Foi duro assistir ao debate americano. Primeiro, pelo show de mentiras e demagogia de Trump. Segundo, e mais importante, pela agonia de ver Biden falar, torcendo a cada pergunta para que ele concluísse suas frases ao menos de forma inteligível. Nem sempre conseguiu. Trocava nomes, esquecia palavras, perdia o fio da meada.
Uma pesquisa da CBS News/YouGov publicada no domingo mostra que 72% dos eleitores creem que Biden não tem a saúde mental e cognitiva necessária para servir como presidente. Antes do debate, eram 65%. Os sinais estão claros. Ele perde para Trump em todas as pesquisas. Precisa virar o jogo: aparecer mais, gerar fatos positivos, surpreender o eleitorado. Qual a chance de consegui-lo? Entrevistas e aparições públicas realçam apenas sua fragilidade física e mental.
Biden cumpriu sua missão ao vencer um presidente que ameaçava a democracia em 2020 e ainda entrega números razoáveis. Crescimento médio do PIB de 3,5% ao ano; desemprego de 2024 a 4%. A inflação, alta até 2022, caiu e deve ficar em torno 3% este ano. Ele poderia declarar que cumpriu sua missão e que abrirá espaço para alguém mais jovem e dinâmico. Ao fazê-lo, coroaria sua carreira com um ato final de desprendimento.
No século 5 a.C, Lúcio Quíncio Cincinato, patrício romano já idoso e que levava uma vida modesta, aceitou relutante o cargo de ditador num momento de necessidade nacional. Venceu a guerra que ameaçava a existência de Roma em meros 16 dias e imediatamente abriu mão do poder absoluto e da glória advinda do cargo, voltando à humilde lavoura que cultivava com as próprias mãos. Foi duplamente louvado. Não sabemos se a história real foi assim, mas sabemos que esse era o nível de desprendimento do poder admirado numa República antiga.
Na República atual, todo mundo se agarra como pode a qualquer fiapo de poder que seus dedos consigam alcançar e só solta quando arrancado à força; o país que se dane. Um caso similar foi o da juíza da Suprema Corte Ruth Bader Ginsburg. Já tinha um mandato de décadas com votos importantes para o lado progressista. Com mais de 80 anos, poderia ter se aposentado ainda no governo Obama e permitido que ele escolhesse sua sucessora. Não o fez. Faleceu em 2020, dando a Trump a oportunidade de aumentar a proporção de conservadores na Corte, que está hoje em 6 a 3.
Vozes de democratas na imprensa clamam para que a esposa, a família, os correligionários de Biden o convençam a desistir. Mas a real responsabilidade deveria ser do próprio Biden. Se fosse apenas sua trajetória política que estivesse em jogo, daria para entender o apego à miragem da reeleição. Mas é a própria República e a ordem mundial que ela (mal e mal) sustenta que podem sucumbir, então a recusa em largar o osso ganha ares de um egoísmo doentio.
Doentio e irracional, dado que Biden provavelmente perderá. Além de prejudicar o país, perderá a chance de fechar sua carreira com um ato admirável de magnanimidade para acabar de forma melancólica, derrotado e humilhado, tendo entregue de bandeja a eleição mais crucial da história recente.
Isso importa inclusive para nós, brasileiros, porque a eleição de Trump terá impacto no mundo todo. E também porque, por aqui, presidentes e ex-presidentes têm uma dificuldade quase patológica de deixar o poder e preparar sucessores.
Seja como for, provavelmente já é tarde. Trump seguirá favorito independente de quem se oponha. A opção entre a certeza do fracasso e a possibilidade da virada, no entanto, não devia ser tão difícil. Não dá para esperar de um presidente o desprendimento de um Cincinato; só o bastante para não empurrar o país do precipício.
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