sábado, 6 de julho de 2024

Edição de Sábado: Biden e a sombra de 1968 MEIO

Por Flávia Tavares e Pedro Doria

A polícia descia com virulência os cassetetes, na noite de 28 de agosto, em 1968, em frente ao Anfiteatro Internacional de Chicago. Ali dentro, as delegações estaduais do Partido Democrata tentavam definir quem seria o candidato à presidência do partido. Fora, desde a tarde, polícia e jovens manifestantes de esquerda se já enfrentavam com violência crescente. Bombas de gás foram atiradas. Policiais erguiam baionetas, os rifles com faca na ponta que pareciam vindas de uma guerra do início do século. Apenas um dia antes, Walter Cronkite, âncora da TV CBS, o homem visto como o mais confiável de todos os Estados Unidos, havia mandado apontar as câmeras ao vivo, ali mesmo dentro da convenção, quando seu melhor repórter começou a ser agredido por seguranças do partido. “Não toque em mim a não ser que tenha a intenção de me prender”, falava ao vivo Dan Rather, o correspondente na Casa Branca. O mesmo homem que, alguns anos antes, havia informado o país de que o presidente John Kennedy estava morto. A violência vinha crescente, e de toda parte, nos Estados Unidos daquele ano. O pastor Martin Luther King havia sido assassinado. O senador Robert Kannedy o seguiu. O presidente Lyndon Johnson, sob pesada pressão, renunciou à candidatura e não disputaria a reeleição. Os protestos contra a Guerra do Vietnã convulsionavam o país. E enquanto os democratas se dissolviam no caos, um populista de direita se preparava para se eleger presidente. Richard Milhous Nixon.

2024 não é 1968. Não há assassinatos políticos nos Estados Unidos. Mas os últimos cinco ou seis anos vêm forçando semelhanças. Nunca um período da história esteve tão parecido quanto aquele — e isso preocupa. O movimento Black Lives Matter chegou, em seu braço mais radical, a propor o corte de verbas e até a extinção da polícia no país. Como os Panteras Negras discursavam dizendo que a polícia era inimiga de todo cidadão e cidadã negros. A Ku Klux Klan estava ativa como nunca, assim como manifestantes de extrema direita marcharam com tochas em Charlottesville jurando que não seriam substituídos por judeus. O movimento estudantil caiu para a esquerda em 1968, por conta da Guerra no Vietnã, como nunca fizera antes. Como ocorre agora, por conta da Palestina. São momentos raros, 68 e 24, em que a esquerda estudantil se descolou por completo do núcleo do partido democrata. O populismo autoritário de direita não era visto, nos EUA, desde a Guerra Civil. Mas em 1964, com a candidatura do senador Barry Goldwater, um racista declarado enfrentou Johnson pelo flanco republicano. Ele perdeu, e perdeu feio. Mas transformou o partido que agora escolhera Nixon para 1968. E, perante o caos da esquerda, o desastre do Vietnã, apesar de ter feito um governo de muito sucesso internamente, muito sucesso principalmente em avançar com os direitos civis de afroamericanos e eliminar de vez a pobreza extrema no país, Johnson se viu repudiado por completo pela esquerda. Encurralado. Até decidir aquilo que Joe Biden não parece conseguir fazer. Desistir de uma candidatura condenada ao fracasso.

Renúncia

“Boa noite, meus companheiros americanos. Nesta noite, quero falar com vocês sobre paz no Vietnã e no sudeste asiático.” Não era só disso que o presidente dos Estados Unidos queria falar. Eram 21h de um domingo, 31 de março. Lyndon Baines Johnson, então com 60 anos, estava solene. Convocara rede nacional para fazer um pronunciamento, de cerca de 40 minutos, absolutamente ciente da gravidade de cada palavra, de cada movimento que escolhesse fazer. Na reta estavam a vida de meio milhão de rapazes americanos, já àquela altura desorientados num país de densa selva tropical, lentamente se afundando no outro lado do mundo. Enquanto travavam uma guerra mais que inglória, Johnson via derreter, por consequência da sua decisão de mandá-los para lá, o destino de seu partido, sua carreira política e seu legado. Talvez a própria democracia, ameaçada diante de uma divisão tão contenciosa entre os cidadãos americanos.

Por isso, na véspera, Johnson pedira conselhos a Horace Busby, um assessor que escrevia seus discursos mais importantes, sobre o que dizer. Ouviu que o prazo estava se esgotando. Na terça-feira seguinte, aconteceriam as primárias de Wisconsin, em que, por lei, todos os candidatos à eleição presidencial daquele ano deveriam aparecer na cédula. Se Johnson quisesse desistir de tentar a reeleição, seria melhor que o fizesse logo, antes de perder uma primária e dar a entender que sua renúncia era choro de perdedor.

LBJ, como era conhecido, contemplava a possibilidade de não concorrer havia meses. Catapultado ao cargo depois da morte de John Fitzgerald Kennedy, de quem era vice, em 1963, e eleito como cabeça de chapa em 1964, ele estava cansado. Em meados de 1967, já havia pedido a seu secretário de imprensa, George Christian, que produzisse um rascunho anunciando sua decisão de não disputar novamente. Àquela altura, sua maior preocupação era a saúde. Embora relativamente jovem, o presidente já havia sofrido um ataque cardíaco doze anos antes e sabia que os homens de sua família morriam cedo.

Mais do que a morte, Johnson temia a invalidez. Sua mulher, lady Bird, pausava aflita diante do quadro de Woodrow Wilson na Casa Branca, que sofrera uma série de derrames incapacitantes depois de negociar o fim da Primeira Guerra Mundial. “Eu sei o que sempre penso diante do retrato de Wilson. Naquele rosto você vê o pedágio do cargo”, ela escreveria a um amigo. Só que optar por não tentar permanecer no cargo mais alto de um dos países mais poderosos do planeta não é algo que se faça sem pesar — e sopesar.

Johnson recuou. Chegou a considerar fazê-lo em janeiro, no discurso de Estado da União, mas ponderou que não ornava anunciar um grande plano de combate ao crime e uma renúncia à reeleição no mesmo dia. E tinha esperança de fazer um discurso inspirador o suficiente para unir a população, profundamente cindida e hostil, e dar a partida em sua campanha. O que havia acontecido? Em 1963, os Estados Unidos pareciam tão unidos na tristeza da morte de um jovem e carismático presidente. Não mais. Eram americanos contra americanos. Havia raiva nas ruas. E assim, em 31 de março de 1968, Lyndon Johnson, o 36º presidente dos Estados Unidos, anunciou que não concorreria à reeleição, deixando o país todo estupefato. Era disso que Johnson queria falar naquela noite.

O peso de uma guerra

O desempenho desastroso de Joe Biden no debate contra Donald Trump — confronto que ele mesmo convocou antecipadamente — e as dúvidas sobre a saúde do presidente colocaram o Partido Democrata, e a mídia simpatizante, em pânico. Antes mesmo já se ensaiava a comparação com 1968, que se intensificou dramaticamente na última semana. A maioria dos que recorrem a ela argumenta que a renúncia de Johnson é inspiradora, que ele colocou as necessidades do país acima de seu desejo de poder, e que Biden deveria seguir seu exemplo diante do que parece ser uma cada vez mais provável derrota para Trump. Alguns vão além e sugerem que Biden renuncie não só à corrida presidencial mas à presidência, dando espaço para que sua vice, Kamala Harris, cresça e apareça como candidata. Do outro lado, estão os que apontam que Johnson desistiu da disputa, mas os democratas optaram por um novo candidato que não foi capaz de lhes entregar a vitória. Na prática, a decisão de Johnson entregou os EUA a Richard Nixon e, a seu modo, o republicano também corroeu a democracia quando agiu para sabotar a eleição de 1972.

Mais do que o desfecho daquele pronunciamento de março de 1968, a comparação pode se estender ao contexto político dos EUA naquele momento. E o primeiro ponto em comum é o fato de que o país está hoje, como estava lá atrás, envolvido numa guerra cujo propósito é questionado por uma parte importante do eleitorado identificado com os democratas. Claro, a ressalva é importante, os EUA não estão lutando em Gaza. Mas apoiam Israel — como sempre apoiaram, tanto democratas quanto republicanos. Principalmente e historicamente, democratas, o partido de preferência da maior comunidade judaica fora de Israel no mundo. No final de 1967, mais de 500 mil soldados americanos estavam no Vietnã e ao menos 15 mil morreriam em combate. Aquela era uma guerra escolhida por Johnson, construída por Johnson, ampliada por Johnson. E os generais ainda vinham pedindo mais 200 mil homens e US$ 12 milhões para tentar vencer quando muitos, no governo, já sentiam que a vitória era impossível. Mas a natureza da pergunta que paira agora e atormentava o flanco mais à esquerda do Partido Democrata em 1968 é a mesma: O que estamos fazendo com aquelas pessoas no Vietnã/Palestina? O que o país faz, fora de suas fronteiras, com pessoas não-brancas?

Muitos especialistas insistem que a dimensão dos protestos anti-guerra na Faixa de Gaza não é, nem de perto, comparável aos dos contra a Guerra do Vietnã. Eles pipocavam, numerosos, em todo o país, o que dificultava até a locomoção de Johnson para a campanha. Acontece que o efeito de ambos os descontentamentos é semelhante: o racha na esquerda americana. E aqui cabe a nota de que a esquerda nos EUA é de liberais progressistas, em sua imensa maioria. Não tem as raízes marxistas da esquerda europeia e latinoamericana. Embora haja, dentro do Partido Democrata, uma ala que urge por um recuo da Casa Branca em seu apoio incondicional a Israel, esse não é nem de perto o consenso. O encontro que existe é o de repúdio à intransigência do governo de Benjamin Netanyahu. Chuck Schumer, líder democrata no Senado e o judeu de cargo mais alto na democracia americana, denunciou em plenário a postura de não negociação do atual governo israelense. Mas boa parte dos eleitores do partido, e o comando democrata, apontam para a esquerda ter perdido sua capacidade de perceber nuances. Israel tem o direito de se defender após sofrer o ataque mais bárbaro de sua história. Em contraposição, fora dos quadros partidários, há uma juventude que se revoltou com a intensidade da reação de Israel ao ataque terrorista de 7 de outubro a ponto de adotar slogans e posturas antissemitas. O fato é que há eleitores que seriam cativos de Biden simplesmente lhe virando as costas.

Nas primárias de New Hampshire, em março de 1968, Johnson quase perdeu para o outro democrata que decidiu tentar a indicação do partido, senador Eugene McCarthy, de forte discurso anti-guerra do Vietnã. Não bastasse, quatro dias depois, em 16 de março, um outro democrata, dinástico e imensamente carismático, também contrário à guerra, se apresentaria como candidato. Era Robert Fitzgerald Kennedy. Bobby. Irmão do presidente assassinado e que detestava Johnson. O apreço era mútuo. LBJ pressentia uma derrota nas primárias de Wisconsin, na terça seguinte a sua renúncia.

A popularidade de Johnson afundava — o índice de aprovação caiu de 61% no início de 1966 para 38% em outubro de 1967. A situação de Johnson havia se agravado nessa frente quando, no fim de janeiro, forças do Norte do Vietnã (soldados do Exército norte-vietnamita e vietcongues) empreenderam a Ofensiva do Tet. Apesar de caótica, e ao fim, fracassada, a operação teve sucesso em desmanchar qualquer ilusão de progresso na empreitada militar e a respeito do comando do presidente. Antes da ofensiva, 50% dos americanos achavam que os EUA estavam avançando para uma conclusão positiva na guerra. Depois, essa parcela caiu para 33%. E espantosos 49% diziam que os EUA não deviam ter se metido com o Vietnã para começo de conversa. Era uma guerra insustentável politicamente.

Quem vem?

Bobby Kennedy ainda tinha mais um atrativo. Ele era muito próximo de Martin Luther King, o líder do movimento negro americano. E essa era a contenda interna com a qual Johnson precisava lidar. Johnson conseguiu implementar, em alguma medida, sua “Grande Sociedade” — programa social que levou ao estabelecimento do Medicare e do Medicaid, o maior avanço em saúde pública da história até o Obama Care. E foi em sua gestão, em 1964, que se assinou o Civil Rights Act, a legislação que proibia a discriminação com base na raça, cor, sexo, origem nacional ou religião. Só que a violência policial contra negros nos grandes centros e a demora da sociedade para superar a nefasta segregação turbinava tanto o movimento pacifista de Luther King quanto o armado dos Panteras Negras. Somado aos manifestantes contra a guerra, e até a um grupo terrorista de esquerda, o Weathermen, esse conjunto de revoltosos formava um caldo de inquietação que tomava ruas às multidões. Era uma esquerda completamente desalinhada do mainstream do partido que Johnson, um texano conhecido pela capacidade de costura de acordos parlamentares, representava.

Da mesma forma, hoje, a esquerda radicalizada — que tem, além dos universitários pró-Palestina e virulentamente anti-Israel, o Black Lives Matter e os movimentos que defendem o “Defund the police”, ou o fim dos recursos para a polícia — está dissonante de Biden e do mainstream do partido. (E, nesse ponto, a vice Kamala Harris, mulher negra, tem um apelo importante com a demografia alvo dos democratas). Se não há hoje um substituto de Biden com a força de um Robert Kennedy, numa mórbida semelhança, em 1968, também não haveria, no fim das contas. Bobby foi assassinado no dia 6 de junho (por um palestino, mas que, até onde se provou, não agiu motivado por esse conflito). Aquele annus horribilis da política americana também já tinha testemunhado o assassinato de Luther King, em abril.

Mas, quando Johnson decidiu desistir da campanha, havia para os democratas uma alternativa muito plausível de vitória com Bobby enfrentando o republicano Richard Nixon, cuja plataforma principal era a restauração da “lei e da ordem”. Bobby parecia ser capaz de juntar a esquerda e o centro democratas, a elite do partido e os jovens mais combativos. Mas Bobby não houve. Perdeu a vida quando estava prestes a vencer a primária do maior estado, a Califórnia.

Naquele pleito, havia um terceiro candidato posto, um candidato independente, porém relevante: George Wallace, então governador do Alabama, ligado à Ku Klux Klan, pró-segregação. Ele fora do Partido Democrata antes e voltaria a se filiar aos democratas depois. Em 1968, os democratas ainda carregavam em seu interior os racistas do Sul que vinham do tempo da Guerra Civil e os republicanos ainda eram o “partido de Lincoln”. Foram justamente os governos de Kennedy e Johnson, ao forçar o fim da ideia de que segregação poderia ser legal, que inverteram os sinais. Por isso, em 1968, Wallace ainda atraiu votos democratas no Sul com seu discurso abertamente racista.

Mas Nixon também perseguia esses votos, com sua Southern Strategy, e se rendeu à retórica da direita populista inaugurada pelo republicano Barry Goldwater. Eles implementaram o programa de atrair para o partido aqueles eleitores ligados ou simpáticos à Ku Klux Klan que foram alienados pela política democrata dos anos 1960. Não à toa, Trump, o presidenciável que responde a quase 90 acusações criminais em quatro processos distintos, copia descaradamente Nixon e sua promessa de “lei e ordem” — e desde 2016. Numa primeira camada, no discurso xenófobo, baseado na ideia de que os imigrantes ilegais promovem a criminalidade no país. Agora, sua investida mais recente é na insistência de que as cidades administradas por democratas enfrentam uma verdadeira anarquia, beirando a guerra civil, de tanta violência. Como de costume, nada disso se sustenta nos fatos.

Os democratas chegaram às eleições de 5 de novembro de 1968 com Hubert Humphrey como candidato. Ele era vice de Johnson e herdou o ônus da impopularidade da guerra. Não tinha qualquer relevância, apesar do cargo. Era, por si, uma ausência. Mais do que isso, foi escolhido na convenção democrata de agosto, em Chicago, a portas fechadas. Do lado de fora, enormes protestos anti-guerra e pelos direitos civis tomaram forma e foram brutalmente reprimidos pela polícia. O caos se instalou. Como se os democratas de 2024 estivessem convidando a balbúrdia para sua festa, a convenção partidária deste ano está marcada para acontecer em Chicago também. Ativistas pró-Palestina já estão na Justiça lutando pelo direito de protestar diante do United Center. E, se depender de parte relevante do partido, é possível que se chegue à convenção sem um candidato à presidência definido.

Diferentemente de Johnson, Biden assegurou sua indicação nas primárias deste ano. Não sem ouvir um sonoro voto de protesto de mais de 650 mil democratas, que marcaram “descompromissados” nas cédulas ou escreveram outros nomes. Como aconteceu depois da morte de Robert Kennedy, o partido não tem hoje um candidato pronto para assumir o lugar de Biden. E o risco de derrota para Donald Trump seguirá grande. Trump junta, em si, o reacionarismo racista de Goldwater com a completa falta de escrúpulos de Nixon. Ele tem, em si, as piores características dos dois piores candidatos republicanos do século 20.

E, enquanto o Partido Democrata demora para se decidir, os EUA simplesmente pararam de prestar atenção no perigo que o republicano representa. A Suprema Corte concedeu a Trump, um candidato que fala abertamente de vingança e retaliação, imunidade quase total. Os reacionários que o apoiam montaram o Projeto 2025, plano de tomada da máquina federal para reformular os princípios da autoproclamada “maior democracia do mundo".

Nos 39 minutos de discurso que antecederam o anúncio surpreendente de sua desistência, Johnson fez questão de pontuar que ia lutar pela paz a qualquer custo. Que cessaria os bombardeios ao Norte para trazer os vietnamitas à mesa de negociação para valer. E que, para cuidar do povo americano, precisaria estar inteiro na função de presidente, sem gastar energia buscando a reeleição. Colocou o legado de sua presidência acima do seu legado pessoal. Biden será capaz de fazer o mesmo?

 

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