Jean-Luc Mélenchon nasceu em Tânger, no Marrocos. Seu pai, gerente de uma agência dos correios, e a mãe, professora primária, nasceram na Argélia, então colônia francesa. Saiu do país com 11 anos, quando a mãe se divorciou e foi para a França.
Naturalizou-se francês. Como o Marrocos não admite a abdicação da cidadania, Mélenchon é binacional, marroquino-francês. Seus detratores o chamam de "o marroquino", rótulo pejorativo dos imigrantes norte-africanos.
A cidadania dupla veio à baila na eleição da Assembleia Nacional. A plataforma do Reunião Nacional, o RN, partido de Marine Le Pen, prometia impedir os binacionais de ocupar cargos relativos à "segurança".
Como não se definia quais cargos seriam esses, os 3,5 milhões de franceses binacionais ficaram num limbo jurídico. Empregos nas forças armadas ou na polícia, de parlamentar ou ministro, lhes seriam proibidos?
O repúdio à ideia foi unânime. Assim como Mélenchon, ex-ministro e ex-senador pelo Partido Socialista, outra franco-marroquina, Rachida Dati, tem papel destacado na França. De direita, ela foi ministra da Justiça e chefia agora a pasta da Cultura.
Criar uma categoria de pessoas com menos direitos que as outras é racismo —os imigrantes e seus filhos, na maioria muçulmanos, saem da África e do Oriente Médio para viver na França. Depois de um período regulamentar, pleiteiam a cidadania plena.
Le Pen propugna o "direito de sangue", que define como cidadãos aqueles em cujas veias corre o imemorial sangue gaulês. Faz letra morta do "direito de solo", inscrito na primeira Constituição adotada pela Revolução de 1789, que considerou francês quem vivia no país, viesse de onde fosse.
Depois de cada eleição, o Ministério do Interior classifica os partidos que a disputaram. No ano passado, após a votação para o Senado, o Ministério disse que o RN é de extrema direita. Le Pen, que quer ser vista como da direita republicana, recorreu à Corte Constitucional, o STF de lá.
A Corte chancelou a etiquetagem. Considerou o Reunião Nacional de extrema direita porque, além de racista, o partido tem outras práticas antirrepublicanas: cultua uma chefa; é um guarda-chuva que abriga islamofóbicos e antissemitas; tem a hierarquia de uma seita.
Mas há no Brasil quem diga que o RN é só de direita. Os que falam isso visam a política local, não a francesa. Parecem dizer: um Tarcísio desses precisa abrandar a retórica brucutu, para lubrificar uma aliança eleitoral entre bolsonaristas, a direita e o centrão.
Há também quem tache a França Insubmissa, o partido de Mélenchon, de extrema esquerda. Segundo o Ministério do Interior, contudo, ele é da esquerda sem adjetivo; os extremistas são violentos, anticapitalistas e insurrecionais.
Mélenchon se filia ao radicalismo, a corrente iniciada pelos tribunos da plebe da Revolução Francesa; Marat, Danton e Robespierre. Ao contrário de Marx, que considerou a Revolução burguesa, Mélenchon diz que, impelida pelos trabalhadores, ela foi popular e potencialmente igualitária —e portanto deve ser completada.
Por isso, o programa da Nova Frente Popular prega a ruptura radical com a política carcomida, useira e vezeira em tramoias que mantêm seu status e os lucros escorchantes dos ricaços.
Nos primeiros 15 dias de seu eventual governo, diz a plataforma, a aposentadoria será aos 62 anos, e não aos 64; a França defenderá o cessar-fogo na Ucrânia e Gaza; o preço dos produtos de primeira necessidade será controlado; o salário-mínimo subirá para € 1.600.
Quem paga a conta? Thomas Piketty, economista insuspeito de extremismo, disse que a Nova Frente Popular explicou em detalhe quais seriam as fontes das despesas. Já a crème de la crème odiou o programa, e Mélenchon apanhou mais que Judas em Sábado de Aleluia.
Foi xingado de populista, antissemita, capacho de Putin, stalinista, demagogo e chavista. Foi divertido ver a francesada chique bufar até perder o fôlego. Mas a gritaria histérica mostra que Mélenchon não será nomeado primeiro-ministro nem a pau. Nunca? A ver.
Ele é dado a arroubos líricos. Minutos depois do anúncio que a Nova Frente Popular vencera a eleição, mas sem maioria absoluta, Mélenchon fez um discurso belo e político, palavras que não costumam andar de mãos dadas. Encerrou-o com versos de "Ma France", de Jean Ferrat. Eles podem ser traduzidos assim:
O sol que aquece a França
De Ardèche até a Bretanha
É claro como uma criança
Que dança na nova manhã,
Minha França.
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