sábado, 29 de junho de 2024

Chamem o Tiririca, Antonio Prata _FSP

 

Eu tinha uns vinte anos, era colaborador numa novela da Globo e não sei por que cargas d’água fui parar num almoço com uns executivos do canal. Havia muitos talheres, muitos copos, muitos chefes e uma TV ligada, sem volume, no fundo do restaurante, no Projac.

No meio da conversa um mandachuva, que provavelmente tinha pegado o Boni no colo, feito cafuné no Chacrinha e dado chupeta pro Renato Aragão, olha pra TV e se cala.

Tava passando, em "Vale a Pena Ver de Novo", uma cena com uma dessas grandes atrizes, não sei se a Renata Sorrah, a Laura Cardoso ou a Marília Pêra.

Depois de uns segundos ele sorriu satisfeito, como um fazendeiro admirando sua lavoura. Aí disse um negócio que nunca esqueci. "Você reconhece boa atuação é assistindo TV sem volume".

De fato, sem sabermos o que a Renata Sorrah, a Laura Cardoso ou a Marília Pêra falavam, percebíamos sua genialidade, em contraste com a canastrice dos atores menores, que gritava na televisão muda.

Lembrei da cena nesta quinta, assistindo ao debate entre Trump e Biden. Coloquei na CNN, mas a TV estava sem volume e demorei a achar o controle certo. Por mais de um minuto, voltei àquele almoço de duas décadas atrás –e, infelizmente, não vi no Biden nem a Renata Sorrah, nem a Laura Cardoso e nem a Marília Pêra.

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 30 de Junho de 2024, mostra o desenho de uma marreta feita de porcelana branca com estampa florida azul.
Adams Carvalho

Que desastre, meus amigos. Que desastre. Qualquer estreante em "Malhação" teria feito melhor. Trump era Rocky Balboa socando um Dom Lázaro balbuciando "eu quero mamão". Era Arnold Schwarzenegger (em qualquer filme) contra Daniel Day Lewis em "Meu pé esquerdo".

Mano! O país mais poderoso do mundo, o único que tem alguma chance de liderar a luta contra a extrema direita, aos quarenta e cinco do segundo tempo no jogo do apocalipse climático, com mais de 300 milhões de habitantes, não conseguiu arrumar ninguém melhor pra concorrer à presidência do que a Velha Surda de "A praça é nossa"?! Biden parece ter sido escolhido a dedo— por um estrategista republicano.

A direita sempre tem a virilidade em alta conta. Até um homúnculo como Mussolini era vendido como um Hércules, fazendo com que todos os homúnculos da Itália reconhecessem como hercúleas suas existências medíocres.

Vivemos uma crise da masculinidade. O homem hétero não é mais o rei da cocada preta. A "defesa da família tradicional", conversa pra boi dormir e gado acordar, que vem de Trumps, Bolsonaros e quetais, nada mais é do que a promessa de voltarmos à época em que o homem branco e hétero mandava na sua esposa, nos seus filhos, podia zoar o gay no trabalho e desprezar todos os negros.

O slogan "Make América Great Again" podia ser mais explícito e mudar para "Enlarge Your Penis". Um charuto pode ser apenas um charuto, claro, mas desconfio que esses fuzis não sejam apenas fuzis.

Essa virilidade tosca do século 20, rediviva no 21, é ridícula, claro, mas a virilidade, em si, não é. Queremos que um líder seja corajoso, enfático, forte. Nada disso requer, especificamente, testosterona. Margareth Tatcher, Angela Merkel, Marine Le Pen, Simone Tebet, Dilma, Michele Obama não são imagens da fragilidade.

Tampouco precisa ser jovem, um candidato: botassem o Ariano Suassuna no fim da vida pra debater com o Trump e não sobrava uma migalha craquelada daquele bronzeamento artificial. A Erundina arrancava aquela peruca com duas frases.

Por que, ó Deus, ó deusas, o Biden? Se não tem ninguém no partido democrata, não podiam treinar o Tom Hanks? O Ross, de Friends? A Phoebe! O Mickey Mouse? O Pateta? Eu? O Tiririca? Pior do que tá não fica.


sexta-feira, 28 de junho de 2024

Performance de Biden no debate foi desastrosa, Hélio Schwartsman - FSP

 A performance de Joe Biden no debate de quinta-feira (27) foi nada menos que desastrosa. Em tese, isso não precisaria ser um grande problema.

Jornalistas, marqueteiros e os próprios políticos nutrem um certo fetiche por debates, mas eles são menos importantes do que se imagina. Em condições normais, isto é, quando os contendores alternam momentos positivos e negativos, o eleitor, mobilizando seu viés de confirmação, valoriza as boas tiradas do candidato para o qual torce e menospreza seus tropeços. O simpatizante do postulante rival faz o mesmo e, no cômputo geral, pouca coisa muda.

Esse, porém, não foi um debate normal. Biden saiu-se realmente mal. Acho que nem o mais ideológico dos eleitores democratas está vendo algo de bom para elogiar. Ocorre que, mesmo nessas raras situações de insofismável massacre, o efeito sobre as intenções de voto costuma ser efêmero, não durando mais que alguns dias. Debates assim podem ser um fator decisivo quando ocorrem às vésperas do pleito, mas não deveriam sê-lo quando têm lugar quase cinco meses antes.

Trump e Biden no debate da CNN - Christian Monterrosa/AFP

Apesar disso, Biden se encrencou. Seu desempenho transmitiu uma imagem de confusão e fragilidade que reforça a ideia de que ele, agora com 81 anos, está velho demais para exercer o cargo. Essa narrativa "pegou" e já se tornou o principal ponto fraco de sua candidatura. Mas o que se mostra realmente tóxico para a campanha é a reação de boa parte do establishment democrata, que entrou em pânico e já nem esconde articulações para eventualmente substituir o presidente por um outro candidato.

A esta altura, o eleitor independente, que acabará definindo o pleito, deve estar se perguntando por que deveria confiar em Biden, seja como candidato, seja como presidente, se nem seus aliados o fazem.
Recuperar-se de uma má performance em debate não é difícil, mas enfrentar o ceticismo do próprio partido em relação à campanha talvez seja fatal.

helio@uol.com.br

Preocupado com maconha, Lira promove farra eleitoral, Alvaro Costa e Silva, FSP

 

Antes do São João e do "Gilmarpalooza", que esvaziaram o Congresso, Arthur Lira desengavetou a PEC da Anistia. É o maior perdão da história a irregularidades cometidas por partidos políticos, entre elas o descumprimento das cotas eleitorais para mulheres e negros. Aprovada a proposta, as dívidas pendentes não vão impedir as siglas de obter recursos destinados a financiar as campanhas de 2024.

Pois vem aí um vendaval de dinheiro. PL (R$ 886,8 milhões), PT (R$ 619,8 milhões) e União Brasil (R$ 536,5 milhões) receberão as maiores fatias do bolo, 41% do total de R$ 4,9 bilhões, recorde que supera em mais de duas vezes o reservado para 2020 e equivale ao distribuído nas eleições de 2022 para presidente, governadores, senadores e deputados. Nunca fazer um prefeito ou não conseguir eleger um vereador nos mais de 5.000 municípios custou tão caro aos cofres públicos.

O perdão não inibirá novas irregularidades. Ao contrário, deverá incentivá-las. Uma operação da PF para investigar desvios no fundo eleitoral cumpriu sete mandados de prisão preventiva e 45 de busca e apreensão em São Paulo, Paraná, Goiás e Distrito Federal. O principal alvo foi o ex-presidente do Pros Eurípedes Gomes Júnior, que usou a grana para se esbaldar com familiares e amigos em viagens a Dubai e Miami.

No Rio, um relatório do Ministério Público Eleitoral afirma que houve gastos ilícitos na campanha do governador Cláudio Castro (que, de tão enrolado, parece uma bobina). Uma mulher, que aos 65 anos jamais teve registro de trabalho, virou sócia de uma empresa de "empreendimentos" e recebeu R$ 2,5 milhões.

Quando se trata do crime de corrupção, o Congresso é amigo. Lira está mais interessado na PEC das Drogas, retaliação ao STF por descriminar o porte de maconha para consumo próprio. A CCJ da Câmara quer um plebiscito sobre reduzir a maioridade penal; a do Senado propõe liberar a jogatina.

O calçadão do centro; funcionalidade não precisa ser sem graça, Mauro Calliari, FSP

 O calçadão do centro de São Paulo estava pedindo uma reforma faz tempo e agora começam a aparecer os resultados das obras que cercaram parte do triângulo histórico e que são anunciadas há anos. Na gestão Dória, criou-se com alguma pompa uma Comissão Permanente de Calçadas, que chegou a anunciar um novo piso para os calçadões. A comissão foi desfeita e as obras deixadas de lado. Na gestão Bruno Covas, o projeto foi adiado. A gestão atual fez a licitação e começou agora a entregar os novos trechos.

Embaixo do solo, a obra é razoavelmente complexa. Há camadas de fios, tubos, cabos, vestígios de trilhos e até fundações de casas coloniais. O custo de R$ 63 milhões parece justo para organizar essas camadas todas.

Em cima do solo, porém, o resultado, por enquanto, é decepcionante.

Fotografia colorida mostra calçadão no centro de São Paulo; pessoas caminham.
Obra finalizada do novo calçadão no centro de São Paulo - Mauro Calliari/Folhapress

Os primeiros trechos liberados mostram um piso de concreto, liso, sem graça e até sem a variação de tons que constava dos poucos croquis disponíveis. Estão previstos bancos básicos, que começam a ser instalados, assim como uns vasinhos com plantas. O piso vai melhorar a caminhabilidade, não há dúvida, mas o projeto merecia um pouco mais de cuidado.

A troca das pedras portuguesas não é um problema em si. Elas nunca fizeram parte tão fundamental do patrimônio paulistano, ao contrário do Rio ou de Manaus – e, claro, Lisboa, que ostenta seus desenhos com orgulho. O problema é que a manutenção tem sido historicamente malfeita. Basta uma volta pelos calçadões para encontrar buracos ou remendos toscos, feitos com cimento. Na chuva, as pedras são perigosas e escorregadias. Cadeirantes e pedestres sofrem com os desníveis.

Diante da melancólica constatação de que a manutenção não vai melhorar, a decisão pela troca parece inevitável. As pedras até poderiam ter sido mantidas em alguns trechinhos, não como local de caminhar, mas como uma evocação do passado, uma memória que não atrapalharia a circulação. O único trecho previsto em que serão mantidas é na Praça do Patriarca.

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INSPIRAÇÕES NO MUNDO TODO

Quando o calçadão foi construído, em 1976, o centro ainda oferecia atrações e trabalho, mas os escritórios já estavam migrando gradualmente para outras regiões da cidade. O então prefeito Olavo Setúbal implantou os calçadões para facilitar a vida das multidões que disputavam espaço com os carros nos seus deslocamentos a pé pelas ruas entre as estações e os terminais. O piso tinha desenhos, havia bancos, vasos de plantas e iluminação decorativa. O centro perdeu energia e o calçadão piorou junto.

No momento em a cidade discute como retomar a vitalidade do centro, atraindo novos moradores, o calçadão precisaria refletir novas dinâmicas de uso. Em vários lugares pelo mundo, há novas soluções que poderiam ser tentadas.

Desde que Copenhague pedestrianizou a rua Stroget, em 1961, as sucessivas gerações de calçadões oferecem uma vitrine de opções e modelos, desde a Times Square em Nova York à Rua XV de Novembro em Curitiba, a primeira cidade brasileira a implantar a novidade, que ainda mantém a qualidade desde sua inauguração em 1972.

Decoração de Natal na rua Stroget, em Copenhague, Dinamarca. - RITZAU SCANPIX/Ritzau Scanpix/Liselotte Sabroe/via REUTERS

Na nova geração de calçadões, há um arsenal de soluções híbridas, para dar vazão ao transporte coletivo, mas também para facilitar entregas ao comércio, acessos exclusivos para veículos de moradores e atrações para os turistas. Em meio a esses, os pedestres reinam, soberanos.

Visitando alguns desses bons exemplos, dá para ver como o denominador comum é um bom desenho urbano, bons materiais, segurança e a participação de lojistas e moradores, que discutem e legitimam os projetos. Em Londres, calçadões ocupam com sucesso a margem do Tâmisa. Em Buenos Aires, as ruas do centro seguram o movimento, mesmo na crise. Em Madri, há uma rede de ruas exclusivas de pedestres mas também há soluções híbridas, de uso compartilhado ou com uma faixa especial para veículos, bem segregada.

Visitei Pontevedra, naGalícia, no mês passado, uma cidade pequena que ficou famosa pela caminhabilidade. Ali, há grandes estacionamentos ao redor do centro e vários tipos de configurações que permitem manter a vitalidade econômica e urbanidade. Além da mistura de moradia e comércio, o segredo é a qualidade do espaço público, que faz com que famílias, velhinhos e crianças frequentem sem medo o mesmo local.

No momento em que a Prefeitura está tentando atrair novos moradores para a região central, propondo reformas, incentivos, retrofits e conseguindo nos últimos tempos até melhorar a sensação de segurança no centro, dá para ser mais criativo na infraestrutura mais básica, a rua.

Antes de mexer nos calçadões do lado do Centro Novo, melhor investir no desenho urbano, na qualidade dos materiais e nas consultas a quem mora e trabalha nesses lugares para poder ter mais legitimidade. Custa só um pouco a mais ter projetos melhores e mais criativos para um pedaço tão importante da cidade.


quinta-feira, 27 de junho de 2024

O STF está certo sobre maconha, Ponto de Partida MEIO

 


O STF está certo sobre maconha

O presidente Lula, na entrevista que deu ao UOL hoje, disse o seguinte. Abre aspas:

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“A Suprema Corte não tem que se meter em tudo. Ela precisa pegar as coisas mais sérias sobre tudo o que diz respeito à Constituição e virar senhora da situação, mas não pode pegar qualquer coisa e ficar discutindo, porque aí começa a criar uma rivalidade que não é boa, a rivalidade entre quem manda, o Congresso ou a Suprema Corte.”

Lula está errado, mas vá. Está fazendo política. A opinião dele não tem nenhuma relevância nesse caso, o problema não passa pelo Poder Executivo, e ele precisa fazer política. Duas formas de política. Uma é que precisa acenar para um eleitorado mais conservador. Esse trabalho tem de ser feito e não só por Lula. É preciso desradicalizar o país e, olha, a esquerda pode se incomodar mas a desradicalização só vai acontecer com acenos ao público conservador, mesmo. E o presidente tem feito isso. Enfim tem feito. Em segundo, Lula precisa ficar acenando também para o Congresso, Câmara e Senado têm o Palácio do Planalto nas mãos. O presidente demorou a entender que as coisas não funcionam mais como era no tempo em que Michel Temer, Aécio Neves ou Henrique Eduardo Alves presidiam a Câmara. Claro, na época eram uma direita horrorosa, bando de neoliberais. Aí, já viu a diferença.

Então Lula está fazendo política, fazendo acenos e, na verdade, dando pitaco numa das raras áreas em que a opinião dele influi em muito pouco, mais provavelmente nada. Está aproveitando justamente isso, de que a opinião dele é irrelevante, pra marcar uns pontos ali com os deputados e senadores, criar uma boa vontade na próxima votação. Tudo certo. Mas, olha, isso não muda o fato de que a opinião está errada. A decisão do Supremo Tribunal Federal é, tipicamente, uma decisão de corte constitucional.

O que é uma democracia liberal moderna? O que é um Estado Democrático de Direito? A gente tem repetido essas expressões muito, não é? Um povo que vive em um determinado território, um grupo de concidadãos, se reúne e constitui um Estado Nacional. Como faz isso? Bem, as pessoas elegem seus representantes que formam uma Assembleia Nacional Constituinte. Uma assembleia de parlamentares eleitos que têm a missão de, seguindo as correntes de opinião presentes naquela sociedade, redigir um documento que constitui esse Estado. Este documento terá três tipos de conteúdo. Acima de tudo, os direitos individuais. Os direitos de cada cidadão. Aí, na sequência, a organização do Estado. Como se estruturam os três poderes, quais os tempos de mandato, como cada um poder limita os outros dois. E, por fim, a parte menos importante que é a das políticas de Estado. É menos importante porque poderia ser feito por lei ordinária. Não precisaria estar junto com as outras coisas. Só por isso. Este documento não se chama Constituição à toa. É o que constitui, é o que cria, que dá forma ao Estado Nacional.

Existem alguns traços que fazem de um Estado uma democracia liberal. De novo: um Estado Democrático de Direito. É a mesma coisa, tá? Uma democracia liberal forma, necessariamente, um Estado Democrático de Direito. E aí, um dos traços essenciais, talvez o mais importante de todos, é a ideia de que todos os cidadãos são iguais perante a lei. Se na Constituição de um país cidadãos de grupos distintos estiverem sob regras diferentes, se houver gente que pode mais do que outras gentes, aquele país não é mais uma democracia liberal. É outra coisa.

O caso da maconha, que o Supremo Tribunal Federal julgou, trata essencialmente disso. Da garantia de que todos os cidadãos serão tratados de forma igual perante a lei. É isto, fundamentalmente, o que estava sendo julgado. E este é talvez o drama brasileiro essencial. A Constituição que temos é de uma democracia liberal. Está escrito lá. Artigo 5º, que é o dos direitos fundamentais, item 1. “Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.”

A gente tem uma Constituição de democracia liberal no seu mais básico, no essencial. Mas a gente não tem um Estado que age como se isso fosse verdade.

Se este é o direito constitucional mais básico, garantir que todo mundo vai ser tratado da mesma forma, não tem pauta mais importante para a corte constitucional entrar. Os ministros do Supremo estavam corretíssimos. O julgamento da maconha trata disso.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

A edição especial do Meio, do último sábado, é um choque de realidade. Tem uma entrevista com Luciana Temer, advogada, e uma das pessoas que melhor conhecem o retrato da violência sexual no Brasil. A violência sexual contra mulher, no nosso país, é principalmente violência contra meninas. Mais de metade dos estupros registrados é contra meninas com menos de 13 anos. Mais da metade. E este número está subindo a cada ano. Segundo o Atlas da Violência, 80% dos estupros no Brasil são contra menores de 14 anos. Mais de 70% dos estupros acontecem em casa.

Esses números são públicos mas levantam pouca atenção. Sabe, nosso trabalho, por aqui, é trazer fatos, dados, análise num universo onde há desinformação demais. O Meio é importante para você? Faz parte da maneira como você se informa, compreende o mundo? Assine. Ajude a nos manter de pé. Cidadania inclui ajudar a financiar o bom jornalismo.

E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Isso fica claro no voto do ministro Alexandre de Moraes. Ele não entrou no mérito de se maconha deve ser legal ou não. Isso é para o Congresso decidir. O que ele fez foi buscar um estudo da Associação Brasileira de Jurimetria, que foi lá ver como as pessoas são condenadas por um determinado tipo de crime, no Brasil. Descobriu o seguinte: pessoas com a mesma quantidade de maconha são condenadas a penas diferentes de acordo com o local em que são detidas pela polícia, sua classe social e nível de escolaridade.

A Lei das Drogas, aprovada pelo Congresso Nacional, já diz que consumidor e traficante são diferentes. O Supremo não inventou essa diferença. É a lei que diz. O problema é o seguinte: qual a diferença entre o traficante e o usuário? Não importa qual é a regra, mas importa que exija uma mesma regra que valha pra todo mundo.

Olha aqui: uma pessoa branca, para ser considerada traficante pela polícia e pela Justiça no Brasil, tem que ter 80% a mais de droga do que uma pessoa negra.

Isso não é discurso identitarista. Não é discurso de esquerda. Isto é um fato matemático. Pega todos os casos de pessoas que são detidas com maconha, todos os julgamentos, separa de um lado as que foram condenadas, do outro as que não foram. Aí vê quem é branco, quem é negro, e faz a conta de quanta maconha você precisa para ser considerado traficante se você é branco ou se é negro.

Não pode.

O Supremo decidiu que uma pessoa que tiver até 40 gramas de maconha consigo, ou até seis plantas fêmeas em casa, tem de ser considerada usuária. Mais do que isso, é traficante. Ponto final. O critério é objetivo e tem de ser aplicado a todo mundo. Possivelmente, e alguns ministros disseram isso, não devia ser o Supremo a definir qual é a diferença. Aliás, não devia nem ser o Congresso. Deveria ser um órgão técnico, o mais indicado seria a Anvisa.

Mas aí volta o problema constitucional essencial. O Supremo ordena que a Anvisa decide. E se não decidir? E se enrolar? E se demorar? A cada dia mais gente pobre vai sendo presa. Então precisa de algum tipo de definição porque a lei já disse que traficante e usuários são diferentes. Logo, se não tem um critério objetivo e claro para diferenciar um do outro, ficamos com um tipo de cidadão que tem mais direitos do que outro tipo de cidadão. Numa democracia, não pode.

Agora, a gente precisa aprender a explicar isso bem. Sabe por quê? Porque as maiores vítimas são as pessoas que moram nas grandes periferias urbanas. Os rapazes que em geral são filhos de mães e pais evangélicos que são, também, conservadores. Que vivem angustiados com a falta de oportunidades que seus filhos têm. E os filhos são jovens. São adolescentes ou jovens. Quando não são seus filhos, são filhos de vizinhos queridos, são sobrinhos, são sobrinhos de amigos.

As pessoas vivem no mundo real. É preciso saber como construir o discurso porque gente que vive no mundo real é sensível, sabe onde dói o calo. As pessoas sabem compreender quando existe uma injustiça. Quando duas pessoas que fazem o mesmo são tratadas com regras diferentes. Foi exatamente assim com a Lei do Aborto, ou Lei do Estupro. O problema não tem nada a ver com ser a favor ou contra aborto, tem a ver com ser uma baita injustiça com meninas, são quase sempre meninas, que se veem num momento de muita dor, de muita dificuldade, e precisam tomar com suas famílias uma decisão dificílima.

As pessoas entendem isso. Só precisamos, os democratas, ter a capacidade de explicar sem ficar dando discurso moralista. Sem tratar gente diferente como se fosse inferior, como se fosse um bando de fanático, como se fossem insensíveis. Precisamos aprender a conversar com quem é diferente. Com quem pensa diferente.

A direita radicalizada fica dizendo que o Supremo se mete num assunto do Congresso. A garantia de que todo brasileiro será tratado da mesma maneira pelo Estado não é assunto do Congresso. É assunto do Supremo Tribunal Federal. Aliás, é o assunto mais importante do qual o Supremo Tribunal Federal tem a obrigação de cuidar.

Afinal de contas, é isso que faz com que sejamos uma democracia de verdade.

Lula assina decreto que lança Estratégia Nacional de Economia Circular, FSP (definitivo)

 Fernanda Mena

BRASÍLIA

Reduzir o uso de novas matérias-primas e de recursos naturais e, ao mesmo tempo, diminuir a produção de resíduos e de poluição a partir de redesign e reutilização de produtos.

Essas são algumas das premissas da economia circular que o governo federal agora adota por meio do decreto que instituiu a Estratégia Nacional de Economia Circular (Enec), assinado nesta quinta-feira (27) pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) durante reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável, o Conselhão.

A iniciativa foi coordenada pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) e tem o objetivo de promover a transição do modelo de economia linear –baseada na tríade extrair, produzir e descartar— para uma economia circular, que aumenta a eficiência no uso de recursos naturais e estabelece práticas sustentáveis ao longo da cadeia produtiva e no consumo.

Latinhas prontas para reciclagem em planta da Facipel, empresa que pertence ao grupo Multilixo - Bruno Santos/Bruno Santos -14.mar.24/Folhapress

A Estratégia integra a nova política industrial adotada pelo governo federal, Nova Indústria Brasil (NIB). A economia circular é nos eixos formadores do Plano de Transformação Ecológica, coordenado pelo Ministério da Fazenda (MF), e do Plano Clima, liderado pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA).

"Damos hoje mais um passo largo em direção à neoindustrialização, reforçando o papel do governo no fomento a uma indústria sob novos pilares, gerando inovação, novos negócios alinhados ao crescimento sustentável e responsável, criando empregos e reduzindo significativamente o impacto ambiental das atividades produtivas e de consumo", afirmou o vice-presidente e ministro do Desenvolvimento Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin.

"O decreto que institui a Estratégia Nacional de Economia Circular é emblemático porque ele surge em meio a outros decretos conectados à pauta de mudança climática, descarbonização da indústria e competitividade e inclusão social. Ele une todas essas pontas", avalia Luísa Santiago, diretora da Fundação Ellen MacArthur, organização internacional sem fins lucrativos que atua para acelerar a transição para uma economia circular.

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"Que a estratégia comece a se desdobrar em planos que vão permitir prosperidade de longo prazo, competitividade e inovação na indústria, inclusão sócio-produtiva e regeneração produtiva da natureza", completa.

A estratégia estabelece como diretrizes a eliminação da poluição e a redução da geração de rejeitos e resíduos; a manutenção do valor dos materiais; a regeneração do ambiente; a redução da dependência de recursos naturais; a produção e o consumo sustentáveis; o aumento do ciclo de vida de todo e qualquer material; e a garantia de uma transição justa inclusiva e equitativa, abordando disparidades de gênero, raça, etnia e socioeconômicas.

O decreto cria o Fórum Nacional de Economia Circular, um órgão que ficará responsável pela elaboração de um plano com metas, padrões e indicadores para esse tipo de iniciativa no país.

O Fórum será presidido pelo MDIC, por meio da Secretaria de Economia Verde (SEV), e contará com o MMA na Secretaria Executiva, além de integrantes dos ministérios da Fazenda (MF), Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), Educação (MEC), Desenvolvimento Agrário e Agricultura e Familiar (MDA), Agricultura e Pecuária (Mapa), Trabalho e Emprego (MTE), Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), Minas e Energia (MME) e Empreendedorismo, da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte (MEMP).

Também estarão presentes representantes da Casa Civil e da Secretaria-Geral da Presidência da República além da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anivsa).

Para Beatriz Luz, fundadora do Hub de Economia Circular Brasil, "o estabelecimento do fórum é importante para elaborar planos de ação nacionais e estimular estados e municípios a criarem instâncias similares".

"A aprovação da estratégia coloca o Brasil em um novo lugar de atração de investimentos para a circularidade, em linha com o contexto global", explica ela, que é também diretora da Exchange 4 Change Brasil.

O que é o transtorno por uso de cannabis, que afeta até 20% dos usuários, BBC News FSP

 André Biernath

LONDRES | BBC NEWS

descriminalização do porte de maconha para consumo próprio pelo Supremo Tribunal Federal (STF) levantou uma série de dúvidas sobre os impactos da substância psicoativa na saúde.

Um dos pontos envolve o chamado transtorno por uso de cannabis, uma condição ainda pouco estudada pela ciência e praticamente desconhecida pelo grande público.

Quadros de dependência de maconha afetam entre 7 e 20% dos usuários, apontam pesquisas - Getty Images

O quadro, que pode afetar até dois em cada dez usuários de maconha (entenda mais abaixo), está relacionado ao abuso do consumo da droga e gera perdas significativas no bem-estar e na qualidade de vida.

O psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, professor da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), avalia que existe uma grande dificuldade em diferenciar usuários de dependentes —ou aqueles indivíduos que não se encaixam nem na primeira e nem na segunda categoria.

"Mas o transtorno por uso de cannabis seria equivalente ao que se chama de dependência", explica ele.

Segundo o psiquiatra, essa condição pode se manifestar de diferentes maneiras. Para começar, ela está relacionada à quantidade e à frequência no consumo.

"O transtorno atrapalha as atividades habituais de trabalho e estudo, prejudica as relações interpessoais e gera desinteresse."

"Além disso, qualquer pensamento ou tentativa de reduzir o consumo gera sintomas intensos de ansiedade ou depressão", caracteriza Silveira, que estuda dependência há 40 anos.

QUANTAS PESSOAS TÊM O TRANSTORNO?

Silveira orientou uma das primeiras (e únicas) pesquisas a avaliar a saúde mental e a qualidade de vida de pessoas que fazem uso recreativo de cannabis no Brasil. O trabalho foi publicado em dezembro de 2021.

Por meio de um questionário online, que contou com a participação de 7.405 adultos, os especialistas descobriram que 17,1% dos participantes se classificavam como usuários ocasionais e 64,6% diziam fazer consumo frequente de maconha.

Já 7,7% dos respondentes se declararam como "usuários disfuncionais", algo que pode ser classificado como um transtorno no uso dessa substância.

"Esse número se aproxima muito ao que é visto em outros levantamentos. Nos Estados Unidos, cerca de 9% dos usuários de cannabis apresentam dependência", compara Silveira.

O inquérito brasileiro ainda observou que os tais usuários disfuncionais eram mais afetados em termos de bem-estar: eles tinham uma pior qualidade de vida, além de apresentarem com mais frequência doenças como depressão e ansiedade em comparação com aqueles que se entendiam como usuários ocasionais ou frequentes.

Uma outra investigação realizada pelo Instituto de Pesquisa em Saúde Kaiser Permanente, nos Estados Unidos, calculou a prevalência do transtorno no Estado de Washington, onde a maconha para uso recreativo está legalizada (e não apenas descriminalizada, como é o caso do Brasil após a decisão do STF).

Os dados foram publicados no periódico especializado Jama Network Open em agosto de 2023.

Os autores entrevistaram 1.463 indivíduos que haviam feito uso de cannabis nos 30 dias anteriores.

Seguindo critérios estabelecidos nos manuais internacionais de psiquiatria, eles observaram que o transtorno no uso desta substância afetava 21,3% dos participantes, ou um quinto do total da amostra.

A taxa foi a mesma entre aqueles que consumiam maconha para uso recreativo, medicinal ou com ambas as justificativas.

Mas a gravidade do quadro variou de forma significativa entre essas três turmas.

Segundo a pesquisa, 1,3% dos usuários de cannabis com fins medicinais apresentavam o transtorno em níveis moderados ou severos.

Essa taxa subiu para 7,2% naqueles que faziam uso recreativo e para 7,5% no grupo misto (que mesclavam uso medicinal e recreativo).

Dependência de maconha afeta o bem-estar e a saúde mental, mostram estudos - Getty Images

O QUE AUMENTA O RISCO DE DEPENDÊNCIA

Silveira explica que o transtorno no uso de cannabis acontece por uma somatória de diferentes fatores.

"Um sinal de alerta é o padrão de uso, quando o indivíduo altera a frequência ou a quantidade de consumo. Por exemplo, se ele passa a fumar todos os dias", pontua o psiquiatra.

"Claro, se a pessoa fuma meio cigarro ao dia, antes de dormir, isso não é algo que gera preocupação. Mas se ele já acorda com aquela necessidade incontrolável de acender um baseado, há um indício de problemas", pondera ele.

Outro comportamento que pode desembocar no transtorno envolve uma espécie de transição do uso recreacional para um consumo que envolve justificativas de bem-estar ou saúde —sem a devida avaliação de um profissional da área.

"É o caso da pessoa que está nervosa, triste, ansiosa e decide fumar maconha como uma forma de aplacar esses sintomas", exemplifica o médico.

O psiquiatra ainda destaca dois grupos onde o risco de danos relacionados ao consumo de cannabis é mais elevado.

"Primeiro, os jovens. É absolutamente contra-indicado fumar maconha antes dos 21 anos. Essa é a idade em que o amadurecimento do cérebro termina", cita ele.

Antes dessa idade, os compostos presentes na planta podem afetar o desenvolvimento dos neurônios e das demais células do sistema nervoso— o que gera repercussões negativas pelo resto da vida.

O pesquisador explica que a maioria dos problemas psíquicos relacionados à cannabis aparece em indivíduos que experimentaram essa substância psicoativa em idades precoces.

"O segundo grupo inclui pessoas que têm casos de esquizofrenia na família. Nesse contexto, o consumo de cannabis pode ser bastante prejudicial", complementa ele.

Aumento na quantidade e na frequência do consumo é um dos sinais de alerta para o transtorno, diz especialista - Getty Images

OS TRATAMENTOS DISPONÍVEIS

Para os casos em que o transtorno de uso de cannabis é identificado, Silveira destaca dois possíveis caminhos de tratamento.

"O primeiro é a estratégia de redução progressiva, também conhecida como redução de danos", cita ele.

Essa alternativa envolve diminuir a quantidade consumida aos poucos. Também é possível modificar a rotina do indivíduo— alterando os horários em que ele estava acostumado a acender um baseado, por exemplo.

A Associação Americana de Psiquiatria aponta que sessões de psicoterapia podem ajudar nesse processo.

Em alguns casos, os médicos também prescrevem medicações com canabinoides, para diminuir aos poucos a necessidade da substância.

"O segundo caminho é interromper o uso de forma repentina e focar o tratamento nos problemas que vão surgir na sequência, como é o caso de ansiedade ou depressão", acrescenta o médico.

Por fim, Silveira avalia que a recente decisão do STF pode melhorar a forma como o transtorno de uso de cannabis é tratado no país.

"Estamos 30 anos atrasados nesse debate. Enquanto o mundo todo discute a legalização da maconha, nós ainda estamos falando de descriminalização", observa ele.

"O Brasil estava do lado de Irã, China, Indonésia e outros países totalitários ao criminalizar o porte de maconha para consumo próprio", opina o médico.

Silveira entende que um cenário de criminalização do porte de cannabis para uso pessoal— como o Brasil tinha até poucos dias atrás— gera muitas dificuldades do ponto de vista da saúde pública.

"A pessoa fica constrangida em falar abertamente que usa maconha, pelo medo de ser rotulada como criminosa", argumenta ele.

"A descriminalização facilita o acesso aos serviços de saúde. E eu, como médico, posso falar abertamente sobre uso seguro e formas de prevenção ou tratamento para esses casos de dependência", conclui ele.