Vindas", Joseph Brodsky. Ele nasceu em má hora e num mau lugar, na falecida Leningrado da primavera de 1940. Hitler se aliara a Stálin, que, capitulador, inventou que os nazistas poupariam a União Soviética se ele lhes polisse os coturnos.

Brodsky era bebê quando a Wehrmacht iniciou o morticínio. A batalha durou 900 dias e matou um milhão. Seu pai, fotógrafo, foi convocado pela Marinha; sua mãe, tradutora, fugiu da cidade com o filho.

A família se reencontrou no fim da guerra e morou décadas num apartamento comunal, onde tinham direito a ocupar um quarto e meio. Além de pobres de marré, eram judeus; o antissemitismo, deletério.

Indisciplinado e refratário à tacanhez stalinista, Brodsky largou a escola aos 15 anos. Viajou pela União Soviética fazendo bicos em necrotérios, hospitais e oficinas. Trabalhava o suficiente para sobreviver. Aprendeu sozinho polonês e filosofia, inglês e mitologia.

Aprendeu também o fundamental: poesia. Entusiasmou-se com os metafísicos ingleses (Donne, Marvell), com os modernistas tardios (Auden, Frost) e, na URSS, com a inefável Anna Akhmátova. Como as autoridades achavam que vagabundo e poeta eram sinônimos, ferrou-se.

Foi processado por parasitismo porque teimava em se definir como poeta, atividade "antissocial". Os stalinistas, porém, tinham um ponto: supérflua, a poesia não presta para nada, é craca.

Condenado a cinco anos de trabalhos forçados, nem por isso vestiu a carapuça de dissidente. Era sardônico e desabusado, cáustico e gracioso —"Viva a vagina/ que povoou a China", diz um seu poema—, mas desdenhava a demagogia viscosa da versalhada engajada.

Tornou-se uma batata quente para o regime. Crescia no exterior a campanha para que fosse libertado e publicado. Embora censurada na União Soviética, sua poesia circulava cada vez mais na clandestinidade, sobretudo entre os jovens. Em 1972, foi banido.

Viveu em Nova York e Veneza, namorou muito, inclusive com Susan Sontag, e viajou pelo mundo. Esteve no Rio, e em Copacabana bateram-lhe a carteira. Em contrapartida, escreveu num ensaio que Mussolini deu a estátua do Cristo Redentor de presente aos cariocas.

Ganhou o Nobel em 1987. E fez algo mais prodigioso: passou a escrever em inglês e, como Conrad e Nabokov, virou um mestre no idioma. Tanto que "Canção de Boas-Vindas" foi escrita em inglês.

Nunca voltou a seu país nem viu seus pais. Morreu em 1996, com 55 anos. Está enterrado na ilha de San Michele, em Veneza, perto dos túmulos de Serguei Diaghilev, criador dos Ballets Russos, e de Ezra Pound, poeta.


Desespero ambiental, Helio Schwartsman, FSP

 Cedo ou tarde vai acontecer. A crise climática veio para ficar. Algumas nações sofrem bem mais do que outras. É mais ou menos inevitável que em algum momento algum país ou bloco de países se sinta tentado a apelar para medidas drásticas. Na prancheta, elas existem.

Geoengenharia é o termo guarda-chuva para descrever intervenções humanas com o objetivo de conter o aquecimento global. Ela abarca desde técnicas pouco polêmicas de sequestro de CO2 atmosférico, como o reflorestamento, já amplamente utilizado, até ideias mais ousadas, como a fertilização de oceanos com compostos de ferro, a fim de estimular a produção de fitoplâncton, que também fixa carbono. O problema é que isso nunca foi tentado em grande escala e poderia gerar efeitos adversos dos quais nem desconfiamos.

Máquina de aerossóis desenvolvida para clarear nuvens e refletir mais os raios solares em teste a bordo de um navio em Alameda, na Califórnia - Ian C. Bates/The New York Times - NYT

Uma das propostas mais controversas é a de lançar grandes quantidades de dióxido de enxofre (SO2) na estratosfera. O aerossol resultante refletiria parte da radiação solar de volta para o espaço, produzindo um resfriamento do planeta. O fenômeno ocorre em explosões vulcânicas. A erupção do Pinatubo em 1991 causou uma redução de 0,55ºC nas temperaturas médias do hemisfério norte ao longo do ano seguinte. As incertezas desse processo, contudo, são enormes, e muitos temem que ele possa provocar calamidades climáticas.

Meu ponto é que décadas de temperaturas extremas testarão a paciência de povos e governantes. Seria bom tentarmos acordar desde já regras globais que permitiriam recorrer a esses remédios desesperados e desconhecidos. Parte dos cientistas acredita que só discutir a possibilidade de geoengenharias já representa um "moral hazard" (risco moral). Não discordo da avaliação, mas, mesmo assim, acho importante tentar criar um método para deliberar sobre essas questões. A tentação virá e é melhor que já exista um sistema para lidar com isso do que deixar a decisão para ser tomada a quente.

Samuel Pessôa-70 anos do suicídio de Getúlio Vargas, FSP

 No sábado, 24 de agosto passado, completaram-se 70 anos do suicídio de Getúlio Vargas.

Getúlio Vargas representou uma profunda mudança de governança do capitalismo brasileiro na direção de o Estado ser o grande intermediador da poupança nacional e, portanto, das decisões de investimento.

Na República Velha, criamos mecanismos de mercado de capitais para alocar a poupança doméstica e a poupança externa. Com eles, financiamos boa parcela das ferrovias e dos serviços de utilidade pública nas cidades brasileiras.

Fotografia em preto e branco mostra um homem de óculos sorrindo. Ele está olhando para baixo, usa terno e é calvo.
O presidente da República, Getúlio Vargas (esq.), em visita a Santos (SP) - Laércio - Acervo UH/Folhapress

Havia uma legislação de falência que dava muita segurança para o credor. O mercado de dívida era seguro. Adicionalmente, após os excessos do Encilhamento, no início da República, foi aprovada legislação que obrigava as empresas abertas a serem muito transparentes. O nível de segurança do acionista minoritário era maior do que o do novo mercado da Bovespa hoje.

Esta institucionalidade permitiu o financiamento de muita infraestrutura por meio do mercado de capitais.

Duas grandes guerras e uma Grande Depressão entre elas mudaram esse arranjo. Em parte devido a uma redução dos fluxos de capital, em parte por ideologia, nós escolhemos alterar a regulação de nosso capitalismo.

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A nova lei de falência varguista dava muito poder ao devedor, e as alterações na legislação das empresas abertas deixaram de proteger o interesse dos minoritários. Nesse tipo de capitalismo, fazem mais sentido empresas familiares: a família discute direto com o chefe do Executivo nacional.

Adicionalmente, o período getulista e o interregno democrático foram de baixíssimo investimento em educação. Aceitamos enfrentar uma transição demográfica fortíssima investindo em ensino fundamental 1% do PIB.

Esse modelo entrou em crise com o esgotamento das contas públicas nos anos 1980. Após longa luta contra a inflação, o governo FHC fez esforços para a liberalização dos mercados. Note que, do ponto de vista do gasto social, o governo FHC tem herança equivalente ao do período petista. A diferença é que o PT sonha com o getulismo. Sonha com o Estado intermediando a alocação da poupança nacional.

Lula se incomoda muito com a nova Eletrobras. Há uma limitação no poder de voto do acionista majoritário: ninguém, independentemente da quantidade de ações que tem, pode ter mais do que 10% de peso na assembleia de acionistas. Limites como esse eram corriqueiros no Brasil nas primeiras décadas do século 20 e explicam em boa medida o bom funcionamento do mercado de capitais no período.

Coluna da jornalista Malu Gaspar publicada no jornal O Globo de quinta-feira (28) documenta os esforços que o governo Lula tem feito para que os fundos de previdência de empresas estatais possam investir diretamente em obras de infraestrutura. A experiência passada é muito ruim, com enormes prejuízos aos aposentados.

Com relação à companhia Vale, o presidente comentou: "Uma tal de corporate que, sabe, não tem dono. Um monte de gente com 2%, um monte de gente com 3%. (...) A Vale tinha uma diretoria, eu sabia quem era o presidente da Vale".

Lula tem muitas saudades dos tempos de Getúlio Vargas. A última vez que tentamos reviver esse período terminou na maior crise de nossa história.