Era sexta-feira, 18 de julho de 1969, quando os guerrilheiros da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) chegaram ao palacete da Rua Bernardino Santos, no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Após o fiasco do assalto ao Banco Aliança, não havia margem para erros naquela operação. Quem resistisse deveria ser eliminado, e caso alguém fosse capturado, o suicídio era recomendado. Armados com um arsenal de guerra, os militantes não precisaram derramar sangue. Localizaram o cofre do ex-governador de São Paulo Adhemar de Barros, colocaram-no na traseira de um Chevrolet Veraneio C-14 e fugiram com US$ 2,5 milhões para Jacarepaguá, na zona oeste.
Na época, a quantia roubada equivalia a 10,3 milhões de cruzeiros novos, valor que, atualizado, seria de R$ 126,9 milhões. A ação da VAR-Palmares, grupo ao qual a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) era ligada, no palacete de Santa Teresa, foi o maior assalto cometido por um grupo adepto à luta armada durante a ditadura militar. Em diferentes ocasiões, Dilma negou ter participado do roubo do cofre ou de qualquer outra ação armada. Colegas de militância afirmam que ela atuava na retaguarda da organização, guardando armas e distribuindo recursos. Dilma chegou a trocar parte do dinheiro roubado em uma casa de câmbio no Copacabana Palace.
Dois meses após o roubo, o comandante da VAR-Palmares, Carlos Lamarca, reivindicou a autoria da ação em uma entrevista à agência internacional France Press (AFP). “Após uma longa investigação, descobrimos o local onde se encontrava a ‘caixinha’ do ex-governador de São Paulo”, afirmou o ex-capitão do Exército, classificando a operação como “a mais importante expropriação financeira revolucionária da América Latina”. A entrevista, distribuída pela AFP aos jornais do Rio, foi apreendida pelo Ministério da Aeronáutica, e o autor do texto, o jornalista francês François Pelou, foi expulso do País no ano seguinte, após outro atrito com a ditadura militar.
Toda a ação do grupo de extrema esquerda foi narrada pelo jornalista Tom Cardoso no livro “O cofre do Dr. Rui” (Civilização Brasileira, 2011). O autor entrevistou guerrilheiros que participaram do roubo e a obra lhe valeu o 2º lugar no Prêmio Jabuti na categoria livro-reportagem, em 2012.
Confira detalhes do roubo e seus desdobramentos:
A amante
Conhecida nos meios políticos pelo pseudônimo de dr. Rui, Ana Benchimol Capriglione foi amante de Adhemar de Barros. O caso do ex-governador paulista com a socialite carioca era conhecido na época. Em seus respectivos livros de memórias, tanto o antropólogo Darcy Ribeiro quanto o economista Roberto Campos relatam encontros com Adhemar na casa de sua amante, na Praça da República, em São Paulo. Conta-se que o então governador costumava despachar da casa de Ana, e o codinome de dr. Rui foi escolhido porque era o nome do dentista de Adhemar.
Exilado em Paris após ser cassado, o ex-governador paulista morreu em março de 1969, poucos meses antes do assalto. Na época, acreditava-se que Adhemar de Barros, conhecido pela bordão “rouba, mas faz”, havia deixado oito cofres repletos de dólares e documentos que poderiam comprometer a elite política e os militares que governavam o País – fato que nunca foi comprovado. Depois da morte do ex-governador, Ana reuniu parte do espólio e o guardou em um cofre na casa de seu irmão, o cardiologista Aarão Burlamaqui Benchimol. Localizada em Santa Teresa, a imensa construção do início do século 19 possuía mais de 30 cômodos. O cofre foi escondido embaixo de uma escadaria no segundo andar do palacete.
O estudante Gustavo Schiller, sobrinho de Ana, revelou o paradeiro do cofre à VAR-Palmares após ouvir uma conversa sobre ele em casa. Morando no palacete, o jovem de 19 anos contou a um militante que sua tia havia escondido um cofre pertencente ao ex-governador paulista, contendo cerca de US$ 200 mil e documentos ligando Adhemar de Barros e o então presidente Artur da Costa e Silva ao jogo do bicho. Mais tarde, ficou claro que não havia nenhum documento no cofre e que a quantia em dinheiro era superior ao estimado por Schiller. À polícia, o estudante disse ter revelado a informação aos guerrilheiros porque acreditava que “o dinheiro seria usado no processo revolucionário brasileiro”.
Alguns meses após o roubo do cofre, Gustavo Schiller foi a Porto Alegre atuar como militante de uma dissidência da VAR-Palmares. Lá, ele foi preso pelo delegado Sérgio Fleury, do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) de São Paulo, que estava na cidade para capturar Edmur Péricles Camargo, dirigente do grupo de guerrilha urbana Marx, Mao, Marighella e Guevara (M3G). Na prisão, Schiller foi torturado por meses até ser libertado, junto com mais 69 militantes, em troca da liberdade do embaixador da Suíça, Giovanni Bucher, sequestrado por Lamarca.
O roubo
Batizado por Carlos Lamarca como “a grande ação”, o roubo do cofre de Adhemar foi a grande aposta da VAR-Palmares. Acreditando que os US$ 200 mil e os documentos comprometedores para o presidente Costa e Silva poderiam virar o jogo contra a ditadura militar, a organização escalou seus melhores quadros para o assalto ao palacete de Santa Tereza. Ao todo, 11 militantes participaram da operação liderada pelo sociólogo Juarez Guimarães de Brito. Apesar de ser um dos principias dirigente da VAR-Palmares, Lamarca não participou.
Por volta das 15h30 da sexta-feira, 18 de julho, um Willys Itamaraty branco estacionou a 20 metros do portão de entrada do palacete de Santa Tereza. Do carro saiu o ex-sargento do Exército Darcy Rodrigues. Ao volante estava o professor de geografia Reinaldo José de Melo, com a experiente atiradora Sônia Lafoz ao lado, armada com um fuzil calibre 765 e algumas granadas. Logo em seguida, chegaram um Chevrolet C-14 cinza e um Ford Rural verde e branco, com outros oito guerrilheiros, a maioria vestido de terno e gravata, parando em frente ao portão principal.
O ex-sargento José de Araújo Nóbrega saiu do Chevrolet C-14 cinza disfarçado de policial federal, com um falso mandado de busca e apreensão. Ele e um grupo de militantes dirigiram-se à guarita do vigia, alegando estar ali para apreender armas e documentos subversivos. No entanto, o vigia não acreditou na história, pois o dono da casa era amigo de generais do regime militar. Quando o guarda resistiu, o estudante Wellington Moreira Diniz apontou duas pistolas calibre 45 para o vigia, enquanto carregava uma metralhadora Thompson nas costas.
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Após renderem o guarda, os guerrilheiros estacionaram o Chevrolet C-14 na entrada do palacete. Todos os funcionários foram trancados no escritório do dr. Aarão, enquanto o único morador presente na casa foi preso na despensa. Os militantes colocaram placas de madeira na escada para descer o cofre do segundo andar. Em menos de 30 minutos, o cofre estava no carro a caminho de uma casa em Jacarepaguá, onde foi aberto com um maçarico. Foi só então que a VAR-Palmares descobriu que havia roubado não US$ 200 mil, mas US$ 2,5 milhões.
O detetive Nelson Duarte, conhecido como um dos “12 homens de ouro” do general Luiz de França Oliveira, foi o primeiro policial a chegar ao local do crime, minutos após a saída dos guerrilheiros. Duarte vasculhou os mais de vinte cômodos do segundo andar. Nada estava fora do lugar. As joias, as baixelas de prata e as porcelanas inglesas permaneciam intocados. Porém, ele não deixaria o local enquanto não colhesse os depoimentos de todos os empregados e moradores.
Após conversar com o dr. Aarão, Duarte foi informado de que Ana Benchimol havia pedido ao irmão para guardar um cofre no palacete. Com essa informação, o detetive pediu que Aarão ligasse para a irmã e a chamasse para ir até a mansão em Santa Tereza. Durante a conversa com Duarte, Ana admitiu que o cofre roubado era dela, mas afirmou que estava vazio. Duarte não acreditou na versão de Ana, que mais tarde seria contestada tanto pelo sobrinho Gustavo Schiller quanto pelo guerrilheiro Carlos Lamarca.
O racha
Um ano após a “grande ação”, apenas dois dos 11 guerrilheiros envolvidos no assalto de Santa Teresa permaneciam ativos. Seis estavam exilados, dois haviam sido mortos e um havia se matado, relata Tom Cardoso no livro “O cofre do Dr. Rui”. Na tarde de 18 de abril de 1970, cercado por militares do I Exército em uma rua do Jardim Botânico, na zona sul do Rio, o sociólogo Juarez Guimarães de Brito pegou a arma da companheira Maria do Carmo Brito e atirou na própria cabeça. Maria do Carmo foi presa e torturada pela ditadura militar.
Enquanto a maioria dos militantes que participaram do roubo do cofre estava neutralizada, os dólares roubados foram se perdendo com o tempo. Meses após a ação em Santa Teresa, a VAR-Palmares se dividiu em duas organizações: a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e a Vanguarda Armada Revolucionária (VAR). A divisão do dinheiro roubado gerou um grande atrito entre os militantes. No fim, a maior parte do dinheiro restante ficou com a VPR, liderada por Carlos Lamarca, mas mais da metade da quantia não estava mais sob o controle direto dos guerrilheiros no Brasil.
Em uma entrevista ao Estadão, em julho de 2009, Maria do Carmo contou que a VAR-Palmares depositou US$ 1 milhão em uma conta na Suíça após o roubo. A operação bancária contou com a ajuda do então embaixador da Argélia no Brasil, Hafid Keramane, e do ex-governador de pernambucano Miguel Arraes, e tinha como objetivo ajudar os militantes exilados e financiar as operações do grupo no exterior.
Oito meses após o assalto, em 4 de fevereiro de 1970, a revista Veja publicou a história do roubo do cofre de Adhemar de Barros como capa da edição nº 74. A reportagem se baseou nas informações levantadas por Duarte e sua equipe. Na época, tanto a família de Adhemar de Barros como Ana Benchimol Capriglione afirmaram que o cofre não pertencia ao ex-governador paulista. Ana manteve até o fim a versão de que o cofre estava vazio.
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